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Condicionantes da ação da ATER e o ônus pela proximidade ao produtor rural

2. SISTEMA NACIONAL DE INOVAÇÃO E A VERTENTE AGRÍCOLA: TEORIA E

2.4. Condicionantes da ação da ATER e o ônus pela proximidade ao produtor rural

No interior do SNIA, de acordo com Spielman e Birner (2008), a ATER é considerada uma "instituição-ponte”, por se constituir numa das instituições responsáveis pela articulação com o conjunto de outros atores, representantes do núcleo "pesquisa agrícola e sistema educacional", de um lado, e com os "atores das cadeias de valor e organizações afins", do outro).

Convém deixar ainda mais explícito que o instrumento que materializa essas articulações é a inovação, que é considerada por Buainain et al. (2008) "o vetor do desenvolvimento presente e futuro em todas as suas dimensões" e o objetivo dessa articulação é a promoção do aumento da competitividade daquele empreendimento (BUAINAIN et al., 2008, p. 58).58 Assim, é possível perceber que a ação da ATER não se completa com a simples difusão da inovação, é necessário que a inovação seja incorporada ao sistema de produção e produza os resultados esperados.

Um dado relevante a enfatizar é que, dentre todos os atores, a ATER é aquele que está, pela natureza do seu próprio trabalho, mais próximo ao produtor. Assim, a ATER é um ator privilegiado por atuar com a inovação junto ao produtor, e demais atores relacionados, podendo identificar quase que imediatamente o sucesso ou fracasso da adoção de uma inovação. Esse fracasso pode ocorrer principalmente de duas formas: (i) a não adoção da inovação; (ii) ou mesmo adotada, a inovação não produzir os efeitos esperados, como por exemplo, melhoria da renda, ou das condições de vida, ou ainda das condições ambientais.59

No caso brasileiro, acredita-se que decorrente dessa circunstância, a proximidade da ATER ao produtor e o seu papel na difusão da inovação e de articulação com os demais atores, é recorrentemente atribuída à ATER governamental a responsabilidade pelo eventual insucesso do processo inovativo.60 Uma das inúmeras evidências dessa afirmação está no estudo de Alves et al., 2012) ao concluir que:

1. Constatou-se grande concentração do valor da produção, ou seja, um número pequeno de estabelecimentos produziu a maior parte do valor da produção e a grande maioria deles contribuiu com muito pouco;

2. A área do estabelecimento tem pequeno poder de explicar a concentração. Nesta explicação, a maior responsabilidade é da tecnologia.

Sendo assim, existe no Brasil um problema grave de difusão de tecnologia, qual seja criar condições para que os que produziram pouco se modernizem também, e eles são milhões. (ALVES et al., 2012, p. 20; grifo nosso)

58

Competitividade agrícola no mesmo sentido utilizado por Fuck e Bonacelli (2009, p. 9). 59

Como exemplo recente, tem-se o caso da incidência de praga nas lavouras da região oeste da Bahia, provocada pela lagarta "Helicoverpa armigera", causando prejuízos relevantes à economia agrícola do estado. A principal estratégia adotada pelos produtores da região foi a adoção das variedades (DP 1228 e a DP 1231) de algodão, resistentes à lagarta, já na safra 2013/2014. As variedades resistentes adotadas, detentoras da tecnologia Bt2, apesar de mostrarem-se realmente resistentes à praga, demonstraram redução do rendimento de fibra do algodão de 40% para 36%, situação que também trouxe prejuízos aos produtores. Isso motivou questionamento dos produtores junto à empresa detentora das variedades, ensejando uma negociação para reparação dos danos aos produtores. Esse fato revela que a adoção de uma inovação, mesmo eficiente num sentido, pode produzir efeitos indesejáveis, às vezes capazes de reduzir ou até anular os benefícios de adoção daquela inovação, trazendo possíveis consequências negativas para o trabalho da assistência técnica, uma das responsáveis pela difusão das variedades. Disponível em:<http://www.seagri.ba.gov.br/noticias/ 2014/10/09/monsanto-ter%C3%A1-que- indenizar-produtor-de-algod%C3%A3o-da-bahia>. Acesso em: 16 nov.2014.

60

A respeito da responsabilidade da ATER na modernização das propriedades agrícolas no Brasil, ver Alves e Pastore (2013).

Observando-se de forma integrada, tal qual enseja a abordagem do SNIA, nessa possibilidade do insucesso do processo inovativo é possível visualizar um conjunto de variáveis que pode determinar o fracasso do processo de adoção. De forma ampla, essas variáveis ou condicionantes podem acelerar, retardar ou até impedir o processo de modernização da agricultura e podem estar associadas aos distintos atores, inclusive associadas à própria ATER.

Dito de outra forma: algumas dessas variáveis/condicionantes podem ser inerentes à própria inovação (acesso, adequação, Direitos de Propriedade Intelectual, etc.); ou inerentes ao perfil do produtor rural (escolaridade, aversão ao risco, etc.); ou às condições de infraestrutura da propriedade agrícola (qualidade de solos, disponibilidade de energia, oferta hídrica, estradas, armazenamento, etc.); ou ainda às condições dos outros instrumentos de política (acesso e adequação do crédito rural, da política de preços, da política de seguro, da política de acesso à terra, etc.); ou às condições da posse da terra (arrendatário, posseiro, assentado da reforma agrária, etc.); ou às condições dos regulamentos legais (licenciamento ambiental, código florestal, defesa sanitária animal e vegetal, tributação, etc.), ou às condições de mercado (acesso, concorrência, oferta de insumos, estruturas de intermediação, preços, etc.); e, por último, inerentes às condições do próprio serviço de assistência técnica e extensão rural (acesso, qualidade, disponibilidade, etc.).

Um outro aspecto a ser considerado é que o conjunto dessas variáveis/condicionantes mencionado acima que atua favorecendo, retardando ou até impedindo o progresso técnico da propriedade rural tem um impacto diferenciado a depender do perfil do produtor. Este último aspecto foi qualificado por Mendes, Buainain e Fasiaben (2015) como heterogeneidade produtiva, de infraestrutura e socioeconômica. Nesse propósito, é esclarecedora a discussão trazida pelos três estudiosos ao elencar entre os principais condicionantes do processo de adoção de inovações na agricultura brasileira, exógenos à Embrapa:

(...) a fragilidade da extensão rural e da assistência técnica; a criação da Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater) e o risco de confusão de papéis de pesquisa e extensão; a existência de dois Ministérios (da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Desenvolvimento Agrário) que atuam no espaço rural; a heterogeneidade produtiva, de infraestrutura e socioeconômica dos agricultores; a elevada taxa de analfabetismo no meio rural; a dicotomia entre agricultura familiar e agricultura empresarial como sendo um falso dilema; e a hierarquia de comando nas cadeias produtivas agrícolas, que interfere na decisão da tecnologia a ser adotada. (MENDES; BUAINAIN; FASIABEN, 2015, p. 167)

Ou seja, dentre os demais condicionantes, pode-se destacar que quanto mais acentuada for a heterogeneidade produtiva, infraestrutural e socioeconômica do produtor, maior será o impacto sobre o processo de modernização daquela propriedade ou daquela comunidade.

Para o caso dos produtores com grau de heterogeneidade mais próximo à pobreza, o desafio de promover a adoção de tecnologias de responsabilidade do serviço de extensão rural, um dos poucos instrumentos de política ao qual essa categoria de produtor ainda tem acesso, pode ser considerado uma tarefa das mais complexas. Esse fato concorre para que a ATER torne-se um dos atores mais questionados sobre a sua responsabilidade na ausência de modernização das propriedades rurais, sobretudo no Brasil. Aqui, o curioso é que, de acordo com o Censo Agropecuário de 2006, o último disponível, cerca de 78% dos estabelecimentos rurais brasileiros não receberam nenhum tipo de orientação técnica naquele ano. Nesse caso, a quem deve ser atribuída a responsabilidade pelo atraso tecnológico?

Em síntese, pode-se perceber que embora o modelo do SNIA apresente a ATER como um ator de atuação semelhante a todos os demais, em algumas situações particulares, como no caso do Brasil, a ATER possui características específicas, relacionadas principalmente à natureza do seu trabalho, o que implica numa maior proximidade ao produtor rural, característica que a torna um ator com alguma diferenciação em relação aos demais.

De fato, essa proximidade da ATER junto ao produtor traz consigo um grau de responsabilidade importante, do qual a ATER não pode se eximir, especialmente quando se constitui num verdadeiro primeiro "filtro" daquelas inovações que a ATER julga inadequadas e que, às vezes, nem são difundidas a um determinado produtor.

Mesmo assim, detentora dessa responsabilidade, por exercer, dentre outras, a condição de maior proximidade, natural do papel de assessoramento ao produtor rural, a ATER não pode, contudo, responsabilizar-se unicamente pelo atraso tecnológico do conjunto das propriedades por ela assistido, quiçá, talvez, apenas naqueles casos onde o "filtro" possa ter falhado. Ou seja, embora uma constatação óbvia, por tratar-se de um sistema constituído por vários atores, torna-se aqui justificável face à recorrência da crítica que individualiza a responsabilidade na ATER.

Das discussões empreendidas neste capítulo, é possível destacar alguns elementos que se constituem em referências teóricas para a compreensão da complexidade do processo inovativo na agricultura, no sentido mais amplo, assim como sobre o papel da ATER nesse mesmo processo.

O primeiro desses elementos diz respeito à escolha do referencial teórico apoiado na abordagem dos Sistemas Nacionais de Inovação Agrícola (SNIA), concebida como a

referência mais adequada para abranger e qualificar um conjunto de múltiplas relações que se verifica no interior do ambiente inovativo, envolvendo outro conjunto diversificado de atores, seja do setor governamental ou não, e que produz repercussões nas esferas econômica, social, científica, ambiental e político-institucional.

Um outro elemento de destaque é aquele relacionado com a importância das instâncias de coordenação e de governança elementos essenciais à fluidez dos sistemas nacionais de inovação agrícola. Nesse caso, torna-se particularmente crítica a necessidade de uma melhor integração na estratégia da política nacional de inovação com as demais políticas a nível nacional, em especial as políticas agrícolas, o que leva a necessidade de clareza de papéis e funções de cada ator envolvido.

Novamente, ao se olhar para o caso brasileiro, no qual a agricultura é responsabilidade de dois ministérios, torna-se nítido identificar o potencial de ampliação das dificuldades de coordenação e governança, fato que por certo se refletirá nas dinâmicas dos SNIA.61

O último elemento a se destacar está relacionado com o papel da ATER no SNIA. A partir da trajetória dos sistemas de "conhecimento agrícola" nos quais o papel da ATER ganha importância gradativamente, desde o papel de difusão simples, até um protagonismo maior na construção social da inovação. Essa evolução teórica, entretanto, não eximiu a ATER, por força da natureza do seu próprio trabalho de se constituir no ator mais próximo ao produtor rural, atribuindo-lhe uma responsabilidade a mais no plano operacional do processo de inovação.

Em escala global, segundo o World Bank (2012), esse fato é acrescido por um conjunto variado de problemas vivenciados histórica e constantemente pela ATER governamental, tais como: insuficiência de financiamento, tecnologias inadequadas, precária qualificação das equipes técnicas, frágil integração com a pesquisa agrícola e limitada participação dos produtores. É inegável que este conjunto de problemas exerce repercussão direta e negativa na credibilidade da ATER, sendo mais aguda quanto maiores forem a sua proximidade ao produtor rural e a sua responsabilidade funcional no SNIA.

61 Os dois ministérios eram o da Agricultura (MAPA) e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). A partir da reforma administrativa de 2016, com o novo governo, as funções do MDA foram transferidas para a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (Sead), agora vinculada a outro ministério, Ministério da Casa Civil da Presidência da República.

3. O DESENVOLVIMENTO DA AGRICULTURA E O PAPEL DA ATER E PESQUISA AGRÍCOLA EM PAÍSES SELECIONADOS

O objetivo deste capítulo é o de proporcionar uma caraterização ampla e evolutiva dos principais serviços de extensão rural e, complementarmente, da pesquisa agrícola, em países selecionados, de forma articulada com o ambiente agrícola que os circunda.

O interesse central dessa caracterização é que sejam identificados elementos analíticos que possibilitem o estabelecimento de referências conceituais e funcionais, que possam permitir uma adequada compreensão entre o perfil institucional, organizacional e operacional desses serviços, em comparação com os seus congêneres no Brasil.

O capítulo é desenvolvido a partir da discussão sobre as razões que nortearam a seleção dos países e pela análise do ambiente agrícola nos quais se inserem os serviços de pesquisa agrícola e extensão rural, com ênfase especial para a relação desses serviços com os respectivos Sistemas Nacionais de Inovação Agrícola.

Em seguida, descreve-se a evolução dos serviços de extensão rural e de pesquisa agrícola nos países selecionados, com o intuito de se identificar elementos de diferenciação analítica na trajetória de cada um deles, que possam explicar ou conformar traços de sustentabilidade institucional nessas trajetórias.

As referências mais importantes aqui obtidas para cada país e apresentadas sob a forma de “elementos de síntese” são, ao final, destacadas e ordenadas na "Síntese dos Elementos", devendo constituir-se em insumos indicativos que contribuam para o debate de um novo perfil da ATER e do extensionista brasileiros.