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2. DIREITOS DA PERSONALIDADE

2.5. Rol aberto dos direitos da personalidade

Quanto à classificação, interessou-se a doutrina em estabelecer um rol dos direitos da personalidade e separá-los em espécies. Nessa tarefa doutrinária, cada autor criou seu próprio método classificatório e reconheceu diferentes bens ou situações jurídicas próprias dos direitos da personalidade.

No âmbito nacional, uma classificação que se tornou clássica é a de Limongi FRANÇA. Ele entendeu que, embora o traço comum entre os diversos direitos era o de ser todos direitos privados da personalidade, cada um deles correspondia a aspectos determinados da personalidade, devendo ser agrupados conforme esses aspectos, que, em seu modo de ver, são três: aspecto físico, aspecto intelectual e aspecto moral. Utilizando os aspectos como critério, classificou os direitos da personalidade em direito à integridade

física, direito à integridade intelectual e direito à integridade moral. Direito à integridade física abrange, entre outros direitos, o direito à vida e ao próprio

corpo; direito à integridade intelectual o direito de autor científico, artístico e de invenção; e direito à integridade moral. E, também entre outros direitos, os

direitos à honra, ao segredo, à imagem e à identidade pessoal126.

125 Na realização deste trabalho optou-se em não analisar cada uma das características, pois o

direito da personalidade não é o objeto principal. As características próprias do direito de imagem serão analisadas em item próprio.

126 Direitos da personalidade: coordenadas fundamentais, in RT 567, janeiro de 1983, p. 12 e

13. O rol de direitos apontados foi o primeiro elaborado pelo autor, que embora tenha mantido o critério da tríplice divisão em aspectos físicos, intelectual e moral, especificou esse rol alcançando o número de 63 direitos (Op. cit., p. 14).

Outra classificação clássica é a proposta por Heinrich HUBMANN127, que divide os bens jurídicos da personalidade em três grandes grupos estabelecidos com base em um critério de valores. Adotando como valores

desejar (aspirar) e criar, o primeiro grupo é o do direito ao desenvolvimento da personalidade que inclui as liberdades em geral (liberdade de agir, de reunir, de

associar-se, de trabalhar, de escolher a profissão, de ir e vir, de pensar, de religião etc.). O segundo grupo trata do que chamou de direito da

personalidade, usando como critério de valor o que há de comum nos seres

humanos em geral, como a existência (direito à vida, à sua manutenção, à saúde, ao corpo), o espírito (direito de autor), a vontade, a vida sentimental, entre outros itens. O terceiro grupo tratou da individualidade do homem, dividindo em três subgrupos, ao qual chamou de esferas: individual, privada e secreta. A esfera individual tutela o homem na sua unicidade, no seu modo de ser próprio, incluindo, assim, o direito à identidade, ao nome, à honra, à imagem física, à imagem de vida, à imagem do caráter, e à palavra falada ou escrita. A esfera privada tutela a vida privada para salvaguardar as relações humanas de círculo determinado ou limitado de pessoas. E a esfera secreta protege ações, expressões e pensamentos aos quais ninguém deve ter conhecimento e aqueles que o possuem cabe o dever, se não jurídico, mas

moral de guardar segredo128.

A respeito das variadas classificações propostas pela doutrina, Milton FERNANDES reconhece que, a seu ver, não possuem bases sólidas de

apoio e não produzem resultados verdadeiramente úteis129. A função delas,

127 O autor alemão do livro Das Persönlichkeitsrecht (1967) foi estudado de forma indireta pelos

escritos de Rabindranath V. A. Capelo de SOUZA, em Direitos gerais da personalidade. A importância de sua proposta para o nosso trabalho é o de ser fonte para a doutrina nacional no que se convencionou chamar de Teoria das Esferas e em relação ao conceito de desenvolvimento da personalidade. Em virtude do não acesso ao texto original, o presente estudo se limitou a citar a proposta, sem criticá-la ou adotá-la.

128 Rabindranath V. A. Capelo de SOUZA em Direitos gerais da personalidade, p.147 e148.

A esse respeito, vale citar as palavras de Jacques MARITAIN: “(...) o homem encontra-se a si próprio subordinando-se ao grupo, e o grupo não atinge sua finalidade senão servindo o homem e sabendo que o homem tem segredos que escapam ao grupo e uma vocação que o grupo não contém”. (Os direitos do homem e a lei natural, p. 29).

129 O autor não somente faz a crítica como também propõe sua própria classificação: a) direito

à vida e à integridade física (inclui direito à saúde e ao corpo vivo ou morto); b) direito à integridade moral (liberdade de opinião, de honra, identidade pessoal – nome, sobrenome e pseudônimo –, imagem e direito moral do autor; c) direito à vida privada (segredo – epistolar, profissional ou doméstico; inédito – escrito não literário; e investigação médica e psicológica

afirma, é apenas a de enumerar esses direitos ― cujo elenco é por vezes ainda desconhecido ― e agrupá-los em espécies que possuem algum ponto de contato130.

Para Walter MORAES, a quantidade e variedade dos direitos de personalidade, a singularidade e a sutileza de muitos deles, produzem “a

sensação ora de algo muito sofisticado dentro do campo jurídico, ora de uma doutrina desorientada ou perdida em dimensão cujas bases ainda não logrou encontrar”131.

Para encontrar o que há de comum entre esses direitos, o autor refuta teses e expressões como “esfera da própria personalidade”, “direito da personalidade como tal”, “modo de ser da pessoa” e “emanações da personalidade”, por serem imprecisas e vagas e por não distinguirem os conceitos de pessoa e personalidade. Esclarece o autor, conforme já desenvolvido neste trabalho: pessoa é sujeito de direito; personalidade é

aptidão para ser pessoa; e a utilização do termo “personalidade” para compor

os chamados direitos da personalidade não se refere à personalidade e a suas características, mas apenas a uma utilização analógica do termo para se referir aos bens próprios da natureza humana.

Dessa forma, afirma que o ponto em comum dessa variedade de direitos guardados sob o manto dos direitos da personalidade é que todos se referem à existência do indivíduo da espécie humana, seja na sua corporificação (matéria, corpo humano), seja na sua psique (anima), considerada em si mesma e também na sua essência (vida), potências (vegetativa, sensitiva, locomotiva, apetitiva e intelectiva) e atos (potência

realizada)132.

não autorizada). O curioso desta classificação é que o autor observa que a violação ao direito à imagem é uma invasão de privacidade, mas que não se exaure nela, por isso prefere classificá- la em categoria mais ampla, como o direito à integridade moral. (Os Direitos da Personalidade, in Estudos jurídicos em homenagem ao professor Caio Mário da Silva Pereira, p. 149.).

130 Op. cit., p. 145.

131 Concepção Tomista de Pessoa: um contributo para a teoria do direito da personalidade, in

Doutrinas essenciais: Responsabilidade Civil, v. 1. Teoria Geral, p. 818.

Esses componentes da natureza humana vão se convertendo em bens jurídicos à medida que se tornam relevantes nas relações intersubjetivas. Assim, retomando o exemplo de parágrafos anteriores, o bem “imagem” é próprio da existência humana, pois é a corporificação da pessoa, sem ela não há existência. Mas enquanto não existiu tecnologia para captação da imagem, não havia um direito sobre ela. O surgimento e desenvolvimento do direito de imagem ocorrem apenas quando a imagem passa a ser objeto das ações judiciais.

O mesmo ocorre com a vida privada ou a privacidade. A existência humana realiza muitos de seus atos na solidão ou na companhia de poucas pessoas; enquanto os atos humanos privados não atraíam interesse público, não se falava em direito à vida privada ou em direito à privacidade. Esses direitos surgem quando os sujeitos passam a se ressentir do desfazimento das

fronteiras das esferas pública e privada dos atos humanos133.

Em tese, cada um dos componentes humanos pode ser convertido em objeto de direitos subjetivos, denominados, pela maior parte da doutrina, de direitos da personalidade.

A proposta metodológica de Walter MORAES para a identificação dos objetos dos direitos da personalidade aponta quais os objetos da extensa

lista134, proposta por vários doutrinadores, que devem ser excluídos; no seu

entendimento são aqueles que extravasam o limite da individualidade

humana135.

O rol dos direitos da personalidade é, portanto, aberto, de modo a permitir que novas situações que afetam a individualidade humana possam ser protegidas por esse mecanismo legal. Ser aberto, no entanto, não significa ilimitado, em que tudo se é permitido, pois isso faria com que perdesse sua

133 Tércio Sampaio FERRAZ Jr., Sigilo de dados: o Direito à privacidade e os limites à função

fiscalizadora do Estado, in Sigilo fiscal e bancário, p. 18.

134 Limongi FRANÇA inclui entre os direitos da personalidade os direitos à alimentação, à

habitação, à educação, ao trabalho, ao transporte adequado, à segurança física, à proteção médica e hospitalar, ao meio ambiente ecológico, entre outros. Direitos da personalidade: coordenadas fundamentais, in RT 567, janeiro de 1983, p. 14.

força. Há um critério para determinar esse limite, e esse critério é reconhecer se a violação afeta um bem jurídico pertencente à natureza humana.

Contudo, é pertinente considerar neste aspecto a posição de

Heirinch HUBMANN136, quando situa a personalidade (no sentido de “total

existência humana em todos os domínios do viver”137) em espaço ético que

reúne três elementos: a dignidade humana, a individualidade e a

pessoalidade138.

A reunião desses elementos éticos dá origem a uma existência, a uma personalidade, que deve realizar-se. Ao homem, como único ser dotado de liberdade e razão, cabe à tarefa ética de usar sua liberdade para construir sua personalidade, que representa a sua própria realização como ser espiritual139.

A realização da personalidade é transformar-se naquilo que se é em essência, ou, ainda, é realizar em atos as potencialidades próprias, mas para tanto necessita de um elemento essencial: o outro.

136 Neste ponto o pensamento do autor do livro Das Persönlichkeitsrecht (1967) é estudado de

forma indireta pelos escritos de Rabindranath V. A. Capelo de SOUZA, em Direitos gerais da

personalidade, e de Rosa Maria de Andrade NERY, no Código Civil comentado e na Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. A importância do

pensamento Heirinch HUBMANN é o de incluir nos elementos éticos da personalidade a sua realização mediante o reconhecimento da existência do outro.

137 Rabindranath V. A. Capelo de SOUZA, Direitos gerais da personalidade, nota de rodapé

n. 2º, p. 14.

138 Dignidade humana é a predominância do homem no Universo, em face dos demais seres,

decorrente da estrutura espiritual comum presente em todos os homens. Individualidade é a realização da existência una e total de cada ser para desempenhar a tarefa ética de aspirar aos valores gerais da humanidade e de realizar em si mesmo esses valores. Pessoalidade consiste na qualidade do indivíduo humano de afirmar e defender sua autonomia mesmo em relacionamentos com outros seres humanos, com o mundo exterior, com ele mesmo e com os valores éticos. (Rabindranath V. A. Capelo de SOUZA, Op. cit., p. 144, e Rosa Maria de Andrade NERY, Código Civil comentado, comentário do Art. 10, item 13 (Direitos da Humanidade), p. 224.)

139 José de Oliveira ASCENÇÃO, A dignidade da pessoa e os fundamentos dos direitos

humanos, in Revista Mestrado em Direito UNIFIEO, ano 8, nº 2, p. 95. No mesmo sentido é o pensamento de Hubmann, que enfatiza ser cada homem a imagem singular de Deus, e caber a cada um realizar-se para aproximar-se dessa imagem ideal, para nessa realização tornar-se gradualmente mais parecido consigo mesmo. (Rabindranath V. A. Capelo de SOUZA, Direitos

Cada homem é uma substância, um universo completo, mas só se

realiza espiritualmente com os outros e para os outros, é um ser em relação140.

Essa relação impõe direito, mas também deveres. Se até aqui abordamos o reconhecimento dos direitos da personalidade, agora é importante verificar os deveres.

A existência de outros, de muitos indivíduos que possuem tantos direitos como um em especial, representa um obstáculo à ideia de ter direitos, que se solucionam com a fórmula tantas vezes anunciada: “A liberdade de um

cessa quando se inicia a liberdade do outro”. Esclarece José de Oliveira

ASCENÇÃO, contudo, que nessa acepção o outro fica reduzido a

desempenhar uma função negativa141, a realizar um dever geral de abstenção,

que, embora seja o contraposto do direito da personalidade, não é suficiente, no entendimento desse autor.

Para ASCENÇÃO, a ligação com o outro é de comunhão, de tal ordem que a realização humana não é egoística, um abandono ao arbítrio ou um isolamento social, é uma realização que passa necessariamente pela realização do outro, trazendo uma valoração ética e uma responsabilização de

cada um pelos fins da comunidade142.

O direito de realizar suas potencialidades impõe à pessoa humana o dever de exercê-las em comunhão com os outros, tendo por base a solidariedade. O dever não é uma exceção, é uma categoria tão normal quanto à do direito.

Na opinião de José Oliveira ASCENÇÃO, reconhecer que os deveres não são anomalias, mas emanações vindas da solidariedade, permitirá um sistema coerente, “que enquadrará a pessoa como ente que se constrói a si

mesmo na prossecução de fins próprios, integrado solidariamente em

140 José de Oliveira ASCENÇÃO, A dignidade da pessoa e os fundamentos dos direitos

humanos, in Revista Mestrado em Direito UNIFIEO, ano 8, nº 2, p. 96.

141 José de Oliveira ASCENÇÃO, op. cit., p. 96. 142 Op. cit., p. 97.

comunidade com outras pessoas”143. Para que ao lado do reconhecimento dos direitos da personalidade (próprios da natureza humana) reconheça-se o dever, também componente da humanidade, de realização do outro. Um mínimo ético que garanta condições a possibilitar a vida de todos em igualdade e

oportunidade144.