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Desenho 14  História para completar 2ª sessão

4 INFÂNCIAS E AS CULTURAS INFANTIS: REFLEXÕES

4.1 Diferentes perspectivas sobre a(s) infância(s)

Iniciamos a partir da perspectiva histórica. O estudo de Philippe Ariès sobre a criança e a vida familiar no Antigo Regime, publicado na França e traduzido para o Brasil com o título “História social da criança e da família”, analisa o surgimento do sentimento de infância na sociedade moderna. Entre suas principais proposições, afirma que não existia um sentimento de infância antes da Modernidade. Isso não quer dizer, segundo Ariès (2006, p. 99), que as crianças “fossem negligenciadas ou abandonadas”; o que não existia era a consciência da particularidade infantil, que distingue a criança do adulto. Sendo, desse modo, a infância considerada uma invenção da modernidade. Inaugura-se, então, o entendimento de que a infância não é algo natural, mas que foi construída ao longo de um processo histórico.

Frota (2007, p. 151) colabora com essa discussão dizendo que essa afirmação “[…] trouxe grandes mudanças na compreensão da infância, já que ela era pensada como uma fase de vida […]”. Por outro lado, não é possível pensar a(s) infância(s) a partir de condições socioculturais determinadas, como se as crianças de um mesmo tempo histórico passassem pelas mesmas experiências culturais e sociais. Na verdade, é possível dizer que a infância e as crianças mudam com o tempo e com os múltiplos contextos.

Entretanto, estudos posteriores ao de Ariès, como o de Heywood (2004), contestam e trazem novos elementos para a interpretação da condição das crianças no passado. Para o historiador, Ariès foi ingênuo no trato das fontes históricas, principalmente, em relação às fontes iconográficas, pois “os artistas, ao retratarem os adultos, estavam mais preocupados em transmitir o status e a posição dos retratados do que com a aparência individual” (HEYWOOD, 2004, p. 25). Além disso, Ariès se centrou demasiadamente na Idade Média, buscando evidências da concepção de infância no século XII na Europa Medieval. Como não encontrou, concluiu que o período não tinha qualquer consciência dessa

etapa de vida. Historiadores contra-argumentaram dizendo que, nesse período, poderia haver uma consciência bem diferente, de uma cultura diferente da qual pouco se conhece.

Também consideraram exagerada a tese por considerar haver uma completa ausência de consciência da infância na civilização medieval. Demonstraram, através de pesquisa histórica, que havia, sim, algum reconhecimento da “natureza específica” da infância (HEYWOOD, 2004, p. 26), como nos códigos jurídicos medievais, nos quais se costumava proteger o direito de herança de crianças órfãs.

Heywood (2004), em sua análise, questiona o fato de haver uma descoberta da infância, pois há que se considerarem as formas de pensamento e o contexto social que se somam à construção histórica. De acordo com suas palavras, “a história cultural da infância tem seus marcos, mas também se move por linhas sinuosas com o passar dos séculos: a criança poderia ser considerada impura no início do século XX tanto quanto na Alta Idade Média” (HEYWOOD, 2004, p. 45). Reflexão que corrobora para que se considere a infância um constructo social que segue o fluxo variante de diferentes períodos, lugares e contextos sociais.

Kuhlmann Jr. e Fernandes (2012) concordam com as críticas de Heywood. Os autores evidenciam que a consciência da particularidade infantil pode ser identificada desde a Antiguidade e nas mais diversas culturas, desde o século VI ao início do século XX. Dessa forma, contribuem para que pensemos ser a infância uma construção social e histórica presente nas mais diversas culturas, e que, ao longo desse constructo, há muitas imagens das crianças e das infâncias, não podendo ser pensadas fora de seu contexto social. Segundo eles, há que se fazer uma reflexão crítica sobre a(s) infância(s) e suas histórias no que se referem “[…] às desigualdades e diferenças entre diferentes grupos de crianças, o que invalida o sentido unitário e uniforme atribuído ao conceito.” (KUHLMANN JR.; FERNANDES, 2012, p. 23). Portanto, a infância precisa ser pensada como uma construção multifacetada e nos contextos econômico, social, político, geográfico e cultural, dentre outros.

Com o estabelecimento de uma distinção entre adultos e crianças, surgem, então, novas formas de organização social, nas quais figuram o aluno, a escola e a família nuclear. A instituição dessa nova forma de organização das relações e de instituição da escola fez surgir, em meados do século XIX, duas importantes ciências que se ocupam das questões da infância: a Psicologia e Pedagogia. Para Barbosa (2014, p. 648), psicólogos e pedagogos são os fundadores do campo dos Estudos da Infância e das Crianças: “[…] foram eles que criaram espaços para a investigação sobre as crianças e contribuíram ativamente para a formulação de uma concepção de infância em suas nascentes disciplinas científicas e práticas educacionais.”

Na construção teórica de suas concepções e objetos metodológicos, a Psicologia e a Pedagogia caminharam dentro de um cenário que, inicialmente, apresentava uma perspectiva “[…] da universalidade da infância, da padronização e da linearidade no comportamento das crianças, além do estabelecimento de parâmetros de normalidade, isto é, uma concepção homogeneizadora e evolutiva do desenvolvimento humano […]” (BARBOSA, 2014, p. 648). Desse modo, as crianças foram vistas apenas sob o viés psicologizante relacionado a uma fase de vida, a características etárias e à institucionalização do ensino e aprendizagem. O desenvolvimento era visto nos seus fatores comportamentais, maturacionais e não sociais.

De acordo essa autora, na segunda metade do século XX, a concepção unitária e homogeneizadora foi problematizada; outros estudos emergiram vinculados às linhas teóricas como psicanálise, construtivismo, interacionismo simbólico e à teoria histórico-cultural.

A teoria histórico-cultural considera a constituição social do sujeito dentro de uma cultura concreta, vivida e construída nas interações sociais. Para Vygotsky (1998, 2005), a construção do pensamento e da linguagem é um processo cultural. Para Wallon (2007, 2008), o desenvolvimento é um processo constituído por fatores orgânicos e sociais e pelos domínios funcionais da afetividade, cognição e motricidade. A criança é vista em sua integralidade, “completa, concreta e corpórea” (DANTAS, 1992b), constituída na relação eu-outro, perspectivas adotadas neste estudo.

É imprescindível mencionar a herança histórica dos intelectuais da educação do final do século XIX e princípio do século XX, tais como John Dewey, Maria Montessori, Célestin Freinet, Jerome Bruner, Lev Vygotsky e Loris Malaguzzi, criadores de uma herança rica e que precisa ressoar nas práticas pedagógicas realizadas com as crianças; uma forma de rompermos com as práticas burocráticas e transmissivas que marcam a história da educação. De acordo com Oliveira-Formosinho (2007, p. 13), “[…] a pedagogia da infância pode reclamar que tem uma herança rica e diversificada de pensar a criança como ser participante, e não como um ser em espera de participação”. Ouvir as vozes dos pedagogos dos dois últimos séculos é o que precisamos para desenvolver “[…] uma pedagogia transformativa, que credita a criança com direitos, compreende a sua competência, escuta a sua voz […]”, conclama-nos Oliveira-Formosinho (2007, p. 14).

Barbosa (2014, p. 648) enfatiza que as investigações e os estudos dos pioneiros trazem importantes contribuições para o campo científico, afirmando a:

[…] distinção entre as crianças e os adultos, afirmando um modo qualitativamente diferente de ser e de pensar, mas não de inferioridade; na observação das crianças em seus ambientes naturais; na escuta de seus modos de pensar, procurando valorizar e conceitualizar as ações realizadas por elas; na verificação das necessidades e dos interesses manifestados por elas; e na visualização da brincadeira como um elemento central de suas vidas.

No campo social, as contribuições advêm das pesquisas científicas, de estudos acadêmicos, dos movimentos sociais e da efervescente e significativa produção de documentos já elaborados desde as décadas de 1970 e 1980, pensados e referendados por inúmeros debates e consultas públicas à sociedade. Essa intensa produção tem o compromisso de garantir os direitos a uma EI democrática e de boa qualidade para todas as crianças. E como ressaltam Dahlberg, Moss e Pence (2003), essa qualidade precisa ser pensada relacionada ao contexto socioeconômico e estrutural, levando em consideração a instituição, os materiais, as concepções e, principalmente, as crianças e os adultos que estão inseridos no contexto, fator fundamental para que se reconheçam crianças e adultos em suas condições existenciais.

Os Estudos da Infância contribuem para uma maior visibilidade das crianças e suas singularidades expressas nas suas formas de ser, pensar, brincar e nas suas múltiplas linguagens. Mesmo com todo esse movimento, Sarmento (2007, p. 26) ressalta que a infância tem passado por um processo de (in)visibilidade social “que oculta a realidade dos mundos sociais e culturais das crianças, na complexidade da sua vivência social”.

Um exemplo desse anonimato refere-se ao longo tempo em que as crianças ficaram à margem das questões centrais que lhe dizem respeito, como nas pesquisas científicas realizadas sobre as crianças, e não com as crianças. Outro exemplo é o conhecimento sobre as singularidades e manifestações interacionais dos bebês e as culturas infantis produzidas pelas crianças bem pequenas que, só agora, bem recentemente, têm sido investigadas e problematizadas.

Assim, outras perspectivas, como as dos campos do conhecimento das Ciências Sociais e Humanas, são importantes para ampliarem o nosso olhar sobre as diferentes infâncias e contribuir para uma “[…] reflexão interdisciplinar sobre as culturas infantis”, como sugere Barbosa (2014, p. 651). Os chamados Novos Estudos da Infância (QVORTRUP, 2011; CORSARO, 2011) contribuem com novas bases teóricas e problematizam sobre os contextos e as diferentes representações sociais de infância na contemporaneidade.

A contemporaneidade aponta para uma multiplicidade de infância(s), deixando clara a ideia da infância como uma construção social, um paradigma da pós-modernidade. De

acordo com Frota (2007, p. 149), pensar a multiplicidade das infâncias existentes na perspectiva pós-moderna significa que:

[…] não existe conhecimento absoluto, realidade cristalizada, esperando para ser conhecida e domada; um entendimento universal, que se faça fora da história ou da sociedade. No lugar disso, o projeto pós-modernista propõe que o mundo e o conhecimento dele sejam vistos como socialmente construídos. Isso significa pensar que todos nós estamos engajados na construção de significados, em vez de engajados na descoberta de verdades. Assim, não existe somente uma realidade, mas várias.

Mas o que caracteriza a infância pós-moderna? Quais as suas implicações para a construção de uma pedagogia para a primeira infância? É o que nos instiga a pensar Dahlberg, Moss e Pence (2003). Segundo suas ideias, na perspectiva pós-moderna,

[…] não existe algo como “a criança” ou “a infância”, um ser e um estado essencial esperando para ser descoberto, definido e entendido, de forma que possamos dizer a nós mesmos e aos outros “o que as crianças são e o que a infância é”. Em vez disso, há muitas crianças e muitas infâncias, cada uma construída por nossos “entendimentos da infância e do que as crianças são e devem ser” (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 63, grifos dos autores).

Assim, as crianças são consideradas nas suas relações com o(s) outro(s) sempre num contexto particular próprio. As crianças, nesse contexto, constroem significados, identidades, aprendem através de suas experiências. A pedagogia da primeira infância na pós- modernidade rompe com os processos predeterminados lineares, rígidos e reprodutivistas de aprendizagem e socialização, passando a conceber o processo de construção de identidades e subjetividades em contextos específicos, sempre abertos à mudança, à transformação e ao conhecimento, nos quais as crianças são percebidas como inseridas em identidades múltiplas e justapostas, sendo participantes ativos dessa construção. Portanto, novos olhares se assemelham “a uma colcha de retalhos pluralista.” (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 79).

Também no movimento denominado Filosofia da Educação ou Filosofia da

Infância (KOHAN, 2007, 2010), a criança é concebida como capaz de refletir, de expressar-

se em suas múltiplas linguagens, de se colocar como pessoa, de transgredir e de viver plenamente suas experiências. O conceito de devir-criança28 ajuda a pensar a infância. Devir não está relacionado ao futuro ou à cronologia; pensar a criança como um devir é concebê-la na sua existência. Devir é a possibilidade de encontro, de possibilidades e de uma intensa

28 De acordo com Deleuze e Patner (1998 apud KOHAN, 2007), devir é um encontro entre duas pessoas,

acontecimentos, movimentos, ideias, entidades, multiplicidades, que provoca uma terceira coisa entre ambas, algo sem passado, presente ou futuro; algo sem temporalidade cronológica, mas com geografia, com intensidade e direção próprias.

experiência com a infância. Portanto, a criança está aberta ao acontecimento, à existência, às experiências!

Segundo Kohan (2007, p. 94), há duas infâncias: uma é “a infância majoritária, a da continuidade cronológica, das etapas do desenvolvimento das maiorias […] é a infância que, desde Platão, se educa conforme um modelo”. Esta segue o tempo da progressão: primeiro somos bebê; depois, criança; em seguida, adolescentes, até chegarmos à velhice. E existe outra infância que habita outra temporalidade: a infância minoritária. Esta é concebida “como experiência, como acontecimento, como ruptura da história, como revolução, como resistência e como criação.”

De acordo com o filosofo, não se trata de combater uma e idealizar a outra, também não se trata de como deve ser a infância, o tempo, a educação, mas afirmar a força que tem a diferença, o ser, o diversificar e o revolucionar. Nesse sentindo, a infância é entendida como tempo de criação, de encontro, de ser, agir e sentir no tempo de acontecimento e não um vir a ser.

A Antropologia, ciência social responsável pelo estudo das sociedades em seu contexto cultural e social, tem avaliado e revisto seus principais conceitos, dentre eles o conceito de cultura. Nessa revisão, segundo Cohn (2005, p. 19), foi abdicado o conceito de cultura como um conjunto de costumes, valores e crenças, empiricamente observável e delimitado, adotando um conceito de cultura que expressa “uma lógica particular, um sistema simbólico acionado pelos atores sociais para dar sentido às suas experiências”. A cultura sempre continuará existindo enquanto houver os sistemas simbólicos criados nas relações e interações entre os sujeitos. Desse modo, a cultura está presente nos contextos e nas relações sociais, nos quais a criança tem um papel atuante, passando a ser vista como ator social. A autora ressalta que a revisão dos conceitos-chave da antropologia permite

[…] que se vejam as crianças de uma forma inteiramente nova. Ao contrário de seres incompletos, treinando para a vida adulta, encenando papéis sociais enquanto são socializados ou adquirindo competências e formando sua personalidade social, passam a ter um papel ativo na definição de sua própria condição (COHN, 2005, p. 21).

As mudanças que ressignificaram os estudos antropológicos contribuem para que se considere a criança como ator social, que tem um papel ativo nas relações sociais, nas construções de papéis e nas interações sociais nas quais se engajam. A criança como

produtora de cultura não é apenas consumidora das culturas, mas produz cultura e elabora

Considerando essa dimensão plural e diversa, Cohn (2005, p. 35) argumenta que falar de uma só cultura infantil é o mesmo que “universalizar, negando as particularidades socioculturais”. A autora assegura que é preciso considerar a pluralidade das realidades nas quais as crianças estão inseridas, assim como o sistema simbólico compartilhado com os adultos e construído na cultura de pares. Isso tudo nos faz compreender por que se fala de “culturas das infâncias” e não de uma “cultura da infância”. Nesse mesmo mote se concebe uma Antropologia da criança (COHN, 2005), e não da infância, pois “a infância é um modo particular, e não universal, de pensar a criança.” (COHN, 2005, p. 21). Conforme esse postulado, a ideia de infância não pode existir sem considerarmos os contextos socioculturais nos quais estão inseridas as crianças.