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DA NECESSIDADE DE ATRIBUIR AOS RECURSOS HÍDRICOS UMA

4 ASPECTOS ECONÔMICOS DA COBRANÇA DOS RECURSOS HÍDRICOS

4.1 DA NECESSIDADE DE ATRIBUIR AOS RECURSOS HÍDRICOS UMA

A valorização econômica da água foi proposta pela Carta Europeia da Água, de 1968, que mencionou o valor econômico da água, embora não tenha abordado a questão da cobrança. Além disso, o Conselho da Organisation for Economic Co-operation and

Development

(OECD), de 1972, definiu a necessidade de cobrar pelo uso da água, o que se repetiu na Declaração de Dublin, de 1992, e na Declaração do Rio de Janeiro, também de 1992 (POMPEU, 1999).

O reconhecimento do caráter multissetorial, do desenvolvimento dos recursos hídricos no contexto do desenvolvimento econômico, deve ser associado a alguns princípios expressos na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, cuja observância é imprescindível à implementação de uma gestão sustentável dos recursos hídricos. Dentre eles destacam-se: a solidariedade com as gerações presentes e futuras, a proteção do meio ambiente, a erradicação da pobreza, a eliminação dos padrões insustentáveis de produção e consumo, o fortalecimento institucional, a internalização dos custos ambientais e a participação dos interessados na gestão mediante o acesso à informação (POMPEU, 1999, p. 272).

Como apêndice disso, a Política Lei Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997), artigo 1º, inciso II, estabeleceu que a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico.

Corrobora essa afirmação o fato de que as discussões, na atualidade, estão centradas no reconhecimento do valor econômico da água e não em sua dimensão social. Nos últimos eventos internacionais, organizados para abordar a crise mundial da água, ficou nítida a polarização nesses debates; de um lado, se alinham os interesses do capital financeiro internacional e das grandes empresas multinacionais que exploram a água, insistindo no reconhecimento da água como um bem econômico e reivindicando que, sua administração, seja confiada ao mercado; de outro lado, organizações sociais se posicionam contrárias à privatização dos serviços de água, postulando o reconhecimento do direito à água e a democratização de sua gestão (IRIGARAY, 2001: 385).

A Lei 9.433/97 não só reconheceu a água como um bem econômico, cujos usos estão sujeitos a uma outorga prévia e a uma cobrança a posteriori; como também, a sua qualidade de recurso natural escasso e limitado, e ainda, que a sua gestão deve estar voltada a proporcionar o seu uso em múltiplas atividades; muito embora seu uso prioritário seja o consumo humano, a dessendentalização dos animais, o abastecimento público, saneamento básico, e assim por diante, vide artigo 1º, incisos I, II, III e IV da lei em comento (GRANZIERA, 2003: 56-63).

O próprio Código de Águas já fazia previsão de remuneração pelo uso das águas públicas, não sendo, pois, algo inédito nas disposições normativas no Brasil. Por outro lado, nunca se implementou esse princípio, no que se refere às águas.

A mercantilização (fazer da água mercadoria ou commodity), a privatização, a desregulamentação e a renormatização, bem como diversas modalidades de deslocalização, são as características da política preconizada sob a égide dos grandes estados-maiores internacionais da água, que surgiram a cerca de uma década e consideram a água uma nova fronteira de realização de lucros (CAUBET, 2004: 33).

Tendo em vista que a cobrança dos recursos hídricos tem como escopo a proteção do bem ambiental água, enquanto recurso fundamental à sobrevivência humana, há de se antever que resta clara, a necessidade de usarmos o princípio do poluidor pagador como elemento norteador da cobrança da água. Ao mesmo tempo em que é necessário estabelecer, também critérios eticonormativos, capazes de garantir que a Lei de Recursos Hídricos logre a consecução de seus fins socioambientais.

Ademais, antes de adentrarmos na discussão do valor econômico da água, levaremos em conta os princípios ambientais estabelecidos na Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, posto que a insipiência no manejar da Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997) pode desencadear em uma nova forma acumulação de capital.

A cobrança não poderá ser vista como primeira e única opção para que se chegue à almejada racionalização do uso da água, ao contrário, deverá ser ela subsidiária de outras políticas públicas como a institucionalização de processos adequados de educação ambiental e de formação ou reforma de hábitos sociais; luta contra o desperdício; incentivos e investimentos em descobertas de processos ou procedimentos de racionalização de um corpo administrativo competente, sob a égide de instâncias políticas praticando os requisitos da gestão democrática e, por fim, a criação de uma ação e de uma política administrativa eficientes nas modalidades de dissuasão, fiscalização e repressão efetiva, vide texto abaixo:

Isso significa que o bem econômico é a água em si, e não a possibilidade de receber esse bem, via rede de distribuição, em praticamente qualquer lugar. Não se

confundir a situação antes e depois da Lei 9.433. Antes da Lei, pagava-se pela amortização dos investimentos realizados para captar, tratar e distribuir a água, bem como manter as condições de funcionamento da rede. Depois da lei continuam as mesmas operações, eventualmente realizadas por outras pessoas jurídicas e, além disso, se paga pelo volume de água consumida ou usada para outra finalidade. A água se tornou uma mercadoria, com regime jurídico específico (CAUBET, 2004, p. 146).

Vale notar que ainda não é possível auferir a eficiência da política de precificação dos recursos hídricos pelo fato de que o instrumento da cobrança pelo uso dos mesmos ainda não foi integralmente implementada nas bacias hidrográficas brasileiras, em virtude não só da complexidade inerente à necessidade de conciliar interesses divergentes derivados do uso múltiplo dos recursos hídricos, como também pela necessidade premente de implantar os outros instrumentos de gestão que dão sustentação e legitimidade a própria cobrança, a exemplo da resistência da União e dos Estados para a adoção de um sistema de descentralização por meio de Comitês Gestores de Bacias Hidrográficas.

Muito embora a Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997, tenha estabelecido, nos seus artigos 21 e 22, os critérios para fixação de valores (volume retirado nas captações diretas, ou lançado nos casos de devolução) e sua aplicação prioritária (financiamento de estudos, programas, projetos e obras; bem como no custeio administrativo dos órgãos gestores) os mesmos não podem ser interpretados de forma isolada, mas sim de maneira holística e sistêmica, posto que a cobrança é uma das partes do microssistema jurídico que disciplina o uso sustentável dos recursos hídricos (GRANZIERA, 2003).

Como se pode extrair da leitura do artigo 12 da mesma Lei, existe uma diversidade de interesses conflitantes quando da análise do pedido de outorga antecedente ao uso da água, isso porque está submetida a ela uma pluralidade de sujeitos que vão desde as concessionárias de serviço público responsáveis pela geração de energia elétrica, fornecimento de água e saneamento até os grandes particulares de usuários da água como as agroindústrias que fazem uso intensivo de irrigação, as indústrias em geral, as empresas de navegação, dentre outros.

Como o uso gratuito reflete os anseios da sociedade, a política pública referente aos recursos hídricos deveria priorizar os usuários de baixa renda, quanto ao fornecimento de água como atividade obrigatória, assegurada pelo Poder Público; tal qual tem feito os Tribunais ao proibir o corte de água quando não há o respectivo pagamento. Nesse sentido a doutrina nacional tem se posicionado da seguinte forma: “O valor de uso dos recursos naturais não pode ser somente econômico e inserir-se no quadro do mercantilismo dos recursos, mas deve ser dotado de um valor ético” (MACHADO, 2002: 15).

Um questionamento deve ser abordado: “Qual o conceito de ‘uso insignificante’, que a lei deixou para o regulamento definir?” (GRANZIERA, 2003: 15).

Procurando solucionar esse questionamento encontramos o entendimento de Christian Guy Caubet (2004: 171), ao discorrer sobre o caráter econômico dado a água pela Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997:“O que é considerado ‘insignificante’ no contexto de hoje, poderá ser reformado amanhã, com base nos princípios jurídicos da discricionariedade administrativa” acrescentou, também, em lições anteriores que:

Este aspecto da lei choca profundamente as convicções de opinião pública nacional e de muitos países estrangeiros, pelo fato de não prever a garantia de abastecimento para as pessoas que estão fora do mercado da água. A reivindicação de garantia de acesso à água como direito, na base de 40 litros de água potável gratuita/dia/pessoa, passou a afrontar a lei. Mas a lei afronta a dignidade das pessoas: não se pode prescindir do uso da água para a sobrevivência diária, mesmo que o interessado não tenha condição de pagar por ela. Essa observação de bom senso leva a questionar a possibilidade de considerar a água como um bem com valor econômico em todos os casos do seu uso [...] José Afonso da Silva também observa que ‘toda água, em verdade, é um bem de uso comum de todos. Tanto que ninguém pode, licitamente impedir que o sedente sorva a água tida como de domínio particular (CAUBET, 2004: 147).

A água quando se torna escassa, dado seu caráter essencial a sobrevivência de todas as espécies, se torna uma utilidade a qual se pode atribuir um dado valor. Por sua vez os recursos hídricos configuram um bem de valor na medida em haja um interesse sobre ele; haja vista que a sua valoração econômica, nada mais é do que um reflexo de sua escassez. Afinal a medida de valor de alguma coisa está localizada no interesse sobre um bem, na medida em que ele leve à satisfação de uma necessidade; vide texto abaixo:

Quanto maior a importância de um bem à sociedade maior a tendência a sua publicização, com vista na obtenção da tutela do Estado e da garantia de que todos poderão a ele ter acesso, de acordo com os regulamentos estabelecidos. No que se refere às águas, as coisas não se passam de forma diferente (GRANZIERA, 2003: 88).

A água passou a ser mensurada como um bem de cunho econômico, mas é preciso salvaguarda-lhe o caráter de bem de uso comum do povo limitado por uma função socioambiental, por meio da adoção de princípios éticos capazes de garantir o uso múltiplo dos recursos hídricos. Ademais, como se trata de um bem economicoambiental, cujo interesse é difuso, mister se faz elaborarmos um estudo aprofundado do conceito de interesse público no novo paradigma de um Estado Gerencial, pautado na busca de critérios de eficiência na fixação de suas políticas públicas.