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Dialetalidade expressiva e reflexa (1962–final dos anos 1980)

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 49-54)

1.2 A relação da língua com o cinema italiano

1.2.2 Língua italiana e dialeto no cinema italiano do pós-guerra

1.2.2.3 Dialetalidade expressiva e reflexa (1962–final dos anos 1980)

Segundo Raffaelli (1992, p. 127, 1996 p. 326), o cinema italiano entrou em uma nova era linguística em 1960. Com a mudança de setores e aspectos da vida italiana (processo de industrialização no Norte da Itália e migrações do Sul para essa região; aumento da italofonia e diminuição dos dialetos; constituição de um ―italiano popular unitário‖; atenuação dos traços dialetais sob o influxo do italiano; uso reflexo dos dialetos rurais etc.), o cinema italiano modificou a própria linguagem, adotando um repertório sempre mais articulado e funcional de recursos verbais. Pela primeira vez, o cinema foi capaz de elaborar com liberdade uma fala fílmica que aderisse às diversas situações comunicativas presentes em cada filme.

As principais inovações desta fase, que afirmaram um italiano fílmico vário, foram: a adaptação das soluções gramaticais na direção de um italiano médio, a expansão de variedades miméticas de um italiano médio-baixo, a modulação expressiva dos recursos fonéticos de matriz dialetal e a abertura aos léxicos das linguagens setoriais (RAFFAELLI, 1996, p. 327).

O emprego mimético de um italiano marcado por traços fonéticos, morfossintáticos e lexicais de matriz dialetal (italiano regional), que se impunha como código nacional de comunicação com o apoio do rádio e da televisão, constituiu a inovação mais importante de toda a história linguística do cinema italiano: além de contribuir para reduzir a distância entre língua nacional e fala fílmica, conseguiu impor-se como variante privilegiada de todo o repertório do cinema nacional sucessivo, a partir da ―comédia à italiana‖ (RAFFAELLI, 1996, p. 329). Fabio Rossi (2007, p. 48) nos explica que, na ―comédia à italiana‖ ou ―comédia italiana‖, o estilo linguístico está quase sempre ligado ao uso dos italianos regionais, principalmente do romanesco, que aparece também em formas híbridas.

De acordo com Raffaelli 49, será somente a partir dos anos 1960 que o cinema influenciará linguisticamente os italianos:

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O cinema é capaz de influenciar diretamente a competência linguística dos italianos somente a partir dos anos 1960, quando a adesão da comédia à realidade leva o cinema a modelar a linguagem fílmica na língua coloquial, considerada por muitos um italiano regional. 50

Segundo Raffaelli (1992, p. 130), o filme inaugural desta tendência linguística foi Il sorpasso (1962), de Dino Risi (segundo filme analisado no corpus). Ciccotti (2001, p. 281) nos fala que foi um filme que uniu o italiano standard e o romanesco atualizado pela gíria do boom econômico dos anos 1950.

O protagonista Bruno, segundo Rossi (2006, p. 347-48), é:

um personagem fanfarrão e patético, como pode-se perceber através da sua língua,

―romanamente‖ colorida e repleta de referências culturais baratas e superficiais, [...] O italiano médio e o italiano regional começarão a ser vistos como ―normais‖ aos

ouvidos dos italianos [...]. 51

A esse respeito, verificamos o uso do romanesco (em negrito, a seguir) no diálogo entre os protagonistas, enquanto eles ultrapassam de carro uma família em uma ―sidecar‖: [Bruno]: E nonno/ non è voluto venì? L‘avete lasciato a casa? Le belle famiglie italiane// Buon viaggio! ―E io me la portai al fiume credendo che fosse una ragazza e invece aveva marito‖// Eh/ la so a memoria// Ho messo il disco di Foà da Terracina a Roma// E... come si chiama... la... La sposa infedele/ di di/ coso/ quello spagnolo/ quello un po‘...

[Roberto]: Garcìa Lorca//

[Bruno]: Ah/ ce l‘hai pure tu il disco// Tiè/ metti questo// È Modugno// Perchè a me la poesia mica me convince tanto// Me piace la musica a me// Questa per esempio/ questa è forte// È mistica/ „na cosa che te fà pensà/ la musica// A me Modugno mi piace sempre// Quest‘Uomo in frac me fa impazzì... Perché... pare ‟na cosa da niente/ invece/ ahó/ c‘ tutto: la solitudine/

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Il cinema in grado di influire direttamente sulle competenze linguistiche degli italiani soltanto a partire dagli anni Sessanta, quando l‘aderenza anche della commedia alla realtà induce a modellare il parlato filmico sulla

lingua quotidiana, che per molti un italiano con varianti per cos dire ‗regionali‘.

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un personaggio nel contempo sbruffone e patetico, come ben risulta dalla sua lingua, romanamente colorita e

infittita di riferimenti culturali spiccioli e superficiali, [..] L‘italiano dell‘uso medio e l‘italiano regionale (realisticamente eseguito) cominciano a entrare stabilmente negli schermi e a risuonare ―normali‖, negli orecchi

degli italiani [...].

51 l‘incomunicabilità/ poi quell‘altra cosa/ quella che va de moda oggi/ la... l‘alienazione/ come nei film d‘Antonioni/ no? L‘hai vista L‟eclisse?

[Roberto]: S // un film...

[Bruno]: Io c‘ho dormito: ‟na bella pennichella// Bel regista/ Antonioni// 52

Entre as primeiras comédias à italiana em que há o uso do italiano regional, temos La voglia matta (1962), de Luciano Salce; do mesmo ano, I nuovi angeli, de Ugo Gregoretti. Este italiano regional estendeu-se também aos filmes de denúncia Le mani sulla città (1963), de Francesco Rosi, e Indagine su un citadino al di sopra di ogni sospetto (1970), de Elio Petri, entre outros.

Raffaelli (1996, p. 330) observa que a adoção de um léxico das linguagens setoriais tornou-se comum nesse período, como podemos ver em títulos e filmes da comédia à italiana como Il sorpasso, Il pollo ruspante, La congiuntura. Mas o que deu novo impulso à renovação da fala fílmica foi o abandono da adoção dialetal mimética pelos cineastas, que preferiram explorar expressivamente os fenômenos dialetais. Tal utilização expressiva dos dialetos de várias proveniências – com prévia modificação para um italiano de uso local, ou ainda, com prévia deformação caricatural – é uma novidade que caracterizará mais de uma década, a partir de 1962. Nesse sentido, foi frequente a inserção de partes em dialeto em um contexto italiano, com a atenuação e quase anulação de suas funções comunicativas, como em alguns filmes de Fellini: 8½ (1963), no episódio em que a avó anda pela casa adormecida; e mais ainda em I clowns (1971), Amarcord (1973) e Il Casanova (1977), filmes em que o dialeto romanholo assume conotações melódico-esotéricas (RAFFAELLI, 1992, p. 132-35).

Como já dito anteriormente, outro importante cineasta a fazer um uso expressivo do dialeto foi Pier Paolo Pasolini, já em Accattone (1961) e Mamma Roma (1962), elaborando liricamente o romanesco dos marginalizados para depois entrar no setor do multilinguismo, em Vangelo secondo Matteo (1964), Edipo re (1968) e Medea (1969), entre outros. Dois filmes que foram expansão dessa corrente multilíngue, de acordo com Raffaelli (1992, p. 136), foram L‟armata Brancaleone (1966) e Brancaleone alle crociate (1970), de Monicelli: neles, a língua é uma mistura ―macarrônica‖ de ―alto-italiano‖, de latinismos, francesismos, vários dialetos, ou seja, um ―pastiche” gaddiano.

A procura da expressividade tirou proveito dos recursos linguísticos de várias origens, o que se pode observar pela presença de palavras estrangeiras nos filmes de Fellini, a partir de La dolce vita (RAFFAELLI, 1996, p. 332); mas essa expressividade teve maior êxito

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Rossi (2006, p. 348) indica a proveniência de todas as citações sobre este filme: (RAFFAELLI, 1996a, p. 329-

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no âmbito do italiano regional, explorando as peculiaridades fonéticas de matriz dialetal, como nos filmes de Germi Divorzio all‟italiana (1961) – que tinha como objetivo criticar os costumes itálicos exasperando (com fins caricaturais) alguns traços linguísticos dos sicilianos — e Sedotta e abbandonata (1964), mais significativo e também de ambiente siciliano, que deformava caricaturalmente os diálogos (RAFFAELLI, 1992, p. 135).

Para Raffaelli (1992, p. 135-36), é digna de menção a cineasta Lina Wertmüller, que utilizou em muitos de seus filmes os traços fonéticos das falas meridionais, misturadas e deformadas até o limite da compreensão, com o objetivo de criar recitativos e melodias de ópera com conotações irônicas. Essas deformações fonéticas estão presentes em alguns filmes, como Mimì metalurgico ferito nell‟onore (1972), com variações melódico-linguísticas de dueto de ópera engraçada; Tutto a posto e niente in ordine (1974); e Fatto di sangue fra due uomini per causa di una vedova (1978), este último, segundo um jornal, retirado de cartaz porque os diálogos eram incompreensíveis para os próprios espectadores meridionais.

Ciccotti (2001, p. 283) afirma que, nos anos 1970, há o retorno do romanesco cinematográfico:

Graças ao ator S. Citti (falante de uma variedade quase belliana), depois também

diretor, apoiado pelo ―pesquisador‖ Pasolini [...], começa uma certa recuperação do

conservador para mesclar-se com um romanesco de segunda fase, neste caso de periferia e, portanto, mais permeável a neoformas, geralmente gírias, expressão das novas casas populares. 53

Alguns filmes do ator-diretor são: Ostia (1970), Storie scellerate (1973) e Casotto (1977); já quase nos anos 1990, temos Mortacci (1989), que oferece os últimos testemunhos do romanesco conservador: «Che c‟avete prescia?» ‗Vocês estão com pressa?‘ (CICCOTTI, 2001, p. 283).

Ciccotti (2001, p. 283-84) observa que também em Roma (1972), de Fellini, temos o romanesco conservador e romanesco normatizado ―neogíria‖, a exemplo da expressão: «A(a) faciolari!» ‗Vocês não servem pra nada!‘, neoforma dos anos 1970 hoje em desuso; ou então, ao contrário, temos construções metafóricas que resistem até hoje: «Sta proprio (b)bene!» ‗Mulher bonita e sexy‘. Outro filme lembrado pelo estudioso é La proprietà non è più un furto (1973), de E. Petri, em que o mesmo argumentava sobre a necessidade de se utilizar o romanesco para «identificar as pessoas com as histórias contadas» 54.

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grazie all‘attore S. Citti (parlante di una varietà quasi belliana), poi anche regista, e sotto l‘incoraggiamento del ―ricercatore‖ Pasolini [...], prende avvio un certo recupero del conservativo da fondere ad un romanesco di

seconda fase, in questo caso di periferia, quindi più permeabile a neoforme spesso gergali, espressione delle nuove aree di caseggiate popolari.

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Ciccotti (2001, p. 284) afirma ser de grande relevância para a história do cinema italiano o ator Alberto Sordi, que em suas falas utilizava o romanesco “di maniera”, em contraste com o italiano médio/standard. São alguns exemplos de filmes em que isso acontece: Racconti d‟estate (1958), de Franciolini; e Il commisario (1962), de Comencini. Mas, segundo o estudioso, o ator não foge a (raras) aberturas ao romanesco conservador, utilizado em vários dos seus personagens, como em: Il seduttore (1954), de Rossi; Lo scapolo (1955), de Pietrangeli; Il marito (1957), de Nanni Loy e Gianni Puccini; Ladro lui, ladra lei (1958), de Zampa; Lo scopone scientifico (1972), de Comencini; Nestore (1995), de A. Sordi, entre outros.

Para o neorromanesco de periferia e conservador reconstruído, Ciccotti (2001, p. 284) cita Ettore Scola e os seus filmes Brutti sporchi e cattivi (1976), Una giornata particolare (1977) e La terrazza (1980). Além destes, o autor nos apresenta outros filmes em que há a presença desse neorromanesco de periferia com inserções de gírias 55: a ―série‖ dirigida por S. Cobucci, com T. Milian como protagonista, dublado por Ferruccio Amendola – Squadra antifurto (1976), Squadra antiscippo (1977), Squadra antritruffa (1977), Squadra antimafia (1978) e Assassinio sul Tevere (1979). Como o estudioso observa, são utilizadas algumas expressões do romanesco conservador como venghi – venha; índole – índole; puro (para pure) – também; etc.

Do final dos anos 1970 aos 1980, Ciccotti (2001, p. 285) nos conta sobre o encontro entre o romanesco normatizado e romanesco ―neogíria‖, estudado, na comédia, pelo ator- diretor Carlo Verdone. O ator observou os jovens do pós-1977 – desiludidos com a política e o engajamento ―social‖ – e reconheceu a fala estática do adepto budista, do jovem arrogante do bar, do plebeu-mammone ‗filhinho da mamãe‘ reprimido, do fanático centauro etc.

Já nos anos 1980, impõe-se a dialetalidade reflexa, até então quase ausente na filmografia italiana. Essa tendência, caracterizada pela utilização de dialetos em extinção, encontrou espaço em pequenas ou médias empresas produtivas, que tinham como objetivo reviver histórias de núcleos sociais linguisticamente homogêneos e fechados do passado. Tal tendência foi considerada por Raffaelli (1992, p. 139-41) uma operação aristocrática, seja porque impôs códigos familiares a poucos (como em La terra trema), seja porque pareceu não ser capaz de enriquecer as competências linguísticas do público. Dois filmes representam o uso reflexo dos dialetos: o bergamasco L‟albero degli zoccoli (1978), de Olmi, e o friulano Maria Zef (1981), de Vittorio Cottafavi. O filme de Olmi evoca liricamente o mundo 54 far identificare la gente con le storie raccontate (RAFFAELLI, 1992, p. 133-34).

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segundo o autor, somente algumas delas existem até hoje: trucido – sujo; madama – polícia; monnezza – para

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camponês bergamasco, adotando o dialeto local dos idosos, ambientado no final do século XIX. Já Maria Zef, inspirado em um romance de Paola Drigo, utiliza o dialeto friulano para contar uma história de degradação moral e social nas montanhas da Carnia no início do século XX.

Concluindo esta cronologia, essa nova presença do ―dialeto reflexo‖, segundo Ciccotti (2001, p. 285), foi fruto de uma exigência, por parte dos autores, de retornar a certo realismo, abandonado por anos, e se dará sempre na direção de um uso mais integral e menos estereotipado do dialeto, como veremos a seguir.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 49-54)