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Desenho 14  História para completar 2ª sessão

6 O CENTRO DE EDUCAÇÃO INFANTIL CURUMIM

6.4 A escuta da professora sobre seu percurso profissional e suas concepções

Nesta seção, apresentamos o relato da professora Emília sobre seu percurso e experiências profissionais, assim como suas concepções sobre a Roda de Conversa.

A professora Emília69, no período da pesquisa com 33 anos, casada, tinha uma filha e estava grávida de seis meses quando iniciamos essa investigação, no início do mês de setembro de 2016. Era professora do quadro efetivo da rede pública municipal de ensino e trabalhava nos períodos manhã e tarde no CEI Curumim desde o ano de 2012. Afirmou atuar na área da Educação há oito anos e, como professora de Educação Infantil, há cinco anos. O relato ora apresentado foi concedido por meio de entrevista, realizada nas dependências do CEI. A entrevista foi organizada em quatro blocos: formação inicial, profissional, continuada e concepções sobre a Roda de Conversa.

Emília cursou todo o Ensino Médio na rede pública de ensino, em que fez parte do grêmio estudantil. Essa participação, segundo seu relato, influenciou sua escolha em prestar o vestibular para a universidade pública. Foi aprovada para o Curso de Ciências Sociais (diurno) da UFC e Pedagogia (noturno) na Universidade Estadual do Ceará (UECE). Então, optou pelo curso de Pedagogia, por ofertar o curso no período noturno, pois precisava trabalhar durante o dia para ajudar nas despesas de casa. Concluiu a graduação em Pedagogia – Habilitação em Administração Escolar no ano de 2009.

Quanto às disciplinas do curso de Pedagogia relacionadas à EI, Emília se recordou de ter cursado duas disciplinas optativas na área da Psicologia, referentes ao desenvolvimento da criança, e uma disciplina obrigatória. Segundo ela, “os professores diziam que a teoria

ajudaria a aperfeiçoar a prática e nossas ações enquanto profissionais.” A docente considera que esses conhecimentos ajudaram muito, pois “a gente chega na faculdade com o senso

comum, esses conhecimentos ajudaram no início da minha atuação como professora.”

Quanto à experiência de estágio supervisionado, a docente cursou três disciplinas de estágio, mas nenhum vinculado à Educação Infantil. Na sua visão, a experiência de estágio que mais se aproximou da vivência com a EI foram oficinas com as famílias das crianças atendidas por uma instituição filantrópica. Emília considerou que essa vivência do estágio foi muito enriquecedora. As outras experiências aconteceram por meio de visitas a escolas de Ensino Fundamental e na Educação de Jovens e Adultos (EJA). No mesmo ano em que concluiu a graduação, prestou concurso para a Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF).

Como profissional, atuou em projetos sociais de medidas socioeducativas vinculados ao governo do estado do Ceará, como professora com contrato de trabalho

69 O nome fictício dado à professora participante da pesquisa tem o compromisso de preservar sua identidade e

temporário70 na PMF em turmas de 1º ano, e como coordenadora pedagógica em uma instituição de Educação Profissional. Nesse ínterim, Emília cursou duas pós-graduações lato

sensu: Ensino da História e Geografia e Especialização em Educação Infantil, ambas

ofertados por instituições privadas.

No ano de 2012, a professora Emília assumiu o concurso da PMF e foi lotada em turmas de 1º ano do Ensino Fundamental. No CEI Curumim, atua, desde o ano de 2014, nas turmas de Infantil IV. Participa das formações continuadas oferecidas pela SME desde o ano de 2012 e ressaltou que a formação continuada “é importante para ajudar a professora na sua

atuação com as crianças”. Em sua opinião, a formação nos últimos quatro anos passou a ter mais qualidade. Ressaltou, ainda, que mudou como profissional, pois antes tinha uma visão voltada para os projetos relacionados a áreas do conhecimento, tais como: ciências da natureza, linguagem e conhecimento lógico-matemático. Emília destaca, ainda, o tema da arte, da musicalidade e o uso de mídias (computador, lousa digital e laptops) como temáticas interessantes e que acrescentaram novas possibilidades para sua prática pedagógica atual, fazendo a seguinte reflexão: “o meu planejamento do ano passado, quando eu pego pra esse

ano, é como se a gente desse um salto. Mas, também, a própria visão da formação continuada mudou. É como se eu fosse um dinossauro há três anos atrás e, hoje, eu tivesse evoluído”.

Vê-se, portanto, que a professora atribui à formação continuada uma importante contribuição para seu crescimento como profissional. Apontou, como possibilidade de melhoria da formação, a mudança do processo avaliativo, criticou os relatórios e trabalhos finais que são entregues ao final da formação e sugeriu: “eu acho que o modelo avaliativo

final tinha que ter algum mecanismo… algum instrumental que fosse pra dentro da sala, pra ver se a formação teve alguma repercussão na prática do professor, entendeu?” As reflexões de Emília sobre seu percurso e aprendizagem profissionais corroboram com o que Oliveira- Formosinho (2011, p. 134) menciona ser o desenvolvimento profissional: “um aprendizado ao longo da vida” feito de fases, ciclos, que não pode ser um processo linear, mas feito de reflexões, contradições, valores, crenças e conhecimentos que constitui os modos de ser professor de EI.

O tema da Roda de Conversa, segundo Emília, foi enfatizado na formação continuada no ano de 2016. De acordo com o entendimento da docente, “a Roda de Conversa

70 Regime de trabalho no qual a professora é contratada por um período de tempo determinado. Os professores

que trabalham nesse regime substituem professores do quadro efetivo que estão de licença saúde ou quando há carência de professor.

foi abordada em relação a outras temáticas, como a musicalidade, o contexto social da criança e relacionada ao desenvolvimento de projetos.”

Perguntamos à professora se ela já tinha conhecimento de leitura específica sobre a Roda de Conversa. Emília não se recordou de ter lido algo específico sobre a temática, mas cita um livro que leu chamado “O cotidiano escolar” que, segundo ela, aborda a importância do respeito à opinião do outro,

[…] faz referência à questão do diálogo. Quando eu li esse livro, eu li o resumo, porque eu não tinha o livro. Ele traz esse contexto do diálogo, da construção da comunicação no individuo, como é feita a prática pedagógica, como é realizada. Ele traz tudo isso. Ele te dá uma abertura maior para a questão do fazer, entendeu? E dentro do fazer, o respeito à questão do diálogo, do respeito à opinião, à formação do ser ou dos seres, porque a gente tem várias realidades.

Emília apresentou diferentes concepções quanto à realização da Roda de Conversa. Segundo a professora, “antes, a visão de Roda de Conversa que se tinha era aquela

coisa do encantamento, do mundo infantil, da contação de história só.” Neste momento da entrevista, pareceu haver uma confusão sobre os objetivos da Roda de Conversa e da Roda de História, entretanto, ela buscou esclarecer o equívoco.

Para ela, a Roda de Conversa deve acontecer todos os dias e a Roda de História não precisa ser feita todos os dias. E justificou: na contação de história, precisa “ter um

envolvimento da atividade que você vai planejar, porque também a contação sem a prática de algo que eles [as crianças] possam escrever, produzir, precisa ter algo atrelado.” Apesar de confusa, Emília relacionou o momento de Roda de História como uma atividade relacionada à produção, escrita ou qualquer outra realizada após a contação. Como resultado, não havia contação de histórias como atividade diária.

Emília enfatizou que, atualmente, a Roda de Conversa “contempla vários

momentos da aula.” Por pensar dessa forma, tem na Roda de Conversa um momento para o

desenvolvimento de projetos de ensino e de centralidade na figura do professor. Segundo Emília,

A minha Roda de Conversa desse ano envolveu a questão do corpo e do projeto das plantinhas. Essa semana eles [crianças] ficaram tristes porque o nosso jerimum morreu. Aí eles perguntaram o porquê. Aí eu fui trabalhar sobre a questão da seca no nosso Estado, porque não devemos desperdiçar água, e expliquei que o nosso pé de jerimum morreu porque faltou água. (Entrevista concedia no dia 22 de novembro

A centralidade da figura do professor, como aquele que direciona e planeja as atividades, é expressa no depoimento de Emília, quando diz “a minha Roda de Conversa”, transparece, em sua fala, uma concepção contrária ao princípio democrático da Roda de Conversa, na qual concebemos o professor como um participante e não como o de alguém que tem a condução absoluta da fala e das ações.

Indagamos sobre a participação da criança na Roda de Conversa. A professora reconheceu que a Roda é um espaço para a criança expressar opiniões, ideias, de discordar, de ampliar a aprendizagem. Por isso destacou:

Primeiro, a Roda é que vai dar oportunidade à criança ter acesso a outras opiniões. Ela, em casa, sozinha, ela não tem como formular, ou de se contrapor, ou até mesmo ser colocada de frente para outras opiniões. Na Roda de Conversa, quando ela vê outra criança falando o que ela não conhece, aí ela tem essa abertura maior. Aí isso vai influenciar na aprendizagem e no conhecimento de mundo da outra criança e, também, no momento que um discorda do outro. (Entrevista concedia no

dia 22 de novembro de 2017).

Na percepção da professora, as crianças não têm oportunidade de falar, de se expressarem em casa. Emília pareceu não reconhecer que as famílias são importantes interlocutores do diálogo com as crianças, desde quando o bebê está no ventre da mãe. A interlocução com as famílias, segundo Oliveira- Formosinho (2011, p. 138), corrobora para uma rede de interações, que “alarga o âmbito das interações profissionais”, uma das especificidades da profissionalidade docente. Oportunidade para estreitar as parcerias com as famílias e conhecer mais sobre suas culturas.

Emília reconhece que a Roda de Conversa potencializa as interações criança- criança, um espaço de contrapor opiniões, espaço de conhecimentos espontâneos e que, nesse momento, as crianças aprendem na relação eu-outro. Esses aspectos são destacados pelas teorias sociointeracionistas, as quais enfatizam a importância de aprender com o outro e no contexto sociocultural.

Sobre o papel do professor na Roda de Conversa, a professora enfatizou que “é de

mediação, de intervir no conflito quando uma criança bate na outra criança”. Desconhecendo outras possibilidades de atuação do professor na Roda: a de possibilitar o encontro, o de participante e companheiro nas conversas. A professora reconhece que as crianças trazem para Roda suas opiniões e ideias, no entanto, considera mais interessante “quando eles acabam enveredando no contexto do que estamos trabalhando na Roda de

mas sai!” Segundo Emília, a professora não é o agente principal na Roda, mas um dos seus papéis é ir “direcionando a fala das crianças.”

Perguntamos, então, como a professora compreende a participação das crianças na Roda de Conversa. De acordo com seu entendimento,

Os agentes principais são as crianças, porque já aconteceu de eu trazer algum tema pra trabalhar na Roda de Conversa e mudar totalmente o foco por conta dessa questão. Entendeu? Por conta da visão das crianças, que eles trazem e você tem que respeitar o que eles te trazem, porque, se você não respeitar, aí você tá fechando o leque de experiências que você poderia tá abordando na Roda.

Desse modo, Emília percebe que as crianças têm muito a dizer, que elas têm seus próprios assuntos de interesse e que, muitas vezes, o tema proposto não as agrada. Percebemos que a professora caminha para uma compreensão de que Roda de Conversa é um espaço-tempo que traz “um leque de experiências” das crianças e que precisamos possibilitar experiências diversas a partir dos ricos diálogos e narrativas delas nas Rodas. As crianças, assim como Ana C. e Iarley se manifestam, resistem, insistindo nos assuntos que lhes interessam. Reconhecem a importância de se respeitar o conhecimento e a participação das delas.

Sobre as aprendizagens e linguagens desenvolvidas na Roda de Conversa, Emília reconheceu que a principal aprendizagem é a do cotidiano, revelando, com entusiasmo: “é

muito lindo quando a linguagem deles [crianças] tá se desenvolvendo.” Na verdade, esse desenvolvimento é observado e perceptível na Roda de Conversa, na qual as crianças aprendem novas palavras, novas expressões e as incorporam ao seu cotidiano.

Indagada sobre a importância de ouvir as crianças, Emília afirmou que “é muito

difícil esse tempo de ouvir”, justificando que, devido aos vários tempos da rotina, torna-se fragmentado, devido às pausas que ocorrem para lavar as mãos, lanche, almoço, “porque os

tempos na Educação Infantil são essenciais […], se valoriza muito os tempos da rotina”.

Percebemos que a compreensão sobre a escuta da criança está relacionada ao tempo pedagógico, ou seja, não se tem tempo para a escuta da criança. Sabemos que ouvir a criança é uma necessidade; ao mesmo tempo, um desafio. Rinaldi (2012) contribui para nossa reflexão, dizendo que a palavra “escutar” se constitui não somente no sentido físico, mas também no metafórico, pois significa uma abordagem, uma mudança de postura, que significa “estar aberto aos outros, ter sensibilidade para ouvir e ser ouvido, em todos os sentidos […]” (RINALDI, 2012, p. 208). A escuta das crianças ocorre na observação atenta,

curiosa e contínua de suas ações, aprendizagens, descobertas, conquistas, um tempo para viver o cotidiano.

O cumprimento dos tempos da rotina parece preocupar Emília. No seu entendimento, os tempos precisam ser cumpridos rigorosamente, por isso não encontra um tempo para ouvir e observar as crianças. Barbosa (2013, p. 216) nos alerta que vivemos um tempo da produtividade e da velocidade, que tem se manifestado na EI quando os professores reclamam da “falta de tempo para fazer o que desejam, quando dizem que não tem tempo para ouvir as crianças, quando as crianças são apressadas para cumprir horários e quando há a fragmentação do tempo […]”. Dessa forma, reproduzimos, inconscientemente, um tempo representativo das relações capitalistas, um tempo aligeirado, que empobrece e que não permite às crianças viverem a experiência da infância, que não permite que os professores tenham tempo para a reflexão.

A autora salienta que o tempo cotidiano precisa ser vivido por adultos e crianças, não como um tempo que passa linearmente, mas um tempo vivido, de construção de sentidos, no qual os adultos possam viver a experiência de ser mais e as crianças possam viver a infância.

Ouvir os relatos da professora Emília foi importante para a compreensão do contexto investigado. Suas concepções corroboraram para compreendermos sua prática pedagógica, entendendo que a professora caminha para o entendimento de reconhecer a Roda como importante espaço-tempo de participação.

Essa compreensão não foi aprendida no espaço da formação continuada, mas foram as crianças que mostraram esse caminho, através das suas falas, manifestações e formas de resistência e insistência. Emília reconhece a competência das crianças. Nas suas palavras:

“é aquela história… você traz um tema, mas se não tiver agradando… A Ana C. e o Iarley são a prova disso. Às vezes, a gente até diz: depois a gente toca nesse assunto, aí de novo eles trazem a temática.”

Emília ressaltou que o tema da pesquisa é de essencial importância para a EI. A professora ressaltou: “acho lindo teu trabalho” e manifestou o desejo de ser informada sobre os resultados da pesquisa, afirmando: “gostaria de conhecer as contribuições, as reflexões…

vai auxiliar muito na compreensão da Roda de Conversa. Quando você concluir o seu trabalho, eu vou na escola, sentar e mostrar para as crianças e dizer que eles foram importantes para você concluir o seu trabalho. Que eles [crianças] foram, de fato, sujeitos de uma pesquisa”.

No próximo capítulo, apresentamos a rica contribuição das crianças e os sentidos que elas, de forma competente, atribuem à Roda de Conversa.