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Desenho 14  História para completar 2ª sessão

3 A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO E DA LINGUAGEM NA

3.3 O surgimento e a importância da linguagem

A importância do caráter sócio-histórico do pensamento e da linguagem tem um papel de destaque na obra de Vygotsky. Em suas palavras, “[…] o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, isto é, pelos instrumentos linguísticos do pensamento e pela experiência sociocultural da criança” (VYGOSTKY, 2005, p. 62).

As crianças, no processo de desenvolvimento do seu pensamento, buscam as palavras para dizer, perguntar, descobrir e para conhecer e compreender os significados de sua cultura através da linguagem.

Assim como o instrumento e os signos, a linguagem é um elemento mediador por excelência, pois é

[…] entendida como um sistema simbólico fundamental em todos os grupos humanos, elaborado no curso da história social, que organiza os signos em estruturas complexas e desempenha um papel imprescindível na formação das características psicológicas humanas (REGO, 1995, p. 53).

A linguagem, para Vygotsky, é entendida como uma construção histórico-social. Juntamente com seus colaboradores, ele estudou os processos de organização do pensamento e da fala no desenvolvimento da espécie humana e no desenvolvimento do indivíduo.

Na filogenia15 do pensamento e da fala, “pode-se distinguir claramente uma fase pré-linguística no desenvolvimento do pensamento e uma fase pré-intelectual do desenvolvimento da fala” (VYGOTSKY, 2005, p. 51). Na criança, as raízes pré-intelectuais da fala e do desenvolvimento do pensamento seguem percursos diferentes e independentes.

A fase pré-verbal do desenvolvimento do pensamento é caracterizada por uma inteligência prática, na qual a criança demonstra a capacidade de resolver problemas práticos, com o auxílio de instrumentos intermediários, como os objetos e através de suas condutas motoras, como subir numa cadeira para alcançar um brinquedo que está no alto da estante. Oliveira (1997) salienta que essa capacidade permite à criança pré-verbal agir sobre o ambiente sem a mediação da linguagem.

No desenvolvimento da fala, Vygotsky (2005, p. 52) considera que choro, balbucio, riso, expressões faciais e as primeiras palavras “são claramente estágios do desenvolvimento da fala que não têm nenhuma relação com a evolução do pensamento”. Essas manifestações são, predominantemente, emocionais, no entanto, apresentam uma clara função social, pois bebês e crianças bem pequenas manifestam, através de suas expressões e nas diversas situações sociais, formas de interagir e mobilizar o outro, a julgar pelo choro que tem diferentes entonações.

Cabe, contudo, ao adulto observar e entender essas manifestações. Vygotsky (2005) enfatiza que essas manifestações de contato social, repletas de significados emocionais, são características do primeiro ano de vida da criança; e recebe dele a denominação de fase pré-intelectual do desenvolvimento da linguagem.

Entretanto, a descoberta mais importante da relação pensamento e linguagem ocorre no desenvolvimento ontogenético16, quando as raízes genéticas do pensamento e da fala, em certo momento, aproximam-se: “[…] mais ou menos aos dois anos de idade, as curvas da evolução do pensamento e da fala, até então separadas, encontram-se e unem-se para iniciar uma nova forma de comportamento” (VYGOTSKY, 2005, p. 53).

Vygotsky (2005, p. 58) explica que as trajetórias do pensamento e da fala se entrecruzam “nas partes que coincidem, o pensamento e a fala se unem para produzir o que se chama de pensamento verbal”, não se caracterizando por uma descoberta súbita, mas um resultado de um longo processo funcional de mudanças, que se inicia por volta de dois anos e segue durante o desenvolvimento do indivíduo.

15 Denomina-se filogênese o processo de desenvolvimento da espécie humana. 16 Entende-se por ontogênese o processo de desenvolvimento individual do homem.

Vygotsky (2005, p. 53) descreve a importância dessa apropriação dizendo que o propósito da fala é para a criança “a maior descoberta de sua vida”. Esse advento, segundo ele, inaugura uma nova forma de comportamento superior, na qual “a fala começa a servir ao intelecto, e os pensamentos começam a ser verbalizados”. Nesse momento, capacidades específicas do desenvolvimento afloram, como “[…] a curiosidade ativa e repentina da criança pelas palavras, suas perguntas sobre cada coisa nova („o que é isto?‟); e a conseqüente [sic] ampliação do vocabulário, que ocorre de forma rápida e aos saltos” (VYGOTSKY, 2005, p. 53, grifo do autor).

Um processo de muitos avanços e possibilidades, em que pensamento e fala se tornam predominantes, agindo nos campos simbólico e sociocultural, nos quais as crianças têm muito a dizer, a perguntar, imaginar e descobrir.

Rego (1995) contribui significativamente para essa discussão elencando as principais mudanças que o surgimento da linguagem imprime nos processos psíquicos do homem. Assim:

a) a linguagem permite lidar com os objetos do mundo exterior mesmo quando

eles estão ausentes, ou seja, surge a capacidade simbólica de representação,

pois a criança realiza a ação internamente. Dessa forma, um cabo de vassoura pode representar um cavalo;

b) a linguagem possibilita abstração e pensamento generalizante. Desse modo, as formas de pensamento, antes relacionadas às características físicas dos objetos, passam a ser regidas pelo interesse da criança pelos significados e conceitos; c) finalmente, a função de comunicação entre os homens, garantindo a

preservação, transmissão e assimilação de informações e experiências acumuladas pela humanidade ao longo da história. Vista como um constructo

histórico-social, a linguagem garante a inserção da criança em seu grupo cultural e amplia suas experiências sociais através dos significados. A palavra, de acordo com Rego (1995) terá papel fundamental na inserção do homem na cultura, atuando na compreensão dos significados e na representação da realidade.

O significado das palavras ocupa um lugar de destaque na relação entre pensamento e linguagem. Para Vygotsky (2005, p. 5), “[…] é no significado da palavra que o pensamento e a fala se unem em pensamento verbal. É no significado, então, que podemos encontrar as respostas às nossas questões sobre a relação entre pensamento e a fala”.

Dessa forma, o teórico afirma que a unidade do pensamento verbal encontra-se no significado das palavras, no qual uma nova forma de mediação simbólica se processa. Os significados das palavras irão propiciar a aproximação da criança com os elementos convencionados culturalmente. Prossegue Vygotsky (2005, p. 150, grifo do autor),

O significado de uma palavra representa um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da “palavra”, seu componente indispensável. Pareceria, então, que o significado poderia ser visto como um fenômeno da fala. […] o significado de cada palavra é uma generalização ou um conceito. E como as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos do pensamento, podemos considerar o significado como um fenômeno do pensamento.

Oliveira (1997, p. 48) esclarece que “o significado é um componente essencial da palavra, já é, em si, um ato de pensamento”, traz consigo uma generalização ou um conceito. Assim, a criança “descobre” que “cada coisa tem seu nome” e começa a perguntar como se chama cada objeto. Dessa forma, mesa, carro, cadeira, sapato, etc. têm significados próprios e possibilitam a comunicação, o pensamento generalizante e o intercâmbio social da criança com o mundo.

Isso significa dizer que, à medida que as crianças interagem com outras crianças, com adultos e com a cultura, aprendem a contextualizar as palavras, a pensar de forma generalizante e ampliam seus referenciais quanto aos significados. Desse modo, forma um animal de quatro patas, que não é somente um cavalo, mas é também um cachorro, um gato, uma vaca.

Oliveira (1997, p. 49) salienta que, no processo de apropriação da palavra, de interações e experiências culturais e sociais, “a criança vai ajustando seus significados de modo a aproximá-los cada vez mais dos conceitos predominantes no grupo cultural e lingüístico [sic] de que faz parte”.

Por isso é fundamental que na EI as crianças tenham inúmeras possibilidades de expressão da linguagem oral e do pensamento, nas interações da criança-criança, criança- adulto e em situações de participação coletiva como na Roda de Conversa. O pensamento se materializa em palavras, significados, curiosidades, descobertas e nas múltiplas linguagens.

O advento da linguagem promove mudanças basilares nas formas de comunicação, organização, de pensar e de se relacionar das crianças. Contudo, como se relacionam pensamento, fala, palavras e seus significados no processo de aquisição da linguagem como um instrumento do pensamento?

O processo de utilização da linguagem, como instrumento do pensamento, pressupõe um processo de internalização da linguagem, que é o modo pelo qual a criança interioriza os elementos sociais e padrões de comportamento de seu grupo cultural.

Em seus escritos, Vygotsky (2005) salienta que esses elementos são internalizados de forma gradual por meio de uma série de mudanças nas funções psíquicas. A fala passa por uma trajetória que evolui de uma fala exterior para uma fala egocêntrica e desta para uma fala interior. É importante compreender como se dá o processo de internalização da fala, conforme Vygotsky (2005).

A fala exterior ou comunicativa, segundo Vygotsky (2005, p. 164), “consiste na tradução do pensamento em palavras, na sua materialização e objetificação”. Rego (1995) elucida que é uma fala comunicativa, global, não apresentando um planejamento em sequência. Daí a necessidade da criança apelar ao adulto para solucionar um problema. Ainda segundo a autora, a fala exterior “é fruto das atividades interpsíquicas que ocorrem no plano social” (REGO, 1995, p. 65).

Já a fala egocêntrica é um estágio transitório entre a fala exterior e a fala interior. De acordo com Vygotsky (2005, p. 166), “[…] a fala egocêntrica é um fenômeno de transição das funções interpsíquicas para as intrapsíquicas, isto é, da atividade social e coletiva da criança para a sua atividade mais individualizada. […] A fala para si mesmo origina-se da diferenciação da fala para os outros”.

Esse momento de diferenciação tem características específicas, nas quais a fala começa a ter uma função pessoal, ligada às necessidades do pensamento da criança.

De acordo com Oliveira (1997), a criança que passa a utilizar a fala egocêntrica fala para si mesma, independente da presença de um interlocutor, como se estivesse estabelecendo um diálogo consigo mesma.

A fala egocêntrica serve ainda como apoio ao planejamento das ações da criança e na resolução de problemas. Sobre a função planejadora da fala, esta possibilita à criança ir além das experiências imediatas.

Rego (1995, p. 66) ressalta que a fala acompanha a ação e se dirige ao próprio sujeito da ação. Percebe-se essa função planejadora da fala nas crianças quando elas decidem ou planejam o que irão desenhar, por exemplo; ou quando a criança vê uma caixa de brinquedo em cima de uma estante e logo deseja alcançá-la; age e diz em voz alta: “vou pegar

aquela cadeira, subir e pegar aquela caixa!”. Vê-se, portanto, que a fala egocêntrica […] “é a

comportamento da criança” (VYGOTSKY, 2005, p. 56). Sendo, portanto, necessária ao desenvolvimento do pensamento.

Quanto à importância da fala egocêntrica para a interiorização do pensamento na criança, o teórico enfatiza que “[…] a fala egocêntrica não se limita a acompanhar a atividade da criança; está a serviço da orientação mental, da compreensão consciente; ajuda a superar dificuldades; é uma fala para si mesmo, íntima e convenientemente relacionada com o pensamento da criança” (VYGOTSKY, 2005, p. 166).

Vygotsky (2005) salienta que o papel da atividade da criança em situações de interações sociais colabora para a evolução de seus processos mentais. Por isso é tão importante as situações de diálogos, conversas, trocas comunicativas e as situações nas quais bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas17 possam se expressar em suas múltiplas

linguagens18 e por meio da linguagem oral, tendo no adulto um parceiro de diálogo.

O curso de evolução do pensamento e da fala transforma-se gradualmente em fala interior, o que representa um salto qualitativo no desenvolvimento do pensamento da criança e, como explicita Oliveira (1997), quando a criança é capaz de utilizar a linguagem como instrumento do pensamento. Vygotsky (2005, p. 184) esclarece:

A fala interior não é o aspecto interior da fala exterior – é uma função em si própria. […] pensamento ligado por palavras. Mas enquanto na fala exterior o pensamento é expresso por palavras, na fala interior as palavras morrem à medida que geram pensamento. A fala interior é, em grande parte, um pensamento que expressa significados puros. É algo dinâmico, instável e inconstante, que flutua entre a palavra e o pensamento, os dois componentes mais ou menos estáveis, mais ou menos solidamente delineados do pensamento verbal.

A fala interior inaugura na criança novas formas de comportamento psicológico, tais como a generalização e a abstração. Segundo Oliveira (1997), o pensamento generalizante torna a linguagem um instrumento do pensamento. A partir dessa capacidade tipicamente humana, a criança é capaz de agrupar objetos, eventos, situações, numa mesma categoria conceitual, compondo uma nova forma de organizar o mundo.

O discurso interior, de acordo com a referida autora, tem a função de auxiliar a criança na resolução de seus problemas. Por isso, a linguagem passa a ser dirigida ao próprio sujeito e não a um interlocutor externo.

17 O documento Práticas Cotidianas na Educação Infantil (BRASIL, 2009a) utiliza uma nomenclatura

diferenciada para destacar as especificidades requeridas pela faixa etária dos 0 a 3 anos. Assim, compreende- se bebês como crianças de 0 a 18 meses; crianças bem pequenas, como crianças entre 19 meses e 3 anos e 11 meses; crianças pequenas, como crianças entre 4 anos e 6 anos e 11 meses.

18 Quando enfatizamos as diferentes linguagens, reportamo-nos às diversas formas de expressão da criança, tais

A internalização da fala é um processo gradual que passa pela apropriação das palavras e de seus significados e se completará ao longo do desenvolvimento da criança, quando, finalmente, a fala se torna um importante suporte para os progressos do pensamento.

Vale ressaltar que o desenvolvimento da fala, assim como o do pensamento, ocorre nas interações entre os processos externos (sociais e interpsíquicos) e internos (individualizados e intrapsíquicos); um agindo sobre o outro e impulsionando o desenvolvimento. Vygotsky (2005, p. 58) exemplifica o seu pensamento dizendo:

[…] podemos imaginar o pensamento e a fala como dois círculos que se cruzam. Nas partes que coincidem, o pensamento e a fala se unem para produzir o que se chama de pensamento verbal. O pensamento verbal, entretanto, não abrange de modo algum todas as formas de pensamento ou de fala.

Esse estudioso expressa a predominância do pensamento verbal na ação da criança e ressalta a abrangência dos processos de expressão da fala dela ̶ e por que não dizer de suas múltiplas linguagens ̶ , intimamente relacionados à expressão do pensamento.

Para que a fala e as múltiplas linguagens sejam a expressão do pensamento, as experiências com a(s) linguagem(ns) devem ser protagonistas em todos os momentos de interações das crianças, devendo, também, permear o desenvolvimento em sua integralidade, ou, como magistralmente enfatiza Vygotsky (2005, p. 63), “o desenvolvimento intelectual da criança depende de seu domínio dos meios sociais do pensamento, isto é, da linguagem”.

Dessa forma, através de participação e de um espaço pleno de expressão do pensamento materializado em palavras, significados, conhecimentos e narrativas, a Roda de Conversa se constitui como um espaço que promove a ampliação dos conceitos e das experiências com a(s) linguagem(ns), papel fundamental das instituições de EI.