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Decisões judiciais

No documento Direito à saúde baseada em evidências (páginas 89-97)

1. INTRODUÇÃO

1.16 Decisões judiciais

É possível que os acadêmicos do direito, externos ao mundo médico, possam ter a impressão errônea de atribuir aos médicos maior conhecimento científico do que realmente possuem. Em Medicina resultados contraditórios sobre métodos de tratamento podem ser detectados. É comum os médicos escolherem um método terapêutico e sequer mencionarem tratamento alternativo, que, com base na evidência empírica, pode ser igualmente eficaz. Nos últimos anos, porém, ocorreu aumento substancial da medicina alternativa e sua invasão aos redutos da medicina convencional.

também o seu caráter e as circunstâncias. A ideia central do devido processo legal parece para muitos, questão aberta do poder discricionário.

Em 1970 o entusiasmo universal pelo poder discricionário começou a colapsar pela surpreendente evidência do fenômeno “noise” (ruído), ou seja, variabilidade excessiva em julgamentos que deveriam ser idênticos.

Se o acusado de roubar um banco federal nos Estados Unidos for condenado, ele pode receber uma pena máxima de 25 anos. Isso significa qualquer pena entre 0 e 25 anos. E onde o número era definido, eu descobri logo, dependia menos do caso ou do réu do que do juiz individual, i.e., das visões, predileções, e vieses do juiz.

Assim, o mesmo réu no mesmo caso poderia ter limites de sentenças amplamente diferentes dependendo de qual juiz julgou o caso (FRANKEL, 1973).

Maneira de abordar esse tema é por meio de Diretrizes. Contudo, muitas pessoas não gostam delas, porque limitam a discricionariedade judicial, que pode ser necessária para garantir a acurácia e a justiça.

As decisões em numerosos casos semelhantes nos quais as decisões eram muito diferentes, resultaram em arbítrio e crueldade todos os dias, o que era inaceitável mesmo para um governo de leis e não de homens. O Congresso americano foi conclamado a terminar essa discriminação causada pelas decisões arbitrárias. A variação inexplicável nas sentenças fenômeno alcunhado como ruído (noise em inglês), é o título de livro recentemente publicado que aborda as imperfeições dos julgamentos humanos (KAHNEMAN; SIBONY; SUNSTEIN, 2021)

Trabalho feito nos EUA, no qual 16 casos hipotéticos foram submetidos ao crivo de 208 juízes federais demonstrou resultado surpreendente:

Em somente 3 dos 16 casos havia um consenso unânime para impor um termo de prisão. Mesmo nos casos em que a maioria dos juízes concordava que a prisão era apropriada, havia uma variação substancial no tempo de prisão recomendado. Em um caso de fraude, em que o tempo médio de prisão era de 8,5 anos, o termo de prisão mais longa foi de prisão perpétua.

Em outro caso o tempo médio de prisão era de 1,1 anos, embora houve recomendação para prisão de 15 anos (FRANKEL, 1981).

Algumas pessoas, incluindo muitos juízes pensavam que as sentenças eram muito severas. Outros argumentavam que as diretrizes eram muito rígidas porque proibiam os juízes de levar em conta as particularidades do caso. O preço para reduzir noise era tomar apenas decisões mecânicas. Para os defensores da posição contrária ao uso de diretrizes (guidelines) discernimento e equidade só é possível em julgamentos que levam em conta as complexidades

do caso individual. As diretrizes sofreram, pois, desafios baseados na lei ou na política, ainda que por razões não relacionadas ao debate na Suprema Corte americana, que tornou as diretrizes válidas apenas como orientação. Essa decisão foi aplaudida pela maioria dos juízes (75% preferiam o sistema consultivo contra 3% que preferiam o sistema mandatório (FRANKEL, 1973).

Quais foram os efeitos de mudança das diretrizes, de obrigatórias para consultivas?

Trabalho envolvendo cerca de 400.000 processos criminais, demonstrou que as disparidades entre sentenças judiciais aumentaram significativamente após 2005, o que contribui de maneira clara para o tratamento díspare de infratores condenados por crimes semelhantes. Após as diretrizes tornarem-se consultivas, os juízes passaram a embasar suas decisões em seus valores pessoais.

Após a morte de Frankel, criador da proposta de diretrizes obrigatórias, o sistema americano permitiu o retrocesso para o que ele denominava: lei sem ordem.

Quatro pontos podem ser destacados na discussão sobre as disparidades dos julgamentos:

 o julgamento é difícil porque o mundo é um lugar complexo e incerto;

 a extensão das divergências é maior do que se imagina. O fenômeno noise, ou seja, variabilidade indesejável em julgamentos que deveriam ser idênticos, pode criar injustiça, custo econômico elevado, e muitos tipos de erros;

noise pode ser reduzido. A Comissão Americana de Sentenças – regras e diretrizes- é uma das várias abordagens que podem reduzir as disparidades;

 esforços para reduzir o noise com frequência levantam objeções e criam dificuldades.

Há vários tipos de ruídos que impedem um julgamento justo. O ruído sistêmico é a variabilidade indesejável nos julgamentos de um mesmo caso por múltiplos juízes. Esse tipo de ruído tem dois componentes principais que podem ser separados quando os mesmos indivíduos avaliam múltiplos casos:

a) Ruído de nível é a variabilidade no nível médio de julgamentos por diferentes juízes;

b) Ruído padrão é a variabilidade nas respostas dos juízes a casos particulares.

O ruído padrão contém o denominado ruído de ocasião que pode ser considerado como erro aleatório, ou seja, erro de avaliação causado por fatores que variam de uma medida

para outra. É o mesmo tipo de erro que pode acontecer quando um jogador de basquete faz um arremesso livre, ou um jogador de futebol cobra um pênalti. Apesar de haver em ambas as situações uma sequência precisa de movimentos e dessas cobranças terem sido feitas inúmeras vezes, não se pode afirmar que o atleta vai ter sucesso naquela cobrança. Nem mesmo ele tem essa certeza. Julgamento é como uma cobrança livre: mesmo tentando repetir o método o julgamento de um mesmo juiz não é sempre o mesmo.

Ambos, ruído de nível e ruído padrão contribuem para o sistema noise. Portanto o ruído de nível ocorre quando os juízes demonstram diferentes graus de severidade. Ruído padrão é quando eles pensam de forma diferente entre si sobre qual réu merece julgamento mais rígido ou mais leniente. O ruído de ocasião ocorre quando os juízes discordam deles mesmos. Em um mundo perfeito os réus enfrentariam a justiça; no mundo real eles enfrentam um sistema de julgamento influenciado por ruídos.

Portanto, existe grande disparidade entre os juízes nas sentenças outorgadas para casos similares. Essa variabilidade não pode ser justa. A sentença para determinado réu não pode depender de quem é o juiz responsável pelo caso.

Sentenças criminais não podem depender do estado de espírito do juiz, de quais casos antecederam esse julgamento, das condições meteorológicas, nem do resultado do jogo do dia anterior. Você não é a mesma pessoa o tempo todo. (KAHNEMAN; SIBONY;

SUNSTEIN, 2021).

Deve-se entender, contudo que alguns problemas dificultam a aplicação das políticas de saúde:

 Ações coletivas: não é razoável a ampliação do número de processos judiciais individuais para a resolução de problemas coletivos. É preciso fomentar o manejo de ações coletivas para permitir que os tratamentos, medicamentos, ou políticas propostas, uma vez apresentadas ao Judiciário, sejam direcionadas a maior número de pessoas;

 Flexibilidade na análise de pedidos deduzidos judicialmente – há decisões judiciais provendo fornecimento de pílula estimulante sexual, chocolate ou alimento sem glúten para portador de doença celíaca, com base em prescrição médica tecnicamente duvidosa. Estaria o juiz vinculado ao que consta na prescrição médica? A resposta baseada na Constituição é não, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV – princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. O juiz não é refém do médico e o médico não possui superpoderes para prescrever, vez que deve observar as práticas cientificamente comprovadas e a legislação regente;

 Diálogo entre o sistema de justiça e o sistema de saúde - a atuação isolada de cada um desses dois sistemas impede a evolução e o progresso desejado pela sociedade.

A melhor decisão judicial sobre tratamento de saúde deve passar pela análise de fatores técnicos externos à teoria jurídica. O conhecimento médico e farmacológico precisa ser incorporado ao exercício da função jurisdicional;

 Conhecimento das políticas de saúde pelos atores do sistema de saúde - o Ministério da Saúde divulga os programas existentes no âmbito do Governo Federal; a CONITEC informa o procedimento de incorporação de novas tecnologias ao sistema de saúde pública; a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) divulga os fármacos disponíveis no SUS;

 Fomento à mediação e conciliação: entes públicos, gestores de saúde e procuradores, devem ser mais acessíveis às políticas de conciliação e de mediação.

A ultrapassada ideia de que a fazenda pública não pode fazer acordo precisa ser abandonada.

O papel do Poder Judiciário está desvirtuado. Ao invés de controle da administração pública, da gestão adequada e dos atos e contratos praticados no espectro das operadoras de planos de saúde, verificando vício, omissão, ilegalidade ou inconstitucionalidade do ato administrativo e, em decorrência, revisar ou anular tal ato, a atuação do juiz hoje é substituir o administrador público. O Judiciário controla tudo, sem qualquer limite e, em razão da escassez de tempo e de recursos humanos, essa nova função do magistrado absorvendo sem limites todas as demandas do cidadão brasileiro, tira do Judiciário as condições mínimas para exercer sua função constitucional.

Exemplos ilustrativos relativos a essa situação:

 o cidadão que arca com os custos de tratamento e de medicamento cobra do estado o valor pago;

 ações de indenização impetradas pelo cidadão, em face do ente público, por despesas pagas em procedimento cirúrgico;

 decisão judicial que determina internação em CTI;

 decisão judicial que obriga o estado a arcar com o pagamento de medicamento;

 indenização a ser paga por hospital público por atuação médica que não conseguiu o resultado almejado, sem comprovação da culpa do profissional médico.

Essas situações eram limitadas aos agentes do sistema de saúde. Hoje constituem problemas enfrentados pelo juiz ao julgar processos sobre direito à saúde.

O Recurso Extraordinário nº 368.564 simboliza o cenário sobre judicialização da saúde no Brasil. Trata-se de decisão do STF que concedeu a várias pessoas, portadoras da condição clínica de retinose pigmentar, com todas as despesas custeadas pelo Estado, o direito de obter tratamento em Cuba, sem comprovação científica da eficácia e efetividade do tratamento. O laudo existente apontava a ausência de cura. Apesar disso o STF condenou o Estado. A análise da matéria teve início em sessão realizada no dia 8 de abril de 2008, quando o relator, ministro Menezes Direito (falecido), entendeu que o pedido do grupo não poderia ser deferido, votando no sentido de prover o recurso da União. Segundo ele, essa doença não tem cura e a viagem para Cuba feita às custas do erário seria inócua. O relator afirmou à época, que o direito é conferido se existe a possibilidade comprovada de cura, “de que existe o tratamento, de que é possível perante os requisitos que o Estado estabeleceu:

laudo, parecer, indicação”. No entanto, avaliou que no caso concreto havia um laudo do Conselho Brasileiro de Oftalmologia, segundo o qual não existia tratamento em lugar algum.

Retomado o julgamento em 13 de abril de 2011, o Relator, ministro Marco Aurélio, ao proferir seu voto-vista, negou o recurso e abriu divergência, ao permitir a viagem ao exterior. Segundo ele, o direito à saúde é fundamental e é um dever do Estado.

[...] Eu não posso compreender que se articule a inexistência de lastro econômico-financeiro para se negar um tratamento à saúde a um cidadão”, disse, ao citar como precedente o Recurso Extraordinário (RE) 271286. Pelo que leio nos veículos de comunicação, o tratamento dessa doença, com êxito, está realmente em Cuba (BRASIL, 2011).

A decisão demonstra a forma inadequada e até irresponsável pela qual são analisados os processos judiciais sobre saúde. A decisão judicial no caso foi proferida, tendo como base informação jornalística. O sistema jurídico, com previsão constitucional, e os dados da MBE não foram considerados na decisão.

Pelo exposto, pode-se afirmar, que o direito à saúde previsto na Constituição Federal não possui alcance ilimitado e não confere direitos absolutos aos cidadãos. O CNJ aprovou o Enunciado nº 13, visando tornar as decisões mais lógicas:

Nas ações de saúde que pleiteiam do poder público o fornecimento de medicamentos, produtos ou tratamentos, recomenda-se, sempre que possível, a prévia oitiva do gestor do Sistema Único de Saúde, com vistas a inclusive identificar solicitação prévia do requerente à Administração, competência do ente federado e alternativas terapêuticas (BRASIL, 2011).

A judicialização da saúde foi melhor normatizada pela Lei 12.401/2011 com criação da CONITEC e de requisitos para incorporação de novas tecnologias pelo SUS a saber:

 evidências científicas sobre eficácia, acurácia, efetividade e segurança do produto ou procedimento objeto do processo;

 avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial, ou hospitalar quando cabível;

 a cirurgia proposta é o melhor procedimento baseado em evidência científica;

 a cirurgia é tratamento eficaz e eficiente;

 configura a melhor opção do ponto de vista do custo-benefício relativamente a outros tratamentos.

O valor cobrado pelo profissional da área médica contratado pela parte autora do processo judicial é difícil de ser controlado. O magistrado, nos casos de internação compulsória, deve avaliar o quadro fático com base nas informações do gestor do hospital.

Em vários processos judiciais há pedidos de indenização ajuizados em face dos entes públicos ou das operadoras de planos de saúde, em razão de demora no tratamento ou na prestação de serviços de saúde. Os fundamentos da teoria clássica da responsabilidade civil estabelecidos em vários diplomas legais, nos casos em que os danos aos particulares decorrem de omissão do Estado devido a deficiência ou inexistência do serviço de saúde, preconizam que a responsabilidade será de ordem subjetiva, cabendo à vítima a prova da existência do fato, do dano, do nexo de causalidade entre um e outro e da culpa da Administração.

A publicação Justiça em Números, (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2021), demonstra a existência de 95,3 milhões de processos em tramitação. Como cada processo exige duas partes e a população brasileira era, à época do relatório, de cerca de 200 milhões de habitantes, conclui-se que praticamente todos os brasileiros litigavam pela via judicial. A explicação para o elevado número de processos judiciais, especialmente os relacionados ao Direito à Saúde abrange:

 cultura do litígio;

 facilidade de acesso à justiça;

 estrutura funcional e burocrática do sistema de justiça;

 facilidade maior de pedir ao juiz do que enfrentar fila do SUS;

 qualidade deficiente de serviços médicos;

 gratuidade;

 necessidade de ser politicamente correto;

 ausência de análise adequada dos fatos;

 primazia absoluta do direito à saúde;

 ausência de governança pública;

 fomento à meritocracia;

 desrespeito ao consequencialismo;

 ausência de cultura da responsabilidade;

 subsidiariedade no SUS;

 necessidade de equilíbrio na relação livre iniciativa e direito do consumidor;

 necessidade de reajuste na cadeia de intermediários;

 equilíbrio contratual nos planos de saúde;

 cultura da medicamentação;

 cumprimento do dever fundamental de exercer a boa administração pública;

 ampliação e concretização do papel da CONITEC no SUS;

 adoção do critério de decisão judicial;

 melhoria na defesa dos entes públicos;

 aplicação adequada da proporcionalidade;

 definição das prioridades;

 redes.

Um quarto grupo é representado pela maior parte da população que tem acesso apenas aos serviços públicos de saúde. Esse grupo, junto com os pacientes do terceiro grupo, é aquele que busca os serviços públicos representados pelo SUS, com filas enormes, postos de saúde com pequeno poder de resolução, falta de especialistas, falta de leitos hospitalares, carência de recursos humanos.

A única fonte admitida pela medicina é a evidência científica, sendo esta pouco considerada no momento da decisão judicial. O magistrado, na grande maioria das decisões, aceita como conceito doutrinário e nível indiscutível de evidência o simples parecer do médico assistente, mesmo sendo opinião pessoal isolada.

A natureza jurídica da prestação de serviços médicos é contratual, porém o profissional não se compromete com a obtenção de determinado resultado, e sim em prestar serviço consciencioso atento e de acordo com as bases científicas disponíveis, sendo assim, uma típica obrigação de meios. Significa dizer que o médico não se obriga a restituir a saúde

do paciente que esteja aos seus cuidados, “mas a conduzir-se com toda diligência na aplicação dos conhecimentos científicos para, se possível, atingir aquele objetivo. (CHAVES, 1985).

Existe lógica ao ser dado tratamento jurídico diferenciado aos profissionais liberais.

Com finalidade de exemplificação não se pode exigir cumprimento do contrato médico ou advocatício, como se fosse um contrato de empreitada, de depósito, de transporte ou outro qualquer. Na atividade médica ou advocatícia o resultado final almejado não depende apenas da capacidade, conhecimento e empenho do profissional. Fatores externos e aleatórios interferem na concretização do contratado. O médico, mesmo sendo muito consciencioso, não pode se responsabilizar pelo resultado do tratamento e pela cura do paciente, mormente porque cada organismo reage diferentemente a um mesmo tipo de agressão ou tratamento dentre inúmeras variáveis que podem interferir na cura.

No documento Direito à saúde baseada em evidências (páginas 89-97)