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2.2.1 A toscanização do século XV

Trifone (1992, p. 553) relata que o período mais fecundo do ―vulgar‖ romanesco foi o século XV, devido à enorme quantidade de material documentário, pois sempre foi mais utilizado pelos falantes nas crônicas, nos diários, nas escrituras práticas, na literatura popular. Mas, por outro lado, nesse período inicia-se o processo de ―toscanização‖ da língua escrita, ou o uso mais formal, que prepara a passagem do romanesco ―de primeira fase‖ àquele ―de segunda fase‖ ou ―desmeridionalizado‖, quando há o declínio das características dialetais meridionais do romanesco.

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Nesse sentido, segundo De Mauro (1995, p. 24), o processo de italianização linguística se deu em Roma com uma antecipação de séculos, diferentemente de em outras cidades da península, onde se dará somente nas décadas pós-unitárias.

Trifone (1992, p. 554) nos explica que tal acontecimento está diretamente relacionado aos acontecimentos históricos de Roma desse período, especialmente a volta definitiva do papado a Roma, com Martino V (1420), que deu início à desmunicipalização da vida política e social urbana. O poder passa para as mãos dos curiais, os quais, por vários motivos, preferem confiar no capital financeiro e na iniciativa comercial de Florença e, devido a isso, na metade do século XV há uma forte presença de florentinos de todos os níveis: intelectuais, mercantis, artesãos. Com o passar do tempo, quando a Igreja reabsorve a cidade para si, a identificação cultural da classe dirigente ―romanófona‖, junto com o seu idioma, tende a enfraquecer-se.

2.2.2 A variação de registro e de classe na Roma do século XV

Como nos textos citados acima, a ―toscanização‖ do século XV reflete especialmente a produção escrita ou formal da classe alta da sociedade romana, e é no século XVI que o processo de enfraquecimento dos traços meridionais do romanesco atingirá todos os falantes. A esse respeito, Trifone (1992, p. 554) observa que a história linguística de Roma se caracteriza pela lacuna existente entre o uso escrito e falado, causada pelos desníveis sociais e culturais acentuados da sociedade mais heterogênea de toda a Itália. Devido a isso, alguns traços recorrentes nos textos em vulgar, como, por exemplo, a polimorfia (annamo/andamo/andiamo ‗vamos') ou a hipercorreção, serão hábitos que acompanharão toda a história do romanesco.

Quanto à relação entre comunicação escrita e comunicação oral, Trifone (1992, p. 554-55) observa que Roma é o oposto de Florença: enquanto os documentos dos arquivos florentinos são escritos em vulgar, cujas formas, desde as origens, espelham a realidade dialetal, os arquivos romanos contêm muitos documentos, primeiramente, em latim, e depois em toscano ou quase toscano.

Essa distinção entre escrita e fala atingirá o romanesco, como observou Migliorini (1932, p. 114), que verificou uma decadência desse dialeto. Posteriormente, esta tese é contestada por Mancini (1987a, p. 44), que identifica no romanesco médio, pertencente à classe média, o elemento que faltava para a reconstrução miglioriana. Tal variedade, dotada de uma autonomia ausente na variedade alta, representa o ponto de união entre o romanesco de primeira fase e o de segunda fase. Nesse sentido, Trifone é do parecer de que a hipótese

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manciniana ultrapasse a hipótese miglioriana, que fala de uma mecânica «decadência», já que a primeira identifica uma variedade média, capaz de construir um itinerário evolutivo próprio.

Também para Serianni (1989a, p. 266-67), tal «decadência» do romanesco pode ser contestada devido à «presença de vários traços fonéticos inovadores autônomos, ausentes no romanesco mais antigo e característicos do romanesco do século XVI», 63 além da «continuidade de outros fenômenos que resistem às pressões ―toscanizantes‖ ainda hoje». 64 Alguns traços dialetais se difundiram após a Cronica, tais como:

a) o ditongo metafônico eu ao lado de uo do século XV e início do XVI: cuerpo/corpo ‗corpo‘; lueco/luogo ‗lugar‘;

b) a monotongação de uo em o aberta: bono/buono ‗bom‘, a partir do século XVI;

c) o declínio da lateral palatal (gl ‗lh‘) a j: fijo, presentes nos escritos de Peresio a partir do século XVII;

d) a apócope da sílaba final nos infinitivos, que se afirmou entre os séculos XV e XVI: èsse/essere ‗ser‘; parlà/parlare ‗falar‘.

Sendo assim, Trifone (1992, p. 555-56) faz uma reconstrução do status do vulgar em Roma no século XV a partir do esquema de Mancini (1987a) (variedade alta, média e baixa), que consegue explicar, graças à noção de romanesco «médio», a sobrevivência dos requisitos de individualidade e vitalidade do dialeto, mesmo em pleno regime de toscanização linguística.

A variedade alta ou ―oficial‖ compreende os estatutos, os avisos e os documentos curiais, nos quais a toscanização é total. Nesse sentido, o mencionado autor explica que a noção de ―oficial‖ não indica tanto uma diferença de classe, mas, sim, uma diferença de registro, o qual se distingue em literário ou formal e usual ou informal. De fato, havia romanos capazes de utilizar os dois registros, conforme a situação, como testemunham os Diari, de Stefano Caffari, rico mercante pertencente à cúria que vivia uma realidade de trilinguismo latino-romanesco-toscano.

Quanto ao romanesco médio, Trifone (1992, p. 556) enfatiza a dificuldade de estabelecer os limites entre uma variedade e outra do repertório, devido ao caráter de continuum em todas as faixas de textos, indo do nível alto informal aos níveis médio e popular da descrição de Mancini; já a variedade baixa será caracterizada pela produção dos semicultos.

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presenza di diversi tratti fonetici innovativi autonomi, sconosciuti al romanesco più antico e caratteristici del

romanesco post-cinquecentesco.

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Alguns exemplos de romanesco médio citados por Mancini (1987a) são: para o registro literário, um ―lamento‖ em tercetos de Paolo Petrone e um poema do notário Antonio De Tomeis; para o registro usual, o Diario della città di Roma, de Antonio De Vasco; para a variedade popular e o registro literário, há textos religiosos como os Tractati, de padre Giovanni Mattiotti, sobre a santa Francesca Romana; e, para o registro usual, o livro de receitas de medicina prática de Stefano Barocello.

Nos textos há pouco citados, Trifone (1992, p. 556-57) chama a atenção para a homogeneidade linguística e, de um ponto de vista quantitativo, ele nota que o ditongo metafônico aparece pouco, e só no tipo ie (vitiello/vitelo ‗bezerro‘), nos Diari de Caffari; é também rara sua ocorrência no poema de Del Tomeis, em que há as duas formas: ie e eu. Já nos Tractati, aparecem muito os ditongos ie e uo (fierro/ferro ‗ferro‘ e gruosso/grosso ‗grande‘).

Quanto aos outros fenômenos que separam o romanesco de primeira fase do romanesco de segunda fase, temos como exemplo: a conservação de j (ietta/getta ‗joga‘) e a troca de b e v (boce/voce – ‗voz‘). Os traços citados, próprios do nível mais popular, foram progressivamente abandonados pelos falantes, enquanto que os traços do nível médio resistiram, a exemplo da manutenção de E protônica de (di ‗de‘) e de AR átono (sufixo areccio); das assimilações de KS em ss (lassare/lasciare ‗deixar‘) e de NB, MB em nn, mm (quanno/quando ‗quando‘; piommo/piombo ‗chumbo‘); da passagem de NS, LS, RS a nz, lz, rz (penzo/penso ‗penso‘; polzo/polso ‗pulso‘; perzo/perso ‗perdido‘); e da redução de RJ a r (sufixo aro).

Trifone (1992, p. 558) menciona uma parcial toscanização das escrituras médio-altas do século XV, de modo que ainda não se pode dizer que havia uma ―desmeridionalização‖ do romanesco falado, ocorrida apenas no século XVI. A presença maciça dos mercantes florentinos inseridos na sociedade romana, capazes de constituir um grupo de referência também linguística, não foi suficiente para determinar a crise do dialeto falado; somente com a revolução demográfica da primeira metade do século XVI é que se pode falar de uma verdadeira mudança linguística em Roma. De fato, Trifone (2008, p. 59) afirma que:

A reviravolta demográfica causada pelo Saque de 1527 e pelo sucessivo repovoamento da cidade causa uma aceleração à crise do romanesco de primeira fase. A forte imigração centro-setentrional daquele período, forte a ponto de causar a

―desmeridionalização‖ étnico-linguística da cidade, terá a Toscana em primeiro

lugar, graças à política pró-florentina de Clemente VII de‘ Medici. 65

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Il rivolgimento demografico causato dal Sacco del 1527 e dal successivo ripopolamento della città imprime

un moto di accelerazione alla crisi del romanesco di prima fase. La forte immigrazione centro-settentrionale del secondo quarto del Cinquecento, tale da determinare la smeridionalizzazione etnico-linguistica della città, vede in prima linea la Toscana, grazie alla politica filo-fiorentina di Clemente VII de‘ Medici.

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2.2.3 A “língua cortesã”

A nação dos florentinos, formada durante o século XV, alcança o seu apogeu durante os dois pontificados Medici, de Leone X (1513-1521) e de Clemente VII (1523-1534). Assim, a consequente toscanização se torna um aspecto simbólico de promoção social, almejada pelos setores emergentes de um núcleo urbano em contínuo movimento. Isso vai fazer com que esses grupos em ascensão, sensíveis à moda linguística lançada pela cúria, avaliem negativamente o vulgar romanesco (TRIFONE, 1992, p. 559).

Outro fator importante neste período, de acordo com as palavras de Trifone (2008, p. 46), foi a imigração de vários humanistas de várias regiões da Itália à corte pontifícia (como, por exemplo, Bembo, Calmeta, Trissino). Estes eram a favor da língua cortesã como instrumento comunicativo supraregional, de um vulgar que fosse prestigioso e ―comum‖. Todo esse movimento causará efeitos linguísticos diretos especialmente no uso cortesão; mas, por outro lado, a melhoria do tom cultural reforça a tendência das classes superiores urbanas de assumirem um comportamento crítico com relação ao próprio dialeto nativo e a evitá-lo nos registros elevados.

Trifone (1992, p. 560), entretanto, verifica que a mesma «invasão» florentina nos primeiros quinze anos do século XVI não justificou a intensidade e a rapidez do declínio dos traços meridionais do romanesco. Para entendermos, então, como se deu tal mudança, é necessário trazemos alguns dados relativos à população de Roma.

2.2.4 Os efeitos linguísticos do Saque de 1527

Trifone (1992, p. 562) nos apresenta um documento descoberto recentemente – o «Número de todas as bocas que estavam em Roma no ano de 1551» 66 – e relatado por Antonucci (1989c, p. 63) que esclarece o momento de aceleração do processo que causou a crise do romanesco de primeira fase: entre 1527 e 1551, a cidade passou de 30 mil habitantes (logo depois do Saque) para 80-85 mil habitantes, com um aumento de aproximadamente 50 mil pessoas. Se pensarmos que apenas 30 mil habitantes sobreviveram ao Saque de 1527, chegaremos à conclusão de que os ―não romanos‖ eram mais da metade; portanto, Trifone

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(1992, p. 563) levanta a hipótese de que, em 1550, a população de Roma era formada por 75- 80% de imigrados ou filhos de imigrados.

A partir destas e de outras pesquisas, pode-se perceber a predominância centro- setentrional (96%) no quadro de imigrantes. Em primeiro lugar, vem a população proveniente da Toscana, graças à política pró-florentina de Clemente VII de‘ Medici. Segundo Trifone (1992, p. 563), o número de toscanos devia ser igual ao de romanos: isso explicaria o binômio toscanização/permanência dos traços locais.

Como dito anteriormente, o Saque de 1527 teve um impacto fortíssimo sobre a história de Roma. Isso porque, de acordo com De Mauro (1989, p. 20), acabou enfraquecendo a já precária identidade étnico-linguística dos romanos, reduzidos a poucos milhares de indivíduos, além da forte onda migratória de origem centro-setentrional. Com isso, os romanos foram obrigados a usar «plataformas linguísticas de mediação» 67 com os muitos romanos-não-romanos, dos quais a maioria era toscana, explicando-se, assim, a preferência pela variedade toscanizada. Sendo assim, no final do século XVI, o processo acaba investindo globalmente os horizontes do romanesco, em todas as camadas e em todos os seus empregos.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 65-70)