• Nenhum resultado encontrado

Imputação de crimes comuns e prisão cautelar

No documento Giane Alvares Ambrosio Alvares (páginas 121-126)

5 PROCESSO PENAL, DIREITO AO PROTESTO E DEMOCRACIA

5.4 Persecução penal de participantes de atos de protesto

5.4.1 Imputação de crimes comuns e prisão cautelar

Conforme constatou Marcelo Dias Varella em análise de casos relacionados às mobilizações realizadas por trabalhadores sem terra438 na década de 1990,

É possível observar que após as ocupações das propriedades pelos integrantes do Movimento dos Sem Terra, o aparato judicial e policial é prontamente acionado. Deste modo, instaura-se Inquérito Policial, há a tipificação das condutas cometidas, oferecimento de denúncia, determinação de prisão preventiva, enfim, uma série de atos judiciais baseados na interpretação dos fatos [...]. Após uma ampla pesquisa ao longo da atividade judiciária em torno do Movimento dos Sem Terra, percebe-se que as principais acusações são de crime de dano, pelas cercas e demais estruturas destruídas quando das ocupações; crime de furto, pelo desaparecimento de lascas de madeira, cercas de arame, bois e alguns outros animais; crime de usurpação, devido às ocupações de terra, e formação de quadrilha, pela reunião para o fim de cometer os crimes anteriores.439

Ao analisar a hipótese do delito de esbulho possessório (artigo 161,§1º, II, do Código Penal) nos casos de invasão ou ocupação de determinada área de imóvel rural particular, Roberto Delmanto Junior entende440 não haver crime. Isso porque, de acordo com o autor:

Com efeito, esse crime traz em seu tipo subjetivo, além do dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de invadir, também o intuito de esbulho, ou seja, de despojamento da posse ou desapossamento, com fins, todavia, de enriquecimento ilícito, ou seja, de tomar a propriedade para si [...]. Assim, não se confundindo [...] com a mera turbação da posse, que é o que fazem os membros do MST quando invadem terras para pressionar o governo a desapropriá-las e cumprir o mandamento insculpido nos artigos 184 a 191

438 Para um amplo diagnóstico sobre a questão agrária no Brasil e em particular sobre a atuação do MST, consultar: CARTER, Miguel (Org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. Tradução de Cristina Yamagami. São Paulo: Unesp, 2010.

439 VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao direito à reforma agrária: O direito face aos conflitos sociais. Leme: Editora de Direito, 1998, p.327.

440 No mesmo sentido: FRANCO, Alberto Silva. Breves considerações sobre um relevante acórdão – liberdade – direito fundamental – prisão cautelar – esbulho possessório. In: STROZAKE, Juvelino José (Org.) A questão

da Magna Carta, não há que se falar em crimes contra o patrimônio.441

O Superior Tribunal de Justiça, em posicionamento veiculado sobre a inocorrência de esbulho possessório nessas hipóteses, por voto do relator designado, ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, adotou entendimento similar:

HC. Constitucional. Habeas Corpus. Liminar. Fiança. Reforma Agrária. [...]. Movimento Popular visando implantar a reforma agrária, não caracteriza crime contra o patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando implantar programa constante na Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado Democrático de Direito.442

Destaca-se, ainda, da mesma decisão, entendimento sobre ser legítimo aos cidadãos reivindicar o cumprimento de direitos previstos no texto constitucional. Assim,

A Constituição da República dedica o Capítulo III do Título VII à Política Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária. Configura, portanto, obrigação do Estado. Correspondentemente, direito público, subjetivo de exigência de sua concretização. No amplo arco de Direitos de Cidadania, situa-se o direito de reivindicar a realização dos princípios e normas constitucionais. A Carta política não é mero conjunto de intenções. De um lado, expressa o perfil político da sociedade, de outro, gera direitos. É, pois, direito reclamar a implantação da reforma agrária. Legítima a pressão aos órgãos competentes para que aconteça, manifeste-se historicamente. Reivindicar por reivindicar, insista-se, é direito. O Estado não pode impedi-lo. O modo faciendi, sem dúvida, também é relevante. Urge, contudo, não olvidar o princípio da proporcionalidade – tão ao gosto dos doutrinadores alemães. A postulação da reforma agrária, manifestei em habeas corpus anterior, não pode ser confundida, identificada com esbulho possessório, ou alteração de limites. Não se volta para usurpar a propriedade alheia. A finalidade é outra. Ajusta-se ao direito.443

Abordando a necessidade da individualização das condutas delitivas, sentença absolutória proferida na Comarca de Andradina, estado de São Paulo, analisou a imputação de delitos de formação de quadrilha, dano e furto a integrantes do MST, destacando:

O MST e outros movimentos populares somente serão legítimos enquanto adotarem postura que não permita sejam confundidos com bando de criminosos. Todavia, estes crimes não podem ser atribuídos genericamente àqueles que se encontram à frente dos movimentos populares pela reforma agrária. Nosso ordenamento jurídico não abriga responsabilidade penal

441 DELMANTO JUNIOR, Roberto. O movimento dos trabalhadores rurais sem-terra em face do direito penal. In: STROZAKE, Juvelino José (Org.) A questão agrária e a justiça. São Paulo: RT,2000, p.320.

442 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº5.574/SP. 6ª Turma. Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 08.04.1997.

443 Em voto vogal proferido no julgamento do HC nº4.399, em 1996, o ministro Luiz Vicente Cernicchiaro apresentou entendimento semelhante, aduzindo que “a conduta do agente de esbulho possessório é substancialmente distinta da conduta da pessoa com interesse na reforma agrária”.

objetiva. Incumbe à acusação, diante da existência de um crime, demonstrar circunstanciadamente a autoria. Os dirigentes de um movimento popular não podem ser incriminados por delitos cometidos por integrantes do grupo senão quando provado que também concorreram para os crimes, na qualidade de coautores ou partícipes. No caso dos autos, a acusação não se desincumbiu do ônus de demonstrar qual conduta de cada um dos corréus em relação aos crimes de furto e de dano. Não restou demonstrado que entre os objetivos dos invasores [...] se inseria a prática de crimes. A falta de dolo específico exigido pelo artigo 288 do Código Penal impede que a conduta de invasores [...] configure o crime de formação de quadrilha.444

Roberto Podval e Janaína Paschoal, em comentários à sentença absolutória proferida na Comarca de Getulina, estado de São Paulo445, que absolveu integrantes do mesmo movimento social da imputação do delito de formação de quadrilha, consignaram:

Com efeito, infelizmente, vem se tornando comum que, em denúncias ofertadas em face de membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, até com o fim de aumentar a suposta ‘gravidade’ da imputação, se atribua aos acusados a prática de quadrilha; não em razão de uma eventual união para a prática de crimes, mas única e exclusivamente, em função de integrarem o Movimento. Isso quer dizer que, arbitrariamente, se equipara a participação em movimento civil legítimo à participação em quadrilha. Fosse procedente a tese [...] ter-se-ia, forçosamente, que concluir que, a todo tempo todos os seus membros estariam sujeitos a serem presos em flagrante o que [...] é um absurdo446.

Os autores entenderam, ainda, que identificar movimento social “com uma grande quadrilha e, por sua vez, amedrontar os seus integrantes com a constante ameaça de prisão, significa cercear [...] o direito de associação”447.

No mesmo sentido foi o parecer exarado por Antonio Scarance Fernandes para instruir habeas corpus impetrado para libertar integrantes do MST presos preventivamente e acusados de furto de bodes e formação de quadrilha em processo que tramitou na Comarca de São Bento do Una, Pernambuco:

Um último argumento poderia ser o de que o crime de quadrilha permite a prisão em qualquer momento, por ser de natureza permanente. Mas, a forma como constou na denúncia o crime de quadrilha tornaria legítima a prisão de todos os integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra pelo simples fato de pertencerem a esse grupo, ou ainda de qualquer pessoa por estar em qualquer um de seus acampamentos. Isso,

444 BRASIL.Tribunal de Justiça de São Paulo Autos nº72/1996. 2ª Vara da Comarca de Andradina, São Paulo. 445 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Autos nº350/1993, Comarca de Getulina, São Paulo.

446 PODVAL, Roberto; PASCHOAL, Janaina. Da prescrição – Da imputação do delito de quadrilha ou bando – atipicidade. In: STROZAKE, Juvelino José (Org.). Questões agrárias: julgados comentados e pareceres. São Paulo: Método, 2002, p.191-192.

447 PODVAL, Roberto; PASCHOAL, Janaina. Da prescrição – Da imputação do delito de quadrilha ou bando – atipicidade. In: STROZAKE, Juvelino José (Org.). Questões agrárias: julgados comentados e pareceres. São Paulo: Método, 2002, p.192.

contudo, não tem como ser sustentado.448

Além do acórdão mencionado, que consolidou o entendimento sobre a inexistência de crime patrimonial na conduta de ocupação de terra por parte de trabalhadores rurais, o Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou sobre a impossibilidade de manutenção de prisões cautelares de integrantes de movimento social sem arrimo nos requisitos constantes no artigo 312 do Código de Processo Penal e carente de motivação:

Constitucional. Processual. Penal. Prisão em Flagrante. Líderes do MST. Liberdade provisória. A prisão processual, medida que implica sacrifício à liberdade individual, deve ser concebida com cautela em face do princípio constitucional da presunção de inocência, somente cabível quando presente razões objetivas, indicativas de atos concretos, susceptíveis de causar prejuízo à ordem pública, à instrução criminal e à aplicação da lei penal (CPP, artigo 315; CF, artigo 93, IX) – A manutenção de líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST sob custódia processual, sob a acusação de formação de quadrilha, desobediência e esbulho possessório afronta o preceito inscrito no artigo 5º, LXVI, da Constituição – Habeas Corpus concedido.449

A respeito dessa decisão, Alberto Silva Franco teceu alguns comentários, destacando também a inadequação da imputação indiscriminada do delito de formação de quadrilha a integrantes de movimentos sociais:

A luta pela reforma agrária põe à mostra as injustiças sociais que campeiam na concentrada estrutura fundiária brasileira. Mas mais do que isso, é uma luta pela inclusão social, pela possibilidade de participação produtiva e criativa, na sociedade, dos que dela têm sido sistematicamente excluídos por um processo econômico perverso e pela dignidade da pessoa humana. Tudo isso nada mais é do que a concretização dos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito. Ora, um movimento social dessa natureza, e com finalidades tão transparentes, poderá até cometer excessos, mas nunca terá condições de ser confundido com o delito de quadrilha cujos elementos tipificadores estão voltados para a prática delituosa e não para a reconstrução de uma sociedade mais humana, solidária e igualitária e bem menos injusta e marginalizadora.450

Em comentários sobre decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento de habeas corpus451 que concedeu liberdade provisória a membros do MST acusados da prática de esbulho possessório e formação de quadrilha,

448 FERNANDES, Antonio Scarance. Esbulho possessório – clamor público – liberdade provisória. In: (Org.) STROZAKE, Juvelino José. Questões agrárias: julgados comentados e pareceres. São Paulo: Método, 2002, p.305.

449 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº9.896/PR. 6ª Turma. Rel. Min. Vicente Leal, j.21-10-1999. 450 FRANCO, Alberto Silva. Breves considerações sobre um relevante acórdão – liberdade – direito fundamental – prisão cautelar – esbulho possessório. In: STROZAKE, Juvelino José (Org.) A questão agrária e a Justiça. São Paulo: RT, 2000, p.288.

Antonio Magalhães Gomes Filho destacou a necessidade inafastável da fundamentação das decisões judiciais (artigo 93, IX, Constituição Federal de 1988) e de ser demonstrada na decisão restritiva da liberdade também a tipicidade do fato e a sua real existência com base na prova contida nos autos, destacando, nesse sentido, trecho da decisão que afirmou: “o fato precisa ser analisado em seu contexto, coordenado à sua motivação”452.

Além disso, decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos de habeas corpus em que se discutia a pertinência da prisão preventiva de integrantes do MST acusados da prática de furto, quadrilha, resistência e dano na Comarca de Teodoro Sampaio, estado de São Paulo, ademais de críticas sobre comportamentos que entendeu anárquicos, destacou:

Não é porque se veja ligado ao MST, que o trabalhador há de ser um tumultuário, um agressor da paz coletiva, um invasor irresponsável de terras muitas vezes produtivas. A responsabilidade objetiva, felizmente, de há muito não faz parte do nosso ordenamento jurídico penal. Ninguém merece prisão preventiva porque outros, mesmo sendo de uma falange que ele integre, vêm promovendo desordens, arruaças e anarquias inadmissíveis. Para que mereça prisão, é necessário que ele também promova tudo isso e que a determinação de custódia evidencie, nominalmente, o autor dos delitos, ressaltando a certeza de autoria e os riscos que a liberdade de cada um, em face do proceder a ele atribuído e, em princípio demonstrado, haverá de acarretar para o bom convívio social. Nada disso, contudo, se fez por aqui [...]. Concede-se a ordem impetrada [...].453

Do exposto, como já dissemos, conclui-se que ninguém que cometa crimes encontra abrigo contra a persecução penal ao invocar os postulados relativos ao direito de protesto e ao Estado Democrático de Direito.

Entretanto, para que a persecução penal possa ser iniciada e levada adiante, com a eventual restrição cautelar da liberdade, é necessário que se tenha atenção para os princípios norteadores da atividade punitiva. Nesse sentido, são descabidas as acusações formuladas com base em interpretação extensiva de tipos penais ou com base em fatos que não representam ofensividade ou perigo de lesão a bem jurídico.

Decisões de mérito ou de restrição cautelar da liberdade, nos termos constitucionais, não podem, por seu turno, prescindir da necessária fundamentação. Imprescindível, também, para o perfeito desenvolvimento do processo penal, que

452 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Prisão preventiva e garantias constitucionais – a proporcionalidade como princípio constitucional da prisão cautelar. In: STROZAKE, Juvelino José (Org.) A questão agrária e a

justiça. São Paulo: RT, 2000, p.252.

haja individualização das condutas delitivas ou dos atos que apontam riscos para o desenvolvimento do processo ou para a aplicação eventual da lei penal.

No documento Giane Alvares Ambrosio Alvares (páginas 121-126)