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Conflito entre direito ao meio ambiente e direito à moradia

Parte III – Princípios

Capítulo 5 Direito de Propriedade, Direito ao Meio Ambiente, Direito à

5.8. Conflito entre direito ao meio ambiente e direito à moradia

No artigo “Planejamento urbano no Brasil: as idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias”, a Profª. Ermínia Maricato relata o quadro que levou a população de baixa renda a construir suas moradias em áreas de proteção ambiental, especialmente as áreas de proteção aos mananciais, no que concerne à Região Metropolitana de São Paulo.

Para ela, a exclusão urbanística representada pelas ocupações ilegais vem sendo ignorada na representação da cidade oficial. Elas não estão inseridas no mercado imobiliário formal e sua relação com o Poder Público tem sido de mero favor, baseada em anistias periódicas que permitem a regularização de imóveis e implantação de alguma infra-estrutura. Essa cidade informal é palco de segregação territorial, de falta de saneamento, de problemas ambientais como riscos de desmoronamento e enchentes e de violência.

Não se pode considerar, contudo, que a falta de planejamento urbano tenha sido causadora do caos. O planejamento urbano, importado dos países centrais, há muito vem sendo utilizado no país. Ocorre que ele atinge apenas a cidade formal. O mesmo se pode dizer da legislação urbanística. A maioria das cidades grandes apresenta leis de parcelamento do solo, de zoneamento, códigos de obras. Ao lado dessa regulação abundante, contudo, coexiste a flexibilidade da cidade ilegal. Percebe-se, pois, que os planos urbanísticos não impediram que as cidades tivessem problemas graves, já que o crescimento tem se dado ao largo dos planos. Habitação social, transporte público, saneamento e drenagem não figuram como temas importantes nos planos.

A história do planejamento urbano no Brasil mostra grande distância entre a retórica dos planos e sua prática: direitos universais no discurso, discriminação e desigualdade na prática da gestão urbana. O “plano discurso” sugere preocupação social, porém não é cumprido. Foi durante o regime militar que o planejamento urbano mais se desenvolveu. O plano era considerado a solução para o caos urbano. Nesse mesmo período, contudo, as cidades brasileiras tiveram seu maior crescimento, que se deu fora da lei.

Um aparato regulatório exagerado convive com uma radical flexibilidade. Essa regulação desconsidera a condição de ilegalidade em que vive grande parte da população brasileira em relação à moradia e à ocupação da terra. “A ocupação ilegal da terra urbana é não só permitida, como parte do modelo de desenvolvimento urbano no Brasil”38. A ilegalidade na provisão de moradias urbanas é funcional para a manutenção do baixo custo de reprodução da força de trabalho. A principal alternativa de moradia popular tem sido a combinação do lote precário e irregular na periferia urbana com a autoconstrução da moradia.

O poder público acredita que resolverá os problemas urbanos apenas legislando – sobretudo através de proibições. Apesar de ineficaz, essa estratégia é retomada continuamente. Percebe-se que existe um hiato entre o arcabouço jurídico e a realidade social.

A invasão de terra urbana tem sido parte do processo de urbanização. Ela é estrutural e institucionalizada em razão do mercado imobiliário excludente e da ausência de políticas sociais. Invasão, termo muitas vezes rejeitado, é a ocupação de terra alheia, na maioria dos casos por falta de alternativas. Os loteamentos ilegais, por outro lado, não são terras invadidas, mas apresentam ilegalidades em relação à titulação ou às exigências urbanísticas.

A ilegalidade é resultado da urbanização que segrega e exclui. São características do processo de urbanização:

38 MARICATO, Ermínia.Planejamento urbano no Brasil: as idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias. In

ARANTES, Otília, MARICATO, Ermínia e VAINER, Carlos. A cidade do pensamento único: desmanchando

1) a industrialização com baixos salários e o mercado residencial restrito. Nos anos 90, o financiamento habitacional não atinge quem ganha menos de dez salários mínimos. Como, na Região Metropolitana de São Paulo, apenas 40% das famílias têm renda igual ou superior a dez salários mínimos, pode-se concluir que 60% da população está excluída do mercado formal de moradia. A produção pública não gera impacto no mercado devido à baixa oferta. Logo, essa demanda terá que procurar solução no mercado informal;

2) a gestão urbana pelos Municípios e Estado tem tradição de investimento regressivo, ou seja, os investimentos públicos se orientam para a valorização das propriedades fundiárias, e não para a democratização do acesso à terra para moradia;

3) legislação ambígua ou aplicação arbitrária da lei. O Estado não tem exercido o poder de polícia. A ocupação de terras urbanas tem sido tolerada, porém não é em qualquer área que a tolerância prevalece. Nas áreas valorizadas pelo mercado, a lei se aplica. Já nas áreas desvalorizadas ou inviáveis para o mercado, a lei pode ser transgredida. De fato, quando ocorre invasão em área valorizada, o proprietário ajuíza ação de reintegração na posse, e seu direito de propriedade tem sido assegurado pelas decisões da Justiça. Já nas áreas desvalorizadas, é celebrado um negócio entre os proprietários e os moradores, e a transgressão aos padrões urbanísticos e ambientais não recebe a mesma tutela. Não deixa de ser curioso que o direito de propriedade, que é individual, seja melhor resguardado que os direitos urbanísticos e ao meio ambiente, que são direitos coletivos.

Como conseqüências deste processo de urbanização surgem a predação ambiental e a escalada da violência, que pode ser medida pelo número de homicídios ocorridos nas periferias.

Em São Paulo, a moradia pobre ocupa as áreas de proteção aos mananciais, protegidas por legislação estadual, municipal e até federal. São as áreas que apresentaram maiores índices de ocupação nos anos 80.

“As áreas ambientalmente frágeis – beira de córregos, rios e reservatórios, encostas íngremes, mangues, áreas alagáveis, fundos de vale – que, por essa condição, merecem legislação específica e não interessam ao mercado legal, são as que ‘sobram’ para a moradia de grande parte da população. As

conseqüências são muitas: poluição dos recursos hídricos e dos mananciais, banalização de mortes por desmoronamentos, enchentes, epidemias, etc.

É freqüente esse conflito tomar a seguinte forma: os moradores já instalados nessas áreas, morando em pequenas casas onde investiram suas parcas economias enquanto eram ignorados pelos poderes públicos, lutam contra um processo judicial para retirá-los do local. Nesse caso eles são vistos como inimigos da qualidade de vida e do meio ambiente. A remoção como resultado do conflito não é, entretanto, a situação mais corrente. Na maior parte das vezes a ocupação se consolida sem a devida regularização.”39

Não surpreende, pois, que a população das áreas de proteção aos mananciais, tenha chegado a 1.800.000 pessoas, cerca de 10% da população da Região Metropolitana de São Paulo, sendo que, destas, 1.600.000 residem nas áreas das Represas Guarapiranga e Billings40.

Ver Figura 11 – Fotos: Ocupações em APM

Essa ocupação crescente tem sido amplamente divulgada como predatória ao meio ambiente, formando-se a imagem de que as pessoas que encontram sua única opção de moradia em ocupações ou loteamentos irregulares nas áreas de mananciais são inimigas do meio ambiente.

É curioso notar que, conforme mencionado acima, antes da existência de legislação específica de proteção ao meio ambiente, este era tutelado com base em normas que protegiam o direito de vizinhança e normas sanitárias.

Estas últimas serviram de fundamento para diversas intervenções urbanas de caráter higienista ocorridas no início do século XX, conforme relato de João Sette Whitaker Ferreira:

“Nesse processo, e nas demais intervenções de urbanização no Rio do início do século passado, em que morros foram desmontados, aterros criados, e a natureza bastante modificada para a construção da capital, não havia sequer possibilidade de contestação por parte da população atingida, e os propósitos de uma “higienização social” estavam muito pouco escondidos. A população pobre foi sistematicamente expulsa dos cortiços e dos morros centrais, deslocando-se invariavelmente para locais distantes – menos valorizados – ou mesmo para outros morros. Tais planos urbanísticos, que ficaram conhecidos como de Melhoramentos e Embelezamento, repetiram também em São Paulo essa mesma lógica, assim como em muitas outras cidades brasileiras, como Curitiba, Porto Alegre, Santos, Manaus, Belém. Amparadas na preocupação de higienização dos bairros mais pobres, onde se verificava uma relação direta entre insalubridade e doenças como a febre amarela, entre outras, as intervenções da época aproveitavam tal

39 MARICATO, Ermínia. Ob. cit.

40 Relatório de Qualidade Ambiental do Estado de São Paulo – 2003, editado pela Secretaria Estadual do Meio

justificativa para pouco a pouco promover a expulsão da população mais pobre das áreas centrais e renovar esses bairros com novos padrões de ocupação.” 41

No final do século XX e início do XXI, é possível ouvir quem defenda a desocupação das áreas de mananciais, em nome da preservação ambiental, como se o direito à moradia fosse incompatível com a preservação ambiental.

Ora, conforme visto acima, a ocupação das áreas de mananciais se deu em virtude da falta de condição econômica da classe trabalhadora para adquirir moradias no mercado formal, aliada à falta de capacidade do Poder Público de suprir essa demanda. Assim, as áreas com restrições à ocupação, desvalorizadas, foram ocupadas pela população de baixa renda, sem que o Poder Público fiscalizasse ou impedisse a ocupação. Não bastassem os prejuízos ambientais ocorridos no momento da ocupação, tais como remoção da cobertura vegetal, erosão e assoreamento dos corpos d’água, estes danos são agravados pela falta de investimento estatal em infra- estrutura, já que, conforme visto acima, tais investimentos são direcionados preferencialmente para as áreas ocupadas pelas classes dominantes. De fato, após a ocupação, a ausência de rede de coleta de esgoto e de drenagem e de coleta de lixo só fazem piorar a degradação que já havia ocorrido.

Não se pretende aqui advogar que as áreas de proteção ambiental sejam mais e mais ocupadas. Ao contrário, as áreas de proteção que estejam desocupadas devem ser mantidas assim, ou devem nelas ser implantados usos compatíveis com sua destinação. Contudo, no que tange às áreas que já tenham sido ocupadas, e cuja ocupação esteja consolidada, há necessidade de adoção de medidas para mitigar o impacto ambiental, providência apta a atender o interesse geral da sociedade na preservação ambiental e a contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos moradores.

Conforme prega Edésio Fernandes, a discussão acerca do conflito crescente entre as políticas que visam à proteção do direito social à moradia e as políticas de preservação ambiental é um falso conflito, já que a colocação de ênfase no “passivo ambiental” prejudica a discussão sobre o “passivo socioambiental”. Ora, tanto

o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado quanto o direito à moradia são direitos constitucionalmente protegidos, não se podendo cogitar da prevalência de um sobre o outro, e sim devendo ser ambos compatibilizados de modo a viabilizar alternativas para a moradia da população de baixa renda.42