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Processo penal, direito ao protesto e democracia

No documento Giane Alvares Ambrosio Alvares (páginas 133-138)

5 PROCESSO PENAL, DIREITO AO PROTESTO E DEMOCRACIA

5.5 Processo penal, direito ao protesto e democracia

Já apontamos que os regimes democráticos são modelos de Estado em permanente evolução e que é no contexto das sociedades democráticas que o direito ao protesto pode ser plenamente exercido. Nesse sentido, conforme afirma Luigi Ferrajoli,

A ‘democracia’ é o regime político que consente o desenvolvimento pacífico dos conflitos, e por meio destes as transformações sociais e institucionais. Legitimando e valorizando igualmente todos os pontos de vista externos e as dinâmicas sociais que os exprimem, ela legitima a mudança por meio do dissenso e do conflito.481

Contudo, como nas palavras de Eugenio Raúl Zaffaroni, se inexistem estados de direito perfeitos e estes nunca atingem o modelo ideal que os orienta, quando os cidadãos exercem o direito ao protesto, o fazem para “habilitar o funcionamento institucional, ou seja, definitivamente reclamam que as instituições operem conforme seus fins manifestos”.482

Não obstante tal afirmação, a luta pelos direitos, conforme assinalado por Luigi Ferrajoli,

[...] não apenas é um instrumento de defesa dos direitos violados. É também lugar e momento de elaboração e reivindicação de novos direitos, pela tutela de novas carências individuais ou coletivas. Pode-se tranquilamente afirmar que não houve nenhum direito fundamental, na história do homem, que tivesse caído do céu ou nascido de uma escrivaninha, já escrito e confeccionado nas cartas constitucionais. Todos são fruto de conflitos, às vezes seculares, e foram conquistados com revoluções e rupturas, a preço de transgressões, repressões, sacrifícios e sofrimentos.483

Como já afirmamos mais de uma vez, atos criminosos praticados por qualquer indivíduo no contexto de manifestações políticas não estão protegidos pelo

480 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Autos nº0025142-65.2014.8.26.0050. Em face decisão, em maio de 2015, foi apresentado pelo defesa recurso ordinário constitucional direcionado ao Superior Tribunal de Justiça, ainda pendente de julgamento. (RHC nº61906/SP).

481 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2.ed. São Paulo: RT, 2006, p.871.

482 Tradução livre da autora. No original: [...] para habilitar el funcionamiento institucional, o sea, que en definitiva reclaman que las instituciones operen conforme a sus fines manifiestos. (ZAFFARON I, Eugenio Raúl. Derecho penal y protesta social. In: BERTONI, Eduardo (Compilador). És legítima la criminalización de la protesta

social? Buenos Aires: Universidade de Palermo, 2010, p. 2.)

483 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2.ed. São Paulo: RT, 2006, p.870.

direito ao protesto e nada impede que se proceda, contra eles, a devida persecução penal.

No entanto, eventuais crimes ocorridos nesses contextos não podem servir de escusa para tratar o conjunto dos protestos realizados como atos de violência e tampouco para descaracterizar o direito ao protesto, restringindo ou retirando-lhe a eficácia que lhe é garantida pela Constituição da República de 1988 e pelos documentos internacionais de direitos humanos.

Marco Aurélio Mello, analisando a inter-relação entre liberdade de expressão e o Estado Democrático de Direito, destaca a impossibilidade de imposição de restrições para o seu exercício:

O Estado é democrático quando aceita e tolera, no próprio território, as mais diferentes expressões do pensamento, especialmente aquelas opiniões que criticam a sua estrutura, seu funcionamento e o pensamento majoritário. A tolerância política mostra-se imprescindível para regular as relações entre as maiorias e as minorias e para servir de princípio regente das relações entre as ideologias e grupos políticos divergentes. A partir da proteção do pensamento minoritário, a liberdade se apresenta como um típico direito fundamental de defesa, que alberga em sua essência um espaço imune a restrições de qualquer tipo, sejam estas impostas pelo Executivo, pelo Legislativo ou pelo Judiciário.484

Como salientado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, deve-se ter em mente que:

Em suma, a liberdade de expressão não é um direito absoluto. É certo que o seu exercício pode ser abusivo e causar danos individuais e coletivos importantes. Mas também é verdade que as restrições desproporcionais acabam gerando um efeito intimidador, censura e inibição no debate público, que são incompatíveis com os princípios de pluralismo e tolerância, próprios das sociedades democráticas. Não é fácil participar de modo desinibido de um debate aberto e vigoroso sobre assuntos públicos quando a consequência pode ser um processo criminal, a perda de todo o patrimônio ou a estigmatização social. Por isso, é imprescindível ajustar as instituições e a prática punitiva do Estado aos imperativos do marco jurídico interamericano.485

Como se observa dos casos apontados no item anterior, se é certo que princípios constitucionais, como o da fundamentação das decisões judiciais e da individualização, mostraram-se aptos a impedir a manutenção de prisões cautelares ilegais e obstar que integrantes de movimentos sociais se vissem condenados sem

484 MELLO, Marco Aurélio. Liberdade de expressão, dignidade humana e Estado democrático de Direito. In: (Coords.) SILVA, Marco Antonio Marques da; MIRANDA, Jorge. Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. 2.ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p.241.

485 CIDH. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Uma Agenda Continental para a Defesa da Liberdade de Expressão. Disponível em: <https://www.oas.org>. Acesso em: 15.out.2015, p.25.

lastro probatório pela prática de delitos, outros princípios estampados na Constituição da República de 1988 não se mostraram suficientes para impedir que se desencadeasse indevida persecução penal que, como já vimos, gera consequências nefastas nas esferas psicológicas, sociais e econômicas para o cidadão.

A esse respeito, na acepção de Afrânio Silva Jardim,

A realidade nos mostra que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do acusado [...]. Destarte, torna-se necessária ao regular exercício da ação penal a sólida demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isso que baseada em um mínimo de prova. Este suporte mínimo relaciona-se com os indícios de autoria, existência material do fato típico e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade. [...]. Ademais, contraria também o interesse público a formulação de uma acusação prematura, que se apresente, desde logo, como sendo inviável [...].486

Se surgem tensões no curso do exercício do direito ao protesto, os conflitos existentes devem ser resolvidos à luz dos princípios e dos direitos fundamentais que formulam as bases sobre as quais se assenta o Estado Democrático de Direito. Não é razoável invocar o poder punitivo do Estado para solucionar essa espécie de conflitos, cuja origem se reporta às graves injustiças históricas que permanecem no país.

No dizer de Eugenio Raúl Zaffaroni, “jamais um direito constitucional e internacional exercido regularmente pode configurar um ilícito”487. Prossegue o

autor, enfatizando, por outro lado, que mesmo quando se excedem os limites do direito ao protesto, nem sempre há automaticamente a ocorrência de uma conduta delitiva e é nesse terreno que o direito penal deve atuar com o máximo de cuidado488.

Nos casos acima apontados, nos quais se imputou a integrantes de movimentos sociais participantes de atos de protestos condutas criminosas previstas na Lei de Segurança Nacional, a utilização do processo penal como instrumento de censura política mostrou-se ainda mais grave, tendo em vista que naquelas

486 JARDIM, Afranio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Direito processual penal: estudos e pareceres. 13.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p.356.

487 Tradução livre da autora. No original: jamás un derecho constitucional e internacional ejercido regularmente puede configurar un ilícito. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho penal y protesta social. In: BERTONI, Eduardo (Compilador). És legítima la criminalización de la protesta social? Buenos Aires: Universidade de Palermo, 2010, p.6.)

488 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho penal y protesta social. In: BERTONI, Eduardo (Compilador). És

formulações acusatórias estava contida a acusação de que, por seu atos, aqueles indivíduos estariam colocando em xeque a própria existência ou segurança do modelo de Estado em vigor.

Eventuais violações da lei penal podem levar à instauração de uma investigação criminal e ao início da ação penal, no entanto, somente se restarem especificadas autoria e materialidade delitiva, sendo descabido imputar a autoria dessas condutas ao conjunto dos participantes de manifestações sociais.

Conforme esclarece Antonio Alberto Machado,

Pode-se acrescentar ao devido processo legal o princípio da justa causa, que é um verdadeiro princípio do direito, na medida em que contém a diretriz ético-política segundo a qual nos Estados Democráticos de Direito não se admite o exercício indiscriminado da persecução penal, de forma aleatória e sem o necessário fundamento fático e jurídico. [...]. Esse princípio, em matéria penal, significa que toda acusação e seu respectivo recebimento em juízo [...] deve ser feito apenas e tão somente quando houver lastro probatório mínimo e razoável.489

Se é certo que, de acordo com Marco Aurélio Mello, o direito constitucional brasileiro não agasalha o abuso da liberdade de expressão, o uso de meios violentos e arbitrários para a divulgação do pensamento ou de qualquer manifestação do pensamento que seja exacerbadamente agressiva490, de qualquer

eventual excesso que se possa verificar no curso dos atos de protesto objeto das ações penais acima indicadas não se pode, diante do amplo rol de princípios constitucionais atinentes ao processo penal, extrair elementos aptos ao início da persecução penal por crime que visasse ofender os bens jurídicos tutelados pela Lei de Segurança Nacional em vigor.

No Informe de 2005, produzido pela Relatoria Especial Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, foi expressado o seguinte entendimento sobre as interferências do Poder Judiciário nos atos de protesto:

A relatoria entende que resulta em princípio inadmissível a penalização per se das manifestações em via pública quando se realizam no marco do direito à liberdade de expressão e ao direito de reunião. Em outras palavras: deve-se analisar se a utilização de sanções penais encontra justificação sob o padrão da Corte Interamericana que estabelece a necessidade de comprovar que referida limitação (a penalização) satisfaz um interesse público imperativo necessário para o funcionamento de uma sociedade

489 MACHADO, Antonio Alberto. Curso de Processo Penal. Ribeirão Preto: Legis Summa, 2007, p.131-132. 490 MELLO, Marco Aurélio. Liberdade de expressão, dignidade humana e Estado democrático de Direito. In: (Coords.) SILVA, Marco Antonio Marques da; MIRANDA, Jorge. Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. 2.ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p.242-243.

democrática. Ademais, é necessário valorar se a imposição de sanções penais constitui-se como o meio menos lesivo para restringir a liberdade de expressão praticada através do direito de reunião manifestado em uma manifestação na via pública ou em espaços públicos.

É importante observar que a penalização poderia gerar nestes casos um efeito amedrontador sobre uma forma de expressão participativa dos setores da sociedade que não podem acessar outros canais de denúncia ou petição [...].491

As garantias processuais penais de proteção dos indivíduos em face do poder punitivo estatal nos casos apontados não se mostraram suficientes para impedir a instauração de processos penais quando ausentes provas sobre materialidade e autoria de delitos que de fato colocassem em risco a segurança do Estado ou de suas instituições.

Ainda que se revele inafastável aos agentes públicos o direito que lhes assiste de discordar das opiniões veiculadas por meio dos atos de protesto, a utilização do processo penal como mecanismo de desmobilização e de censura política mostra-se como clara violação aos princípios fundamentais que dão sustentação ao Estado Democrático de Direito.

Como assinado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos,

A utilização dos tipos penais de “terrorismo” ou “traição à pátria”, entre outros, para processar pessoas que expressem ou difundam opiniões opostas às do governo ou posições críticas a respeito de políticas governamentais é claramente violadora do direito à liberdade de expressão. [...]. Nesse ponto, compete à Relatoria Especial promover perante o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos os casos que permitam assegurar que todos os Estados respeitem a diferença entre um dissidente e um delinquente, realizar relatórios e impulsionar programas de capacitação destinados a evitar a utilização do direito penal como um mecanismo de censura.492

Quando os integrantes desses movimentos sociais saem às ruas, não o fazem com o objetivo de combater a democracia. Ao contrário, diante da circunstância de estarem reivindicando a efetivação de direitos políticos ou de direitos sociais, buscam, na verdade, aperfeiçoar a democracia e o sistema político.

Expostos a situações de vulnerabilidade em razão da exclusão social ou das dificuldades de participação nas instâncias democráticas pelos meios mais convencionais, movimentos sociais pugnam pela efetivação de direitos

491 CIDH. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Informe 2005. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/cidh/expressao/temas/social.asp>. Acesso em: 15.out.2015.

492 CIDH. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Uma Agenda Continental para a Defesa da Liberdade de Expressão. Disponível em <https://www.oas.org/pt/>. Acesso em: 15.out.2015, p.23.

constitucionalmente assegurados. No entanto, tornam-se vítimas de perseguição e de repressão por parte do Estado, que, a nosso sentir, extrapola todos os limites de contenção de poder previstos pela Constituição quando dá azo à imputação aos integrantes desses movimentos de crimes contra a segurança nacional.

Movimentos sociais que realizam atos de protesto não são inimigos do Estado, como eram chamados no período ditatorial, ou da democracia. Ao contrário, são instrumentos para o aperfeiçoamento da sociedade e do Estado.

No documento Giane Alvares Ambrosio Alvares (páginas 133-138)