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Conflito entre direito de propriedade e direito à moradia

Parte III – Princípios

Capítulo 5 Direito de Propriedade, Direito ao Meio Ambiente, Direito à

5.4. Conflito entre direito de propriedade e direito à moradia

O conflito entre direito de propriedade e direito à moradia pode ser enfocado a partir da ótica da economia e da ótica jurídica.

A análise neoclássica da economia de mercado pressupõe quatro pontos: que a economia é privada e livre; que os agentes econômicos agem de forma racional e independente; que a economia é competitiva; e que existe um ambiente de certeza e de perfeita informação. Neste quadro, os preços são sinais adequados dos custos e benefícios privados envolvidos na produção e no consumo. “Num mundo de mercados perfeitos, visualiza-se o estado, fundamentalmente, como a entidade que define e garante o direito de propriedade e as modalidades de contratos de troca”28.

No mercado de terra, contudo, o preço é composto pela dimensão espacial somada à locação, ou seja, à posição relativa da terra dentro do espaço urbano, considerando sua acessibilidade (custo do transporte necessário para vencer as distâncias). No Brasil, os “baixos níveis de renda limitam a participação de parcela considerável da população no chamado mercado formal de habitação, através do qual os consumidores manifestariam sua estrutura de preferências e realizariam sua escolha residencial”29. De fato, nos países com mercado abrangente, a demanda por habitação é satisfeita pela construção civil, enquanto no Brasil a maior parte da população não consegue pagar os preços inacessíveis do mercado formal, restando-lhe escolher entre as seguintes alternativas:

1) subdivisão de velhos prédios em unidades menores e sublocação;

2) autoconstrução em loteamentos de periferia;

28 SERRA, Mozart Vitor e SERRA, Maria Tereza Fernandes. As invasões de terra urbana: o alcance e as limitações

da economia neoclássica no seu exame. In FALCÃO, Joaquim de Arruda (org.). Conflito de Direito de Propriedade:

invasões urbanas. Rio de Janeiro: Forense, 1984. 29 Idem.

3) ocupação ilegal de propriedades públicas ou privadas.

Segundo Serra e Serra, “para um consumidor com renda baixa e instável, colocado diante da escolha entre o bem habitação e o conjunto de demais bens e serviços, a construção gradativa da habitação em loteamentos de periferia é a solução residencial que permite a maximização de suas preferências ao longo do tempo”30. Outras escolhas, com pagamentos fixos, não lhe permitem adaptar seu consumo a suas flutuações de renda.

O mercado de terra urbana sofre os efeitos do monopólio, por haver grande concentração de terra nas mãos de poucos proprietários, sofrendo, ainda, os efeitos de limitações determinadas pelo Estado e pela provisão de serviços. A terra é um produto diferenciado, em função do elemento locacional, da disponibilidade de infra- estrutura, das características topográficas e de vizinhança e da possibilidade de utilização (uso e ocupação). Além disso, cada lote é único, logo seu proprietário detém o monopólio ocasional.

A ação governamental tem forte influencia na formação diferenciada dos preços da terra, através da provisão da infra-estrutura, obras viárias, políticas de transporte e legislação urbanística sobre parcelamento, uso do solo e edificações.

A insuficiência de terra servida a preços acessíveis acarreta a ocupação ilegal de terrenos. A exigência de implantação de padrões mínimos de infra- estrutura dificulta a oferta de lotes com preços adequados à capacidade de pagamento e de acordo com a demanda das populações urbanas de baixa renda. Como o financiamento só abrange imóveis regulares, a dívida habitacional fica acima da possibilidade da população mais pobre. Assim a demanda efetiva dirige-se ao mercado informal.

Ademais, os controles urbanísticos introduzem ganhos e perdas econômicos para os diferentes grupos de renda. A legislação urbanística, embora passível de alterações, é mais rígida do que conviria aos mercados urbanos.

Na ótica do mercado, a invasão requer ação do Estado no sentido de restaurar a ordem quebrada e fazer valer o princípio da propriedade privada, o que envolve, necessariamente, a restituição da terra ao proprietário.

Essa visão, contudo, não tem como prevalecer em relação às invasões nas grandes cidades brasileiras, pois a expulsão de invasores gera a recorrência de invasão em outra propriedade.

Logo, não há como se deixar a solução da questão da moradia aos mecanismos de mercado, sendo imprescindível a intervenção governamental.

Ver Figura 10 – Fotos: Placas

Cabe, agora, fazer uma reflexão sob a ótica do Direito.

Conforme já foi dito, a atual Constituição, de 1988, no art. 5º, inc. XXII, garante o direito de propriedade e, no inc. XXIII, determina que a propriedade atenderá sua função social. Relativamente à propriedade urbana, a Carta Magna prevê, no art. 182, § 2º, que a propriedade cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade, expressas no plano diretor.

Verifica-se, pois, que a norma garante a apropriação privada de bens, porém determina que o direito de propriedade tem que ter uma função social. Pode-se concluir, pois, que a apropriação privada, por si só, não confere à propriedade qualquer função social. Tratam-se de dois direitos incidentes sobre o mesmo objeto. O primeiro direito é o direito individual do proprietário, oponível à sociedade. O segundo direito é o coletivo, oponível ao proprietário, que tem por conteúdo a garantia de que toda a propriedade tenha uma função social31.

A Profª Sonia Rabello de Castro tece consideração inovadora acerca da tutela constitucional ao direito de propriedade abranger bens materiais e imateriais, o quê, segundo ela, pode gerar dois aspectos interessantes. O primeiro é que dois indivíduos podem ter direitos sobre o mesmo objeto, ambos dispondo de garantia

31 CASTRO, Sonia Rabello de. Algumas Formas Diferentes de se Pensar e de Reconstruir o Direito de Propriedade e os Direitos de Posse nos “Países Novos”. In FERNANDES, Edésio (org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

constitucional de proteção patrimonial. O segundo aspecto é que os direitos, ainda que exclusivos, não são absolutos. Conclui a professora que, se a legislação não previr solução de adaptação da convivência dos dois direitos sobre o mesmo objeto, poderá haver situações de conflito. “Assim, não há porque pensar, a priori, que são excludentes a existência de direitos diversos, e conflitantes entre si, incidentes sobre um imóvel urbano. Um indivíduo poderia ter o direito dominial real, e outro, o direito possessório de uso – ambos bens patrimoniais, e como tal constitucionalmente tutelados32”.

O desafio que se apresenta é a conciliação entre o direito possessório do morador e o direito real do proprietário. Alguns critérios são dados pela Constituição. Em primeiro lugar, a propriedade que não atenda sua função social não merece ser garantida, hipótese em que o direito à moradia há que prevalecer. Em segundo lugar, não é qualquer posse que deverá prevalecer sobre o direito de propriedade – o legislador, conforme se verá adiante, prestigia a posse para fim de moradia ou de obras e serviços de interesse social ou econômico relevante.

Colocados estes dois critérios, incumbirá ao Poder Judiciário analisar as circunstâncias do caso concreto para dar-lhe a devida solução.