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Medicina arte x Medicina ciência

No documento Direito à saúde baseada em evidências (páginas 36-41)

1. INTRODUÇÃO

1.7 Medicina arte x Medicina ciência

atendimento. Além disso, o tipo de serviços de saúde muda de demanda por cuidado de condições agudas, episódicas e urgentes, para o cuidado de condições crônicas. Estas são hoje a principal causa de doença, incapacidade e morte e, excetuados os dados das pandemias, são responsáveis pela maior parte dos gastos públicos com saúde.

Se os cuidados com a saúde estão difíceis de serem aplicados pelos profissionais dessa área, os operadores do direito que não têm familiaridade com os avanços científicos e tecnológicos da medicina encontram muito mais dificuldades para julgarem com fundamentação objetiva os eventos relacionados com especialidades médicas variadas cada uma com peculiaridades próprias.

Pelo exposto, a necessidade de lideranças em cuidados da saúde é grande, pois a transformação do sistema não é processo simples, mas, se ocorrer, os benefícios esperados pela utilização da ciência médica e da tecnologia aplicados a todos os cidadãos são enormes.

Tais benefícios incluem: diminuição da dor e do sofrimento, maior longevidade, e maior força de trabalho.

Documento elaborado pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos estabelece seis objetivos para melhorar o sistema de saúde para o século XXI:

a) segurança do paciente: evitar lesões causadas pelo tratamento que visa curá-lo;

b) efetividade: prover serviços baseados no conhecimento científico a todos que podem deles se beneficiar;

c) cuidado centrado no paciente: o cuidado respeita e atende as preferências do paciente;

d) pontualidade: reduzir atrasos danosos para quem recebe e/ou presta o atendimento;

e) eficiência: evitar desperdícios, incluídos equipamentos, insumos, ideias e energia;

f) equidade: prover cuidado que não varia em qualidade, por gênero, etnia, localização geográfica e status socioeconômico do paciente (INSTITUTE OF MEDICINE US COMMITTEE ON QUALITY OF HEALTH CARE IN AMERICA, 2001).

profissionais são fortemente influenciados por diversos fatores: como, onde e quando foram treinados; local onde atuam; relativa oferta de capital humano e físico; modo como são pagos;

e quão atualizados estão em relação aos últimos avanços científicos da medicina.

O setor de saúde está repleto de novas tecnologias, mas a natureza inerente à maior parte delas é sustentar a prática corrente. As tecnologias que possibilitam diagnósticos precisos, seguidos de terapia presumivelmente efetiva são aquelas que, por meio da ruptura, têm o potencial de transformar o terreno da assistência à saúde, convertendo a complexidade da intuição em tarefas baseadas em regras. De acordo com essa estrutura, o tratamento da maioria das doenças começa no domínio da experiência baseada na intuição, deslocando-se posteriormente para o da medicina probabilística ou empírica e chegando afinal à medicina de precisão, baseada em regras.

Na impossibilidade de diagnóstico preciso o tratamento deve ser efetuado mediante a medicina intuitiva, para o exercício da qual profissionais altamente treinados e mais caros solucionam problemas valendo-se da experiência acumulada e do reconhecimento de padrões.

Quando os padrões se tornam mais claros, o tratamento avança até o domínio da medicina baseada em evidências (MBE), ou medicina empírica, com dados reunidos para decidir sobre a melhor forma de diagnóstico, tratamento e prognóstico.

Se for disponibilizado ao operador do direito esses dados é presumível que as decisões judiciais serão mais coerentes, embora esse objetivo não seja tarefa fácil.

1.7.2 Medicina de precisão

Para que a terapia seja eficaz para cada paciente, ela só pode ser desenvolvida e padronizada quando as enfermidades são diagnosticadas com precisão. Daí o surgimento do domínio denominado medicina de precisão.

Os capacitadores tecnológicos de ruptura na assistência à saúde são tecnologias que, à diferença do diagnóstico por sintoma físico, permitem diagnóstico com precisão da condição do paciente. Tais tecnologias incluem o diagnóstico molecular, o diagnóstico por imagem e a telecomunicação em banda larga. Doenças que podem ser diagnosticadas de maneira precisa, cujas causas são conhecidas, podem ser tratadas com terapias baseadas em regras previsivelmente eficazes. O diagnóstico preciso de doenças, baseado na fisiopatogênese, que tenta buscar o porquê das suas causas e o modo como as doenças se propagam, não garantem que uma terapia previsivelmente eficaz possa ser aplicada, mas, com certeza, ajuda na escolha do melhor tratamento para o caso concreto.

O progresso da interface entre medicina intuitiva e medicina de precisão é o principal mecanismo por meio do qual os capacitores tecnológicos conduzem para a ruptura dos atuais modelos de gestão da assistência à saúde. Ressalte-se que a medicina intuitiva e a medicina de precisão não são estados binários. Entre elas há um amplo domínio que se denomina medicina empírica. A prática da medicina empírica ocorre quando um campo evolui em direção à era do “reconhecimento do padrão”, ou seja, quando as correlações entre medidas e efeitos são suficientemente compatíveis, possibilitando que os resultados possam ser previstos em termos probabilísticos. A medicina empírica permite aos provedores seguir as probabilidades, mas não garante os resultados. Declarações como “A redução para níveis normais ocorreu em 73%

dos pacientes que receberam o medicamento X”, ou “97% dos pacientes cujas hérnias foram tratadas por esse procedimento não experimentaram reincidência em cinco anos em comparação com os 86% de outros métodos” estão no terreno da medicina empírica que permite aos gestores prever as probabilidades, mas não garantir o resultado.

Em outras palavras, o diagnóstico preciso é necessário, mas não suficiente para que o tratamento de amplo domínio, fundamentado na medicina empírica, garanta o sucesso terapêutico.

O progresso científico conduz por um fio contínuo, da medicina intuitiva para a medicina empírica e daí para a de precisão. Na maioria dos casos, a terapia previsivelmente eficaz deve ser precedida de diagnóstico preciso. Para atingir esse grau de precisão, a tecnologia deve avançar interativamente em três frentes:

a) compreensão da causa da doença;

b) habilidade de detectar os fatores causais;

c) capacidade de tratá-los com eficiência.

As doenças infecciosas constituíram o primeiro campo em que o diagnóstico preciso melhorou com o surgimento do microscópio e de colorações capazes de detectar micro-organismos que permitiram diagnóstico preciso e tratamento específico e, mais recentemente, identificação dos subtipos dos micro-organismos e compreensão dos mecanismos moleculares da resistência aos antibióticos das cepas envolvidas nas infecções. O potencial da medicina de precisão como capacitador tecnológico fez reduzir o custo do tratamento das doenças infecciosas, passo a passo, doença a doença, com o deslocamento dessas enfermidades da seara da medicina intuitiva para a de precisão, causado pelo progresso científico que permitiu a inovação diagnóstica e terapêutica.

O câncer começou a ceder à revolução semelhante na precisão do diagnóstico e na eficácia do tratamento. De forma similar à que aconteceu com o uso do microscópio a compreensão mais profunda da biologia molecular e do genoma humano permitiu aos cientistas diagnosticar e tratar diferentes espécies de câncer com base nas suas características moleculares que explicam a sua progressão, mas permitem, também, diagnóstico mais preciso pela detecção de padrão dentro do qual certos genes se manifestam e, em consequência, tratamento mais eficaz.

No modelo tradicional de assistência à saúde, existem poucas maneiras de médico e paciente fazerem ajuste fino do seu plano de tratamento. Usualmente ele é ajustado aos poucos, ao longo de uma série de consultas, em um processo de tentativa e erro. Os médicos estão acostumados a focar em indicadores facilmente mensuráveis, tais como, sinais vitais, e exames laboratoriais, mas a variabilidade individual pode comprometer o padrão a ser aplicado em paciente específico.

Há um padrão claro no longo e árduo processo pelo qual um setor faz ao passar, do status de arte ao de ciência, o conjunto de conhecimentos sobre o qual foi construído. Nos primeiros estágios da maioria dos setores, a amplitude do conhecimento adquirido corresponde a não muito mais do que uma variedade de observações compiladas por várias gerações. As várias incógnitas tornam a tarefa a ser realizada complexa e intuitiva, com resultados relativamente imprevisíveis. Apenas profissionais especializados são capazes de produzir soluções adequadas. O trabalho é feito pelo método de tentativa e erro, motivo pelo qual o processo de solução de problemas pode ser longo e dispendioso.

Com o passar do tempo, essas experiências intuitivas geram certos padrões. Definir esses padrões que correlacionam ações com os resultados em vista, torna mais fácil ensinar às pessoas como resolver problemas. O sucesso desse método não é garantido, porém, os cientistas podem muitas vezes estipular a probabilidade de um dado resultado com base nas medidas adotadas. Esses padrões de correlação são suplantados pela compreensão de causalidade, o que faz com que o resultado de determinadas ações seja altamente previsível e tornam o trabalho, antes intuitivo e complexo, em trabalho rotineiro com regras específicas criadas para lidar com as etapas desse processo. Habilidades que antes eram apanágios da intuição de grupo seleto de especialistas acabam por se tornar tão explicitamente compreensíveis que o trabalho baseado em regras pode ser executado por pessoas com muito menos experiência e treinamento. Ocorre, assim, a transferência desse trabalho das mãos de experts caros e altamente qualificados para as de técnicos mais baratos, levando ao surgimento de

modelos de gestão bem-sucedida, capazes de captar as vantagens do trabalho baseado em regras (CHRISTENSEN; BOHMER, 2000).

Exemplos dessa evolução, de modelos de gestão de sucesso podem ser observados em empresas como a DuPont que desenvolveu a primeira fibra têxtil sintética do mundo, o náilon, que levou ao desenvolvimento do Nomex, fibra termorresistente e do Kevlar, fibra cinco vezes mais forte do que o aço. Hoje os engenheiros da DuPont e de muitas outras empresas se valem da modelagem computadorizada para criar novos compostos com as exatas propriedades desejadas. A intuição e a expertise dos engenheiros da DuPont foram disponibilizadas em software que, difundido por todo o mundo, permite que número cada vez maior de engenheiros descubra novos materiais sintéticos com mais rapidez e eficiência do que se poderia imaginar 50 anos antes.

Outro exemplo de como o progresso científico pode transformar a natureza fundamental do principal problema tecnológico de um setor está no processo de design automotivo, desenvolvido pela BMW para projetar seus modelos automotivos de forma tão realista nos computadores, que é possível realizar os testes de colisão virtualmente, a partir de uma estação de trabalho. Ficou muito mais barato projetar automóveis seguros, atraentes e de alto desempenho em um computador do que construir e testar protótipos físicos.

Possibilitada pelos avanços na tecnologia e na ciência, a migração do processo de solução de problemas dos domínios de um pequeno grupo de especialistas para uma população maior de profissionais, não tão caros e que apenas precisa seguir as devidas normas, é um fenômeno fundamental que permite a transformação de setores variados como a animação, a arquitetura, a aviação, bancos, indústria editorial e cobrança de impostos e monitoramento de funções biológicas.

A empresa Revolution Health usou a sua grande capacidade de processamento de dados para ajudar os usuários a encontrar “alguém como eu”. Usando prontuários médicos fornecidos pelo próprio usuário e dados anônimos de planos de saúde, a empresa pode fornecer, até mesmo, indicadores com os quais o paciente pode comparar seus dados. Com combinação desses dados a Revolution Health calcula as probabilidades de ocorrência de uma doença e sugere os melhores meios para mitigar esse risco, por meio de visão mais abrangente do que aquela que um médico poderia oferecer.

Antes do advento de tais ferramentas a capacidade de um médico prescrever o tratamento correto já na primeira consulta dependia de ele já ter visto caso semelhante no passado. Essa possibilidade de já ter encontrado caso semelhante é hoje muito melhorada com ferramentas disponibilizadas na internet, que ajudam os pacientes a identificar um ao outro

por meio de circunstâncias comuns. Em vez de esperar que as circunstâncias se revelem e se tornem potencial risco de vida, médicos e pacientes podem usar esses novos recursos para colocarem em prática a promessa de uma medicina de precisão personalizada.

Nesse aspecto, a aplicação de testes estatísticos apropriados a amostras populacionais pode reforçar e trazer maior segurança para as tomadas de decisões e mostrar o caminho para o Judiciário dirimir as dúvidas trazidas pela judicialização do direito à saúde. Mesmo com a resistência natural dos profissionais do direito, por não se sentirem confortáveis com a manipulação estatística de dados, essa situação não é impeditiva da utilização da estatística como balizadora das decisões nos casos de direito à saúde. Como analogia pode-se dizer que não é preciso entender de mecânica para dirigir um automóvel de forma segura. É possível que a aplicação de testes simples de probabilidade seja suficiente para que o Judiciário caminhe no sentido de prover a melhor solução – ou a solução mais provavelmente adequada – quando o que está em julgamento é a eficácia de um medicamento, a adequação de um teste diagnóstico a proposta de um procedimento terapêutico, a necessidade de internação hospitalar, ou a conduta médica visando melhorar a saúde do paciente. Ressalte-se, mais uma vez, que a tarefa não é fácil, mas é plenamente possível para quem tem a obrigação de julgar.

No documento Direito à saúde baseada em evidências (páginas 36-41)