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Parte IV – Institutos Jurídicos

Capítulo 10 – Remoção da população

10.2. Despejos forçados e decisões judiciais

É bem verdade que, timidamente, inicia-se no âmbito do Poder Judiciário uma tendência no sentido de analisar o princípio da função social da propriedade e o direito à moradia na apreciação de Ações de Reintegração na Posse e Ações Reivindicatórias. Este é o caso do Processo nº 70008757270, do Tribunal de

Justiça do Rio Grande do Sul, em decisão datada de 24/08/204, que vale a pena transcrever:

“REINTEGRAÇÃO DE POSSE. ÁREA MUNICIPAL.

Tratando-se de decisão liminar, embora a área invadida seja bem público, necessário observar questões de maior relevância, de cunho constitucional, como a dignidade da pessoa humana, o direito à moradia, entre outros. Deve o Julgador, se possível, buscar uma solução conciliatória para a lide. Agravo de instrumento provido.

A questão controvertida diz respeito ao fato de que interposta ação de reintegração de posse pelo

Município de Estrela, a magistrada a quo, liminarmente, concedeu a reintegração, conferindo o prazo de 48 horas para desocupação compulsória, sob pena de expedição do mandado.

Questões como a presente vem preocupando o Poder Judiciário que, muitas vezes, se tem mostrado sensível aos justos reclamos daqueles que se encontram a total desabrigo econômico e social.

Muito embora se deva buscar na disciplina da lei civil os subsídios jurídicos necessários à solução da controvérsia, não se pode esquecer da particularidade desse novo fato social, as invasões de áreas públicas, com base nos preceitos constitucionais como direito à moradia, a função social da propriedade e o princípio da dignidade humana.

Tenho como certo que a liminar em demanda possessória não se apresenta como fatal conseqüência da postulação. Ao contrário, sobre o seu deferimento ou não, tem o magistrado que exercer julgamento. É o que decorre do art. 928 do CPC. A apreciação judicial não há de ser norteada pela prodigalidade da concessão de liminares. Como recomenda Adroaldo Furtado Fabrício, “não se há de liberalizar

demasiadamente a concessão de liminares possessórias, à base de simples inferências ou juízos de mera possibilidade, como por vezes se constata... Parece razoável, de resto, que o Juiz seja um pouco mais exigente quando se trata de reintegração (...). A distinção entre as conseqüências práticas é relevante, e deve ser levada em conta”(Comentários ao CPC, vol. VIII, Tomo III, 1980, pp.547-548).

Se assim é do ponto de vista estritamente jurídico, creio que também o seja em termos da responsabilidade da instituição perante o quadro social em que se vive. Acredito firmemente, que o Poder Judiciário está sendo chamado a tomar posição a propósito de demandas de forte clamor popular como esta. Será ele mais uma instância de poder contra o cidadão, ou será uma última instância de poder, a favor dele. Não se pode esquecer, ainda, que, ao decidir, muitas vezes, deve o julgador buscar inspiração na teoria da proporcionalidade: se a situação de fato posta em juízo encerra direitos e interesses de tal forma relevantes que, qualquer solução que se lhe empreste, não vai satisfazer o interesse de realizar-se justiça ideal deve o julgador buscar a solução menos danosa. Qual a solução menos danosa para a espécie: dar as costas à família necessitada, inclusive, com três menores, que se encontra no imóvel, enxotando-a com suas tralhas e suas dores para o relento, ou postergar um pouco mais a solução, mostrando compreensão com a gravidade desse drama brasileiro, que não chega a gerar gravame irreversível para a parte contrária?

Sabe-se, por exemplo, que nos termos do Código Penal não pratica delito quem age em estado de necessidade, ou em legítima defesa. Por outro lado, o direito à moradia é assegurado constitucionalmente e, salvo prova em contrário, está em estado de necessidade quem não dispõe de teto para morar. São questões que somente poderão ser abordadas, após regular instrução processual, com a ampla dilação probatória.

Cabe referir, que não se pretende incentivar a invasão de áreas públicas, mas sim provocar o Poder Público a encontrar soluções eficazes para o problema habitacional.

Por fim, lembro que o atual Código de Processo Civil, coloca em relevo a função conciliatória do Juiz, isto é, o Poder Judiciário não é uma instância que meramente diz a lei, mas que busca encontrar a harmonia

dos interesses e a solução pacífica dos litígios. Mais uma razão para que não se abdique de qualquer possibilidade de conciliar os interesses, pela ordem precipitada de reintegração de posse”.

Também o Superior Tribunal de Justiça proferiu recente decisão resguardando o direito de moradia em prol do direito de propriedade, no Recurso Especial nº 75659/SP:

“CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. TERRENOS DE LOTEAMENTO SITUADOS EM ÁREA FAVELIZADA. PERECIMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE. ABANDONO. CC, ARTS. 524, 589, 77 E 78. MATÉRIA DE FATO. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7-STJ.

I. O direito de propriedade assegurado no art. 524 do Código Civil anterior não é absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono de terrenos de loteamento que não chegou a ser concretamente implantado, e que foi paulatinamente favelizado ao longo do tempo, com a desfiguração das frações e arruamento originariamente previstos, consolidada, no local, uma nova realidade social e urbanística, consubstanciando a hipótese prevista nos arts. 589 c/c 77 e 78, da mesma lei substantiva.

II. “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” - Súmula n. 7-STJ. III. Recurso especial não conhecido.”

No âmbito da legislação, o Novo Código Civil prevê, em seu art. 1.228, que:

“§ 4º. O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

§ 5º. No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.”

Os dispositivos transcritos contêm previsão de limitação de ordem social ao direito de propriedade, instituindo uma forma nova de perda da propriedade. A doutrina jurídica diverge acerca da natureza jurídica da inovação, havendo quem sustente tratar-se de uma nova forma de usucapião coletivo (Carlos Alberto Dabus Maluf), quem a trate pela expressão posse-trabalho (Maria Helena Diniz) e quem a considere um contra-direito processual (Fredie Didier Jr). A tendência mais aceita é considerá-la como desapropriação judicial, uma vez que, assim como a desapropriação, é uma forma de perda compulsória da propriedade, porém determinada pelo juiz; outra semelhança é a previsão de pagamento de justa e prévia indenização (Nelson Nery Jr e Kioitsi Chicuta).

Para Camilo Barbosa e Rodolfo Pamplona Filho79, o instituto é uma desapropriação especial, que tem como premissa o ajuizamento de ação reivindicatória pelo proprietário da área, devendo esta ser extensa e estar ocupada por número considerável de pessoas, que devem ali ter realizado obras e serviços considerados de interesse social e econômico relevantes pelo juiz.

Aspecto interessante refere-se ao pagamento da indenização. Isso porque somente com o pagamento poderá a sentença valer como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores. Ocorre que o Código Civil não menciona quem será o responsável pelo pagamento da indenização. Camilo Barbosa e Rodolfo Pamplona Filho consideram que o responsável pelo pagamento será o Município. Já para o Desembargador Kioitsi Chicuta “a indenização fixada deve ser suportada por aqueles que irão se beneficiar com a aquisição do direito de propriedade. Não se vê como se possa transferir ao Estado tal responsabilidade”80.

Segundo o Desembargador, a norma foi inspirada em caso concreto ocorrido em São Paulo, no qual o Tribunal de Justiça decidiu que “os lotes de terreno urbanos tragados por uma favela deixam de existir e não podem ser recuperados, fazendo, assim, desaparecer o direito de reivindicá-los. O abandono dos lotes urbanos caracteriza uso anti-social da propriedade, afasto que se apresenta do princípio constitucional da função social da propriedade. Permanece, todavia, o direito dos proprietários de pleitear indenização contra quem de direito” (Apelação nº 212.726). A ação reivindicatória foi julgada improcedente.

De fato, a atribuição de responsabilidade ao Município pelo pagamento da indenização não parece de acordo com a sistemática processual vigente, já que a sentença somente gera efeito entre as partes no processo. Ora, na ação de reivindicação, será autor o proprietário da área, e serão réus seus ocupantes. Não sendo o Município parte no processo, não há como atribuir-lhe responsabilidade.

79 BARBOSA, Camilo de Lelis Colani; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Compreendendo os novos limites à

propriedade: uma análise do art. 1228 do Código Civil brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 679, 15 mai. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6725>. Acesso em: 07 out. 2005.

Ademais, tal pretensão destoa do princípio de que a propriedade será tutelada desde que tenha uma função social. Não se pode atribuir ao Município obrigação de indenizar o proprietário que não dava a sua propriedade qualquer função social, a tal ponto que ela chegou a ser ocupada por considerável número de pessoas, que ali realizaram obras e serviços de considerável interesse social e econômico.

Na prática, parece que a indenização será fixada e, inviável seu pagamento, os possuidores permanecerão na área, sem qualquer título. Somente no caso de a Prefeitura ou os próprios ocupantes, por ter interesse no registro de título, se disporem a arcar com o pagamento da indenização é que os proprietários serão ressarcidos.

Em suma, é necessário reconhecer os grupos sociais vulneráveis como titulares de direito à moradia, implementando políticas públicas que viabilizem seu acesso à terra e à propriedade. Essa população deve ter os direitos à participação e à informação garantidos, com possibilidade de influir nas decisões que a atinjam.

Contudo, caso o despejo forçado seja iminente, o Estado deverá:

a) antes de realizar qualquer despejo forçado, especialmente os que envolvam grandes grupos de pessoas, o Estado deverá explorar todas as alternativas possíveis, consultando as pessoas afetadas, a fim de evitar ou de minimizar o uso da força ou, ainda, impedir o despejo;

b) assegurar às pessoas afetadas pelo despejo que elas possam utilizar os remédios legais (direito de defesa e recurso das decisões judiciais de despejo);

c) assegurar a todas as pessoas afetadas pelos despejos forçados o direito à indenização adequada referente aos bens pessoais ou reais de que forem privados;

d) garantir proteção processual das pessoas afetadas pelos despejos, de forma a resguardar o direito de defesa das pessoas afetadas e de forma que todos os notificados tenham prazo suficiente para defender-se e para reorganizar sua vida;

80 CHICUTA, Kioitsi. Breves considerações sobre a desapropriação judicial e a concessão real de uso in Boletim do IRIB em revista. Julho e Agosto de 200 – nº 311.

prestar a todos os interessados, em prazo razoável, informação relativa ao despejo previsto e, se for o caso, sobre o fim a que se destinam as terras e residências; garantir a presença de funcionários públicos ou seus representantes, especialmente quando o despejo afete grande número de pessoas; identificar com precisão e exatamente todas as pessoas que serão atingidas pelo despejo; garantir que os despejos não sejam executados quando haja mau tempo ou seja noite, oferecendo os correspondentes remédios jurídicos, em cada caso; assegurar a prestação de assistência jurídica às pessoas que necessitem pedir indenização nos tribunais; ter locais apropriados para a guarda dos bens e utensílios pessoais das pessoas que serão despejadas; oferecer abrigos para as pessoas despejadas.81