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Conflitos no campo

No documento Giane Alvares Ambrosio Alvares (páginas 112-117)

5 PROCESSO PENAL, DIREITO AO PROTESTO E DEMOCRACIA

5.3 Movimentos sociais e protestos no Brasil: violência e repressão no meio rural e urbano

5.3.1 Conflitos no campo

Conforme entendimento expressado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH) em 2008, os conflitos relacionados à questão da terra no interior do país representam ainda um grave problema social390.

A Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde a sua criação em 1975, elabora anualmente relatórios com levantamento de dados sobre conflitos e violência no meio rural brasileiro391.

Ao analisar os dados recolhidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) nos últimos 30 anos, Helaine Saraiva Matos e outros inicialmente esclarecem que a metodologia adotada para produzir esses relatórios contempla conflitos e casos de violência ocorridos no espaço agrário brasileiro envolvendo disputas por terra, água, trabalho (condições precárias de trabalho e trabalho análogo ao escravo), conflitos em tempos de seca na região nordeste, conflitos sindicais e em áreas de garimpo392.

Os conflitos por terra catalogados pela CPT envolvem em geral disputas pela posse, uso e propriedade da terra, acesso aos recursos naturais (seringais, babaçuais ou castanhais), posseiros, assentados, quilombolas, geraizeiros, indígenas, pequenos arrendatários, camponeses, ocupantes, sem terra, seringueiros, camponeses de fundo de pasto, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, faxinalenses, etc. São registrados como conflitos por terra as ações de ocupações e acampamentos de trabalhadores rurais, quilombolas e indígenas393.

Ainda de acordo com a metodologia adotada pela Comissão Pastoral da Terra, os demais conflitos catalogados referem-se às ações coletivas que têm por objetivo garantir o uso e a preservação dos recursos hídricos e lutas contra a instalação de barragens. Nesse último caso, trabalhadores atingidos por barragens realizam no país lutas pela manutenção de seus territórios ou por reassentamento

390 BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Brasil Direitos Humanos,

2008: a realidade do país aos 60 anos da Declaração Universal. Brasília: SEDH, 2008, p.235.

391 CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014, p.9.

392 MATOS, Helaine Saraiva; CUNHA, Gabriela Bento Cunha e ALENCAR, Francisco Amaro Gomes de Alencar. Panorama dos conflitos e da violência no espaço agrário brasileiro de 1985-2014. In: CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014, p.68.

393 CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014, p.13-14.

em condições dignas394. São catalogadas também as ações coletivas que reivindicam condições básicas de sobrevivência ou políticas de convivência com o semiárido em tempos de seca, disputas em áreas de garimpo, entre garimpeiros, empresas e o Estado, ações que buscam garantir o acompanhamento e a solidariedade do sindicato aos trabalhadores, contra as intervenções, as pressões de grupos externos, ameaças e perseguições aos dirigentes e filiados, bem como os conflitos trabalhistas envolvendo casos de trabalho escravo ou de superexploração da mão de obra. Na categoria de conflitos, são registradas, ainda, as manifestações de protesto realizadas contra atos de violência sofrida, restrição de direitos, reivindicações de políticas públicas e contestações a políticas governamentais. Registra-se, por fim, também as diversas formas de violência praticadas contra os trabalhadores395.

Os tipos de violência exercida no meio rural são assim catalogados: violência contra a pessoa, envolvendo assassinatos, tentativas de assassinato ameaças de morte, pessoas feridas e presas em decorrência de conflitos396, e

violência patrimonial e física no contexto de conflitos por terra (ocupação e posse), onde são apresentados os números de famílias expulsas, despejadas, ameaçadas de despejo, ameaçadas de expulsão, além de moradias, bens e plantações destruídas397.

Verifica-se, do 30º levantamento anual sobre violência no campo realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 2014, que entre os anos de 1985 e 2014, foram recorrentes os conflitos entre camponeses, fazendeiros, empresas rurais e o Estado398. Ocorreram no país 28.805 conflitos no campo399, com 19 milhões de pessoas envolvidas400.

Como apontam Helaine Saraiva Matos e outros, esses conflitos ocorridos em diferentes contextos sociais no espaço rural brasileiro desencadeiam, em grande

394 No caso das lutas contra a instalação de barragens tem particular protagonismo no Brasil o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

395 CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo

– Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014,p.13-14.

396 CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014, p.15.

397 CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014, p.87.

398 CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014.

399 Nesse período, a região Nordeste representa 36% dos conflitos (10.488), a região Norte 27% (7.770), a região Centro-Oeste 13%, a região Sudeste 15% e a região Sul 9% (2.505).

400 MATOS, Helaine Saraiva; CUNHA, Gabriela Bento Cunha e ALENCAR, Francisco Amaro Gomes de Alencar. Panorama dos conflitos e da violência no espaço agrário brasileiro de 1985-2014. In: CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014, p.70.

parte das vezes, atos de violência contra a pessoa, com assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças de morte, ferimentos e prisões401 de trabalhadores, lideranças de movimentos sociais e sindicais e defensores de direitos humanos.

A análise dos dados apresentados revela que entre 1985 e 2014, em decorrência dos conflitos verificados no meio rural, 26.435 pessoas foram feridas402. A consolidação dos dados do período compreendido entre 1985 e 2013 aponta que 1678 pessoas foram assassinadas. Neste universo, 106 casos foram levados a julgamento e resultaram na condenação criminal de 26 mandantes e 85 executores403. No ano de 2014, ocorreram no meio rural brasileiro o assassinato de 36 pessoas, 56 tentativas de assassinato e 182 casos de pessoas ameaçadas de morte404.

De acordo com os dados pesquisados, no ano de 2014 ocorreram 1018 casos de violência decorrentes de disputas por terra (ocupações, disputas pela posse, retomada de terras e acampamentos) e 141 casos de conflitos relacionados a questões trabalhistas (trabalho escravo405 e superexploração do trabalho rural406) e

127 conflitos por água407.

Os dados reunidos pela CPT demonstram também que, apenas em 2014, foram realizadas 110 diferentes mobilizações de protesto das mais variadas ordens no espaço agrário do país408.

Por outro lado, dados fornecidos pela Comissão Pastoral da Terra assinalam que entre trabalhadores rurais, lideranças de movimentos sociais e sindicais e defensores de direitos humanos em geral, foram catalogados entre os anos de 1995 e 2014, 3.964 pessoas presas em todo o país409.

401 MATOS, Helaine Saraiva; CUNHA, Gabriela Bento Cunha e ALENCAR, Francisco Amaro Gomes de Alencar. Panorama dos conflitos e da violência no espaço agrário brasileiro de 1985-2014. In: CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014, p.69.

402 MATOS, Helaine Saraiva; CUNHA, Gabriela Bento Cunha e ALENCAR, Francisco Amaro Gomes de Alencar. Panorama dos conflitos e da violência no espaço agrário brasileiro de 1985-2014. In: CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014, p.71.

403 CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo

– Brasil 2013. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2013, p.116.

404 CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014, p.118.

405 131 casos, envolvendo 2.493 trabalhadores, com a libertação de 1241. 406 Dez casos, envolvendo 294 trabalhadores.

407 CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014, p.67.

408 CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2014. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2014, p.136.

409 CPT. Tabelas sobre Violência no Campo contra a Pessoa de 1995-2014. Disponível em: http://www.cptnacional.org.br/index.php/downloads/viewcategory/16-violencia-contra-a-pessoa. Acesso em: 15.dez.2015.

Cabe mencionar, ainda, informações a respeito de alguns casos emblemáticos que tiveram repercussão em âmbito internacional e que revelam a atuação violenta, por parte de particulares e do Estado, em conflitos e protestos no meio rural.

Em 17 de abril de 1996, no contexto de uma marcha realizada por trabalhadores rurais no Estado do Pará, 19 pessoas foram mortas por ação da Polícia Militar. O episódio, que ficou conhecido como “Massacre de Eldorado dos Carajás”, foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos que, em 20 de fevereiro de 2003, proferiu decisão pela admissibilidade do caso perante a Comissão, por violação aos artigos 4 (direito à vida); 5 (direito à integridade pessoal); 8 (garantias judiciais); 25 (direito a um recurso judicial); e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) da Convenção Americana, juntamente com o artigo 1.1 do tratado (obrigação de respeitar os direitos constantes da Convenção)410. O caso ainda não teve julgamento de mérito no âmbito da OEA. No âmbito interno, somente os comandantes militares da operação policial sofreram condenação criminal. Em 2002, em julgamento proferido pelo Tribunal do Júri, o Coronel Mário Colares Pantoja foi condenado a 228 anos de prisão e o Capitão José Maria Pereira de Oliveira a 158 anos. O último recurso da defesa dos condenados e a decretação de suas prisões em decorrência da sentença penal transitada em julgado ocorreu no ano de 2012411.

Outro caso de violência internacionalmente conhecido foi o conflito ocorrido no Estado do Paraná, no dia 2 de maio de 2000. Naquela ocasião, segundo dados apresentados perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 50 ônibus de trabalhadores rurais se dirigiam à cidade de Curitiba, onde participariam de uma manifestação em defesa da reforma agrária. Consta que policiais militares sem ordem judicial realizaram o bloqueio da rodovia BR 277 para impedir que os manifestantes prosseguissem ao seu destino. Em razão do bloqueio os trabalhadores rurais desceram dos ônibus, ocasião em que policiais militares passaram a disparar suas armas de fogo, ferindo mortalmente o trabalhador Antonio Tavares Pereira e causando lesões corporais em outras 185 pessoas. O governo do

410 CIDH. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. RELATÓRIO Nº21/03 – ADMISSIBILIDADE – PETIÇÃO 11.820 – ELDORADO DOS CARAJÁS BRASIL. Disponível em: <https://cidh.oas.org/annualrep/2003port/Brasil.11820.htm.> Acesso em: 15.dez.2015

411 AFONSO, José Batista Gonçalves. A difícil luta para punir os responsáveis pelos crimes no campo. IN: CANUTO, Antônio et al. (Coords.) Conflitos no campo – Brasil 2013. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2013, p.117.

Estado havia ajuizado ação de interdito proibitório com objetivo de impedir as manifestações em todas as rodovias, ruas, praças, prédios e logradouros públicos, mas o Poder Judiciário havia deferido interdito proibitório apenas em relação aos prédios públicos412.

Em 29 de outubro de 2009, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos proferiu decisão pela admissibilidade do caso perante a Comissão, aduzindo que houve, dentre os fatos narrados, potencial ofensa a diversos dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos, dentre eles o direito de reunião. Nesse ponto, assim foi redigida a decisão:

Ademais, se provado que a ação da polícia militar foi realizada com o objetivo de restringir injustificadamente o direito de reunião pacífica e sem armas e de circulação das supostas vítimas, no contexto de uma reunião para realizar uma marcha pela reforma agrária, a Comissão Interamericana decide que poderia caracterizar uma violação aos artigos 15 e 22 da Convenção Americana. Em relação ao anterior e em virtude do princípio iura novit curia, a Comissão considera que se provados tais fatos, poder-se-ia caracterizar uma violação ao artigo 13 da Convenção Americana.413

No âmbito interno, a Justiça Militar decidiu pelo arquivamento do caso, concluindo que o policial militar autor dos disparos que ocasionaram a morte de Antonio Tavares Pereira foi arquivado, ante o entendimento de inocorrência de crime militar. Nos autos de ação indenizatória, formulada contra o Estado do Paraná, os familiares da vítima de homicídio obtiveram sentença que determinou o pagamento de valores relativos a danos morais e pensionamento mensal414.

Entre os casos de assassinatos ocorridos no campo no ano de 2005, destaca-se o homicídio da missionária e defensora de direitos humanos Dorothy Stang, no dia 12 de fevereiro, no município de Anapú, estado do Pará. Com 73 anos de idade, foi morta com seis disparos de arma de fogo415. Os cinco envolvidos no assassinato da missionária foram levados a julgamento. Os dois mandantes receberam pena de 30 anos de prisão; um deles aguarda ainda o julgamento de

412 CIDH. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. RELATÓRIO Nº96/09[1] – PETIÇÃO 4-04 – ADMISSIBILIDADE – ANTÔNIO TAVARES PEREIRA E OUTROS – BRASIL. Disponível em http://cidh.oas.org/annualrep/2009port/Brasil4.04port.htm> Acesso em 15.dez.2015.

413 CIDH. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. RELATÓRIO Nº96/09[1] – PETIÇÃO 4-04 – ADMISSIBILIDADE – ANTÔNIO TAVARES PEREIRA E OUTROS – BRASIL. Disponível em http://cidh.oas.org/annualrep/2009port/Brasil4.04port.htm> Acesso em 15.dez.2015.

414 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. 1ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba, autos nº1859/2002.

415 BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Brasil Direitos Humanos,

recursos em liberdade. O intermediário foi condenado a pena de 17 anos, e os dois executores dos disparos a 18 e 27 anos de prisão416.

No documento Giane Alvares Ambrosio Alvares (páginas 112-117)