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1 MARCO TEÓRICO

1.4 NORMA JURÍDICA E INTERPRETAÇÃO

1.4.1 A Interpretação Jurídica em um Marco Positivista

A interpretação em um marco positivista supõe o Direito como um sistema completo, fechado e coerente; e a interpretação como um ato mecânico, declarativo e não criativo (BOBBIO, 2007: XXXII). Em conformidade com sua ideologia, e para movimentar esse mecanismo decisório, demanda-se, da norma jurídica genérica, bem como, da norma jurídica individual (respectivamente consignadas na lei e na sentença lato sensu), que possuem uma estrutura silogística em que se possa observar a presença inarredável de uma premissa menor e de uma conclusão, sendo essa um dado inédito que emerge da interação entre as primeiras.

Dessa forma, o silogismo erige-se, pois, em verdadeiro alicerce do sistema jurídico dogmático, apto a conformar-lhe a natureza logicocientífica e a traduzir, na prática judiciária, o mecanicismo que impregna a construção teórica desse edifício. É justamente após a subsunção que se obtém como resultado a norma individualizada para cada caso, encaixando- se, aparentemente, na estrutura do silogismo técnico ou lógico, que conhecemos como uma técnica de argumentação na qual, de certos enunciados pressupostos, quais sejam, a premissa maior e a premissa menor, extrai-se uma conclusão lógica. Tal estrutura, trazida para o discurso jurídico, particulariza-se com a identificação da lei na premissa maior, do fato ou caso em juízo na premissa menor, e da decisão como conclusão.

Nesse marco positivista, a interpretação não extrapola o mero reconhecimento das regras dadas, tratando-se apenas de uma atividade de reconhecimento de um sistema dado em face das questões ou problemas que reclamam uma solução jurídica, o que é operacionalizado por intermédio de quatro atividades:

a) determinação do significado das regras (interpretação em sentido estrito); b) conciliação das regras aparentemente incompatíveis;

c) integração das lacunas, e

d) elaboração sistemática do conteúdo das regras, assim interpretadas, conciliadas, integradas (BOBBIO, 2007: 40).

1.4.2 Interpretação do Direito concebido enquanto Sistema Aberto

A crença na estrutura puramente silogística da decisão judicial, contudo, ainda que sobreviva no ambiente forense e nas salas de aula de orientação eminentemente positivista, parece já se ter desfeito unanimemente entre os autores que se ocupam da discussão da metodologia jurídica contemporânea (ALEXY, 1993). Esse descompasso entre as opiniões predominantes em um e outro ambiente é facilmente compreensível, pois, se por um lado, um exame mais atento da decisão judicial (e da peça petitória que a provoca) mostra que sua identificação com o silogismo somente se pode obter usando-se de uma simplificação excessiva, por outro, tem-se que tal semelhança ainda é imprescindível para legitimar o processo decisório e a sentença ou acórdão que o revela e encerra, orientando, por conseguinte, a argumentação das partes que buscam uma solução para sua lide.

De fato, a estrutura silogística do discurso jurídico se encaixa com perfeição na dogmática positivista, que não só inspira, mas efetivamente alicerça as ordens jurídicas contemporâneas, constituindo tal recurso em uma fórmula quase matemática a subsidiar e orientar a ação do Estado-Juiz, adstrito a decidir de acordo com a lei e, apenas subsidiariamente, com as outras fontes de direito por essas admitidas. Destarte, pôr em xeque tal expediente legitimador, coloca em foco a necessidade de se conseguir, de outra maneira, a imprescindível justificação para a decisão judicial para que essa tenha validade dentro de um sistema que, historicamente, tendeu a tornar-se estritamente legalista.

Da árdua tarefa de encontrar uma nova justificação vem se ocupando com afinco a jus filosofia contemporânea, seja por meio do estudo aprofundado da linguagem, em um movimento que revaloriza a retórica – marginalizada desde a vilanização dos sofistas – seja por intermédio da tentativa de construção de uma nova ética humanística que prescinda de noções jus naturalistas ou jus racionalistas e que se apoia, sobretudo, em dois pilares de natureza holística: a inter(multi)disciplinariedade das ciências sociais e da filosofia e o diálogo intercultural, esse viabilizado pelo autoconhecimento e a autorreflexibilidade exercitados pela intelectualidade no interior de cada grupo ou núcleo de interesses humano como forma de neutralizar o obstáculo das diferenças culturais, cristalizadas em seus topois.

Mas, se de um lado se busca a legitimação do uso de elementos extrajurídicos na regulação individual dos conflitos humanos e, consequentemente, da própria atividade regulatória assim desenvolvida, de outro se procura, também por meio do estudo da retórica, demonstrar, em primeiro lugar, como e por que sobrevive, entre os operadores do direito, a crença na estrutura silogística do processo de resolução das lides e, em um segundo momento, como os elementos extrajurídicos vêm efetivamente concorrendo para essa atividade sem que a tese positivista da autopoiese dos sistemas jurídicos seja substituída.

Desse mister se ocuparam tanto Perelman (2002) quanto Viehweg (1979), ao demonstraram que a decisão judicial não se apresenta sob forma de um silogismo perfeito, mas sim de um entinema ou silogismo retórico, posto que na desconstrução da argumentação presente no decisum, emerge a constatação de que se encontram ausentes (ou antes, implícitos) um ou mais elementos que permitam identificá-lo com o silogismo.

Partindo da concepção do Direito enquanto sistema aberto dependente de outro maior (o sistema social), e supondo, igualmente, uma sociedade em constante movimento, prefere-se falar em operações de pesquisa no lugar de interpretação, uma vez que se reconhece para essa última, mesmo em seu sentido mais amplo, “uma atividade de mero reconhecimento das regras dadas, e não uma atividade criativa crítica” (BOBBIO, 2007: 41). Desse modo, as operações de pesquisa desse Direito concebido, enquanto sistema aberto, seriam três:

a) a análise da situação para a qual se quer encontrar a regra ou as regras apropriadas, mediante as técnicas de pesquisa elaboradas e praticadas pelas ciências sociais;

b) a análise e o confronto dos diversos critérios de valoração com base nos quais a situação pode ser regulada (fique claro que, entre esses critérios de valoração, estão, também, as regras postas ou transmitidas), e

c) a escolha da valoração e a formulação da regra (BOBBIO, 2007: 41).

Referida operação de pesquisa mostra-se em consonância com o que desenvolve Eros Roberto Grau (2002: 28), ao relacionar a interpretação a um ato de concreção. Para esse autor, interpretar o direito, ele usa essa palavra, com a ressalva crítica de seu sentido diferente daquele tradicional (interpretar como atividade de “mera compreensão do significado das normas jurídicas), seria dar concreção”, com vistas a trazer o direito para a realidade:

Neste sentido, a interpretação (= interpretação/ aplicação) opera a inserção do direito na realidade; opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos ainda: opera sua inserção na vida.