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Um modelo de língua burguesa

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 74-77)

2.4 Da unificação até os dias atuais

2.4.1 Um modelo de língua burguesa

Segundo Stefinlongo (2012, p. 19), houve um enorme fluxo migratório para a Roma pós-unitária, de modo que o número de habitantes cresceu exponencialmente: 212.432 em 1871; 422.411 em 1901; 930.926 em 1931; 1.651.754 em 1951; 2.781.993 em 1971; até chegar a 2.830.569 em 1981. Já o censo de 2001 registra uma flexão demográfica que privilegia as cidades próximas: em 2001, o número de habitantes diminui quase 300 mil pessoas com relação a 1981, enquanto que no mesmo período os habitantes da província se estabilizam em cerca de 3,7 milhões. Usando a definição de Stefinlongo (1999), o transbordamento da cidade no subúrbio favorece a ―neorromanização‖ de uma periferia sempre maior.

Na longa fase de expansão romana, a maior contribuição para o aumento populacional teve origem nas regiões centro-meridionais, com o Lácio em primeiro lugar, mas sem deixar de lado a contribuição setentrional, sobretudo dos piemonteses. De acordo com Trifone (2008, p. 97), essa forte presença de imigrados vindos de regiões diferentes colaborou, principalmente, para o enfraquecimento dos seus próprios dialetos e do dialeto local, fazendo com que se estendesse o domínio da italofonia.

Segundo Trifone (2008, p. 98), o impulso à italofonia constitui o elemento linguístico do programa de avanço social de uma classe média emergente, composta por funcionários, professores, comerciantes, pequenos empreendedores e profissionais, que tinham interesse na nova liderança e mostravam-se fechados quanto à classe mais baixa.

Já o comportamento da aristocracia e da alta burguesia era diferente. Eles recorriam ao romanesco como marca de classe, como forma reacionária e ―antipiemontesa‖: segundo De Mauro (1989, XIV), «como já tinha acontecido nos últimos anos da Revolução francesa e do

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movimento giacobino, o dialeto foi para os papalinos romanos o símbolo de uma identidade que eles achavam que estivesse comprometida por causa do Estado unitário» 72. Como consequência disso, por muitos anos, os mesmos falantes cultos da burguesia urbana continuaram a usar um tipo de italiano com peculiaridades locais, sobretudo nos registros familiares e cotidianos, mas também com reflexos na escrita e no uso formal.

De Mauro (1995, p. 150) observa que há uma situação de movimento no dialeto devido à forte corrente imigratória, principalmente de origem centro-meridional, provocando um processo de ―neomeridionalização‖ linguística (STEFINLONGO, 2012, p. 21). Esse processo se manifestou através de uma maior difusão, inclusive na classe média, de traços tipicamente meridionais, antes presentes somente nas áreas suburbanas e entre as classes sociais mais baixas. Todo esse movimento no dialeto contribuiu para alguns fenômenos descritos primeiramente pelo crítico Porena, em 1925:

a) redução definitiva de rr a uma só consoante r (guera/guerra ‗guerra‘);

b) tendência à queda da letra d na preposição de („n pezz‟e pane/un pezzo di pane ‗um pedaço de pão‘);

c) desenvolvimento de um traço novo: o desaparecimento de l nos artigos, nas preposições articuladas, nos pronomes pessoais, no demonstrativo: quello> quelo ‗aquele‘, a mojje/la moglie ‗a esposa‘, daa tera/dalla terra ou della terra ‗da terra‘, nu mmoo dì/non me lo dire (‗não me diga‘), eccaa/eccola (‗aqui está‘), que bbestie/quelle bestie (‗aqueles animais‘). A redução de l nas preposições articuladas (dello/delo ‗do‘, della/dela ‗da‘) e no pronome demonstrativo (quello/quelo ‗aquele‘) já tinha sido assinalada no século XVIII por Benedetto Micheli, em Avvertimenti linguistici do poema La libbertà romana. Mas Porena faz uma descrição nestes termos: geralmente, o l reduzido cai; no início da frase, conserva-se antes de vogal tônica ou átona

(l‟ovo/l‟uovo ‗o ovo‘, l‟amichi/gli amici ‗os amigos‘); no meio da frase, conserva-se

somente antes da vogal tônica (coci l‟ovo/cuoci l‟uovo ‗cozinhe o ovo‘, quanno

l‟apro/quando l‟apro‗quando o/a abro‘ (TRIFONE, 2008, p. 100).

Mas, como afirma Trifone (1992, p. 581), se, por um lado, alguns traços dialetais novos aparecem, por outro, o processo de italianização progride, especialmente com relação à anafonese, que se afirma transformando definitivamente lengua e fongo dos textos antigos em lingua e fungo (―língua‖ e ―cogumelo‖). Desaparecem, além disso, algumas formas verbais típicas, como as do imperfeito annamio/andavamo ‗íamos‘, vedemio/vedevamo ‗víamos‘ e

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come era già avvenuto negli anni della Revoluzione francese e dell‘ondata giacobina, il dialetto fu per papalini

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partimio/partivamo ‗partíamos‘, preferidas por Belli e ainda usadas até a metade do século XX.

Segundo Trifone (1992, p. 582), o romanesco consegue sobreviver em pleno processo de italianização. O autor concorda com os estudiosos Marano (1984, p. 222), Stefinlongo (1985, p. 48-51), Vignuzzi (1988, p. 633) e Ernest (1989, p. 319-20) quando estes dizem que a proximidade estrutural da língua italiana faz com que o dialeto não se imponha como código alternativo, dotado de função específica, porque é visto como um «italiano incorreto, vulgar», usado por pessoas incultas e vulgares (os valentões e arrogantes ―coatti” das periferias) ou para as comunicações de caráter informal, inibindo ou reduzindo muito a sua capacidade de se desenvolver de forma autônoma.

Consequentemente, Stefinlongo (2012, p. 23) afirma que, ainda nos dias de hoje, a oposição fundamental em Roma não é tanto entre falar italiano, dialeto ou qualquer outra língua, mas entre ―falar bem‖ – ou seja, como uma ―pessoa decente‖ (em um italiano correto, formal, sem regionalismos) – e ―falar mal‖ – ou seja, em um italiano errado, dialetal, típico de ―pessoa vulgar‖.

Além do juízo negativo relacionado ao uso do romanesco por parte da própria comunidade, o que mais contribuiu para o enfraquecimento do romanesco foi a falta de um substrato cultural e material que o alimentasse.

Nesse sentido, Stefinlongo (2012, p. 24) afirma que os costumes, as tradições e muitas das profissões que caracterizavam um modo de viver específico desapareceram. Além disso, mudou o tipo de relação do cidadão romano com o seu ambiente, com o bairro (rione), a rua, como mudou também o modo de ver a vida, o valor da família, do trabalho, dos amigos, a ponto de tornar problemática a definição de ―romanesquidade‖. Tornou-se difícil também identificar em quais bairros a cultura e o dialeto romanesco mantêm uma identidade e vitalidade próprias; no máximo, é possível identificar alguns bairros sobreviventes, como Borgo, Monti, Trevi, Testaccio, Trastevere, e algumas classes sociais: sobretudo pequenos comerciantes, artesãos e operários, de faixa etária mais alta.

Quanto à funcionalidade, Stefinlongo (2012, p. 24) afirma que o romanesco não é utilizado como língua alternativa ao italiano, conforme a situação comunicativa; também em contextos informais (em família, com os amigos), a maior parte das pessoas usa o italiano ou um tipo de italiano regional, ou, ainda, um italiano popular com traços dialetais, mas raramente usará o verdadeiro dialeto em toda a conversação, nem terá a consciência de estar usando outro código. Portanto, no sistema sociolinguístico romano:

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o dialeto não pode ser considerado a língua para o uso informal e descontraído, mas a língua das classes que, segundo o grau de instrução, o tipo de cultura, estão no ponto mais baixo da escala social: ou seja, a linha de demarcação entre a língua italiana, a variedade dialetal ou o dialeto tout court não passa pelo conceito de função, mas pelo valor social e de prestígio. 73

Como já foi dito anteriormente, os próprios habitantes de Roma não consideram o romanesco uma língua verdadeira, mas uma pronúncia errada e vulgar do italiano, juízo que tem suas raízes já em Belli, que recusava a definição de dialeto e etiquetava este italiano mal pronunciado de «língua miserável e engraçada» 74, falada pelo povo. Por todas essas e outras razões que já foram explicitadas anteriormente, Stefinlongo (2012, p. 25-27) afirma que não se deveria falar de um verdadeiro dialeto, mas, sim, de uma variedade dialetal urbana que quase sempre corresponde ao registro baixo, regional, popular do italiano.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 74-77)