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Preliminarmente, é oportuno salientar a importância do estudo histórico no desenvolvimento de um trabalho científico, havendo quem afirme que esse estudo é o alicerce da ciência do direito.

A partir de fatos que remontam à origem, é possível pelo menos tentar se aproximar dos motivos pelos quais determinado instituto foi criado, bem como de suas características. Analisar, portanto, as modificações sofridas ao longo do tempo em relação à coisa julgada é                                                                                                                          

215

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 51-60.

fator fundamental ao entendimento de por que o legislador optou, no direito brasileiro, pela sua previsão constitucional e pela sua imutabilidade.

Em relação à coisa julgada propriamente dita, o tema não é novo e as diversas discussões e controvérsias são imensas. Ousa-se a afirmar que nem mesmo os processualistas estão seguros, atualmente, a respeito de como enxergá-la, diante de tendência no ordenamento jurídico quanto à criação de tutelas jurisdicionais diferenciadas, cujo traço típico, como já se viu, é o juízo de cognição sumária. Conceitos antigos a respeito da coisa julgada, notadamente aqueles decorrentes de codificações anteriores, ainda parecem engessados e há certo receio na doutrina, até certo ponto compreensível, em mantê-los. Afinal, a segurança jurídica e o devido processo legal são princípios basilares do estado democrático de direito.

Devido à coisa julgada advir da antiguidade, importante compreender como seu instituto se desenvolveu ao longo do tempo, notadamente para compreender suas características atuais e, de certo, modo, algum receio da doutrina na modificação de algumas premissas que parecem engessadas. A esse respeito, oportuno citar entendimento de

Maximiliano:216

Não é possível manejar com desembaraço, aprender a fundo uma ciência que se relacione com a vida do homem em sociedade, sem adquirir antes o preparo propedêutico indispensável. Deste faz parte o estudo do histórico especial do povo a que se pretende aplicar o mencionado ramo de conhecimentos, e também o da história geral, principalmente político da humanidade. O direito inscreve-se na regra enunciada, que, aliás, não comporta exceções: para conhecer bem, cumpre familiarizar-se com os fastos da civilização, sobretudo daquela que assimilamos diretamente: a européia em geral: a lusitana em particular. Complete-se o cabedal de informações proveitosas com o estudo da História do Brasil.

José Rogério Cruze Tucci também assevera a grande importância da análise histórica

para o direito:217

O estudo histórico é peça fundamental na ciência do direito. Sem que as pessoas se deem conta, verdade é que vivem elas, em grande parte, com o auxílio da história: gregos e romanos foram historiógrafos por excelência, assim demonstrando as obras de Heródoto e Tito Lívio. O Cristianismo é uma religião de historiadores: partindo da expulsão do paraíso até o Juízo Final, o destino da humanidade simboliza uma grande aventura que vai desde o pecado até a retenção das almas... Mas não é só: ainda hoje, vive a Itália do legado de Roma, a França, do clímax napoleônico, Portugal, desde                                                                                                                          

216

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 37.

217

TUCCI, Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de história do processo civil romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 30.

outro périplo que se traduz na saga dos descobrimentos. A História convive com as pessoas, ainda que estas não se apercebam de sua presença, nos hábitos mais corriqueiros, no vestir-se, alimentar-se, nas saudações e cumprimentos.

Na linha, portanto, do objeto do presente capítulo acerca da coisa julgada, faz-se imperiosa uma contextualização, ainda que de forma sucinta, do contexto histórico no Direito Romano, período em que se ouviu falar na sua criação.

Tratar-se-á, portanto, neste item, de breves considerações acerca da coisa julgada no Direito Romano, para depois à frente tratar dos efeitos que podem ser aplicados na decisão da

tutela antecipada antecedente que se estabiliza.218 A partir da análise de sua evolução histórica

durante esse período, poder-se-á adentrar ao estudo acerca de seu conceito, sua natureza jurídica, seus limites e efeitos e sua relativização ‒ informações necessárias e suficientes para a análise acerca da sua aplicabilidade ou não à estabilização da antecipação de tutela.

Segundo Batista,219 o Direito Processual Romano é classificado em três fases

históricas: arcaica, clássica e pós-clássica.

O Direito Romano sofreu inúmeras modificações e evoluções ao longo do período em que se manteve hígido e, junto com elas, se alteraram os sistemas processuais: o primeiro sistema ficou conhecido como o da legis actiones; o segundo sistema, como formular; e o último, conhecido como da cognitio extra ordinem.

A primeira fase do processo romano, correspondente à legis actiones, iniciou-se com a fundação de Roma em 754 a.C. e terminou em 149 a.C. A segunda fase, denominada de per formula, iniciou-se com o fim da fase legis actiones, a partir da publicação da lex Aebutia, e se estendeu até o governo do Imperador Diocleciano (285-305 d.C.). Por fim, a terceira e última fase corresponde a cognitio extra ordinem, a qual teve início com o aparecimento do principado de Otaviano Augusto (27 a.C.-14 d.C.) e se estendeu até o fim do Império Romano.

É possível afirmar que o sistema das ações da lei ou a legis actiones representou o desenvolvimento inicial do processo romano, a partir da Lei das XII Tábuas. Segundo

Alves,220 a denominação “legis actiones” decorre do fato de que essa modalidade de processo

surgiu em decorrência de previsão legal.

                                                                                                                         

218

Estudar a coisa julgada é examinar a sua história, fixar – através dos dados que ela fornece – o seu conceito, distinguir, neste, o essencial do acidental, apontar os seus lindes, para definição do que lhe é específico, preordenando, assim, os efeitos que lhe são próprios. A contraprova da exatidão com que se procede, essa só a vida poderá dar, quando não reaja à normatividade decorrente dos resultados a que se tenha chegado. (NEVES, 1971, p. 5)

219

BATISTA, Roberto Carlos. Coisa julgada nas ações civis públicas: direitos humanos e garantismo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p. 10.

220

Esse período do processo romano possui como traço típico extremo rigor formal por meio de rituais solenes, e a utilização de palavras eruditas e pré-determinadas. Eventual descumprimento desse rigor formal poderia trazer graves prejuízos às partes no processo. Assim, o processo romano das legis actiones pode ser divido em duas fases completamente diferentes.

A primeira fase ocorria perante o magistrado (órgão público), e era denominada de fase do tribunal, in iuri. A segunda fase ocorria perante o juiz popular, indicado pelas partes e escolhido entre os membros do povo. O juiz popular poderia ser indicado, igualmente, pelo magistrado. Trata-se da fase apud iudicem ou iudex. Segundo Corrêa, essa distinção é de crucial importância para se determinar como se operavam os efeitos da coisa julgada nessa modalidade de processo.

O magistrado, na fase do in iuri, não possuía função de julgador; ao contrário, atuava como fiscalizador do cumprimento pelas partes das normas rígidas previstas na lei, bem como possuía como função limitar o direito que deveria ser aplicado ao caso em discussão.

O magistrado, destarte, não tinha como função a análise do mérito das provas produzidas, que era realizada ao longo da segunda fase pelo juiz popular. Ademais, o julgamento do caso era realizado pelo juiz popular e não continha sequer motivação e comando. Após a fixação do litígio perante o magistrado e a instauração do contraditório, ainda na primeira fase, as partes celebram o ato solene denominado litis contestatio, que determinava qual a seria a lide submetida para julgamento pelo juiz popular na segunda fase.

Neves afirma que a atividade final do iudex dependia da atividade estatal anterior que se exauria com a litis contestatio, a qual possuía “efeito consumptivo, expresso pela regra obstativa de nova legis actio”, pois, se um direito objeto de uma anterior legis actio fosse novamente submetido ao exame do pretor, ele o indeferia de pronto, negando uma segunda ação, podendo-se supor que já se conferia força preclusiva ao processo. A litis contestatio,

portanto, colocava fim à fase do in iuri.221

A esse respeito vale destacar que, desde os tempos mais remotos do Direito Romano, já era possível atestar a impossibilidade de repetição de determinada legis actio anteriormente proposta pelas mesmas partes. Os romanos já estabeleciam que um mesmo processo não podia ser analisado e julgado uma segunda vez. Tratava-se do bis de eadem re ne sit actio, que já era aplicada desde a fase legis actiones.

                                                                                                                         

221

Os romanos, portanto, já atestavam, possivelmente, que a reanálise de um caso submetido a julgamento anterior não trazia segurança jurídica, preocupação que se estende até os dias atuais nos países que adotam a coisa julgada como opção política em seu ordenamento jurídico.

Celso Neves afirma que a eficácia do bis de eadem re ne sit actio era estabelecida

pelos Romanos na litis contestatio,222 a qual estaria relacionada com a atividade privada

especifica do iudex, ao contrário da atividade estatal relacionada ao in iure.

Desta feita, é possível afirmar que os juristas romanos fixaram a partir da litis contestatio o momento processual do exaurimento do exercício de determinada legis actio, asseverando que um direito não poderia mais ser submetido a novo julgamento caso já tivesse sido analisado anteriormente na fase do in iuri, ainda que estivesse pendente de julgamento pelo juiz popular.

O Estado podia, portanto, indeferir desde logo a legis actio, na hipótese de direito idêntico a outro já fixado por aquela. É nesse momento que se pode afirmar a existência da coisa julgada, que não era representada por uma sentença com análise do mérito, como tradicionalmente se conhece. Como a atividade do juiz popular (iudex) era limitada à emissão de uma opinião e, portanto, desprovida de quaisquer comando e força, não há que se falar formação de coisa julgada por ocasião do julgamento naquela época.

Com o passar do tempo, e diante da evolução da sociedade e das relações advindas dela decorrentes, o que se denominava atividade pretorial mostrou-se ineficiente e ineficaz, de modo que o exercício do direito da ação foi transferido ao iudex, por meio do denominado sponsio praeudicialis, iniciando-se a transição para o processo formular. Trata-se, evidentemente, de uma evolução do processo que deveria acompanhar as modificações históricas ocorridas na época, notadamente em decorrência da expansão de Roma pelo

Mediterrâneo.223

Na realidade, importante registrar que a atividade do iudex não consistia na imposição de uma decisão pelo Estado. Essa atividade era exercida por meio de composição realizada entre as partes e contra a sentença proferida não havia a possibilidade da utilização de recurso. Desse modo, após o primeiro período do Direito Romano ‒ per formula ‒ a questão submetida pelas partes em conflito passou a ser levada ao iudex, por meio de uma exceção, se                                                                                                                          

222

NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 11-12.

223

Segundo Cretella Junior, “o processo modular assinala um momento culminante na história da vida judiciária romana, porque só agora a figura do pretor se impõe, para resolver com auxílio da equidade os casos concretos, antes submetidos ao frio e desumano rigorismo das formalidades.” (CRETELLA JUNIOR, José. Curso de

já não havia ocorrido, em processo anterior, a denominada litis contestatio, para aferição de se o caso já tinha sido submetido a análise anterior. Essa exceção era denominada pelos romanos de exceptio rei in iudicium deductae, mas sua função era a mesma da coisa julgada, desde que a ação tivesse sido proposta em iudicium legitimum.

Nessa linha, a despeito de algumas semelhanças, a legis actionis e o per formula possuíam diferenças significativas que merecem destaque. Ao passo que aquela era mais solene, impregnado de ritualismo que remontava aos “primórdios de Roma” quando religião e direito se misturavam. O per formula revestiu-se de menos formalidade e, sobretudo, da ausência de interferência de questões relacionadas à religião da época.

Segundo Talamini,224 na fase que veio após a apud iudicem, o processo era retratado

em uma fórmula, o denominado processo formular ‒ por ocasião da litis contestatio, de modo que seus os atos anteriores e o conteúdo em questão eram apurados com maior cautela e profundidade. Como consequência, o processo foi criando importância pública e seus institutos, inclusive aqueles relacionados à coisa julgada, foram mostrando relevância.

Acerca do processo modular, cabe ainda mencionar a existência da figura da denominada exceção, a qual era oposta preliminarmente ao mérito, sob pena de preclusão. Tinha a função de fazer com que o autor renunciasse ao seu direito ou delimitasse, pelo menos, sua pretensão, na hipótese de que viesse a insistir no seu prosseguimento. Ele assumia, portanto, todos os riscos de eventual possibilidade de liberação do réu, caso a exceptio

resultasse provada e acolhida antes da análise da intentio,225 operando os efeitos da conhecida

praescriptio pro reo.

Roberto Carlos Batista226 afirma que a exceptio no processo formular exercia função

semelhante à da coisa julgada atual e, como afirmado, elas deveriam ser opostas preliminarmente, sob pena de não poderem ser opostas posteriormente. Após a promulgação da Constituição de Justiniano, em 520, possibilitou-se a sua oposição também em sede de apelação, flexibilizando-se, de certa forma, o rigor processual.

Alguns doutrinadores, contudo, chegaram a debater acerca do momento exato em que se operaria, no processo formular, a bis deeadem re ne actio, em decorrência de possíveis efeitos que o reconhecimento desse momento processual poderia gerar às partes. A discussão cingia se a bis deeadem re ne actio ocorria com a apresentação da contestação ou no momento do julgamento.                                                                                                                           224 TALAMINI, 2005. p. 198. 225 NEVES, 1971, p. 18-21. 226

BATISTA, Roberto Carlos. Coisa julgada nas ações civis públicas: direitos humanos e garantismo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p. 98

A despeito desse entrave, o que ocorreu na prática foi a consumação desses efeitos pelo julgamento e não como consequência da força consumptiva da litis contestatio. Desse modo, como afirma Neves, o pretor romano manteve o poder de “denegar a ação, ipso iure, mesmo quando a base da consumpção passou a ser a sentença e não mais a litis contestatio”.227

Diante disso, a prolação da sentença impedia a repetição do ajuizamento de outra ação idêntica à já julgada pelo pretor, modificando, sobremaneira o conceito que se tinha até então no Direito Romano acerca da coisa julgada. Isso porque nos tempos mais remotos da legis actionis não existia a prolação de um julgamento pelo Estado, mas a emissão de um parecer

pelo pretor que não possuía força judicial.228

A coisa julgada passa a adquirir força a partir do advento da cognitio extraordinaria, que ocasionou a transição do processo privado romano para o público. A sentença passa a ser o ato de aplicação da lei aos casos concretos.

Para finalizar o presente tópico acerca do histórico da evolução da coisa julgada no

Direito Romano, oportuno citar mais uma vez entendimento de Neves229 que arremata o tema,

no sentido de que

Enquanto a coisa julgada, no período clássico é a res, a questão sobre o que versa o iudicatum e que permite falar-se de uma res de qua agitur, de uma

res in iudicium deducta e, consequentemente, de uma res iudicata, no

processo extra ordinem esta última expressão, paralelamente ao conceito novo de sententia – porque deixa de ser um antecedente lógico do iudicatum para constituir-se no próprio ato que condena ou absolve – passa a significar a força legal desse ato do magistrado.

Nessa linha, a coisa julgada passa a significar a força que advém da sentença, tornando-a imutável. Para os Romanos, quando não fosse mais possível a utilização de recursos em face da sentença, operava-se a coisa julgada como presunção de verdade - res iudicata pro veritate habetur230.

                                                                                                                         

227

NEVES, 1971, p. 25.

228

Segundo Talamini, a coisa julgada no Direito Romano clássico era tida como o resultado decorrente da sentença, uma vez que a res iudicata consistia na exata situação em que se encontrava a “coisa” julgada, considerando-se que “a extinção gerada pela sentença era ainda mais ampla e profunda do que aquela antes produzida no final da fase in iure”, uma vez que o efeito decorrente da sentença superava aquele causado pela

litis contestatio, estendendo-se, ocasionalmente, a outros sujeitos que não haviam participado do processo.

(TALAMINI, 2005, p.201-202).

229

NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p 28.

230

ARAÚJO, Marcelo Cunha de. Coisa julgada inconstitucional: hipóteses de flexibilização e procedimentos para impugnação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 79.