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Dispositivos de criação: crítica, resistência e desejo

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 50-56)

No fundo de cada Utopia não há somente um desejo, há também um protesto. [...] toda Utopia torna-se subversiva, pois é o anseio de romper a ordem vigente. [...] A utopia é sempre um sinal de inconformação e um prenúncio de revolta. (ANDRADE, 1978, p. 194)

Partimos da ideia de que a criação das utopias urbanas envolve três dispositivos diferentes: crítica, resistência e desejo. Desde Utopia, de More, as utopias urbanas e suas imagens vêm sendo criadas sob diferentes formas, com diferentes composi- ções, em períodos mais ou menos férteis e por vários campos. Consideramos este ato de criação de utopias urbanas como diretamente ligado ao contexto que o envolve, mas não apenas, o ato de criação está relacionado a todo um processo de pen- samento, afinal, como colocam DG (1992, p. 73): “pensamento é criação”. O ato de criação, de invenção de imagens utópicas urbanas, nasce do desejo e carrega em si uma capacidade de con- testação, crítica e de resistência. A criação reage aos ambientes e aos acontecimentos que as circundam, sejam disciplinares,

políticos, geográficos, históricos... Não apenas os conteúdos como as formas, as composições das utopias urbanas ressoam os contextos da época. De forma geral, as utopias são contestadoras, são resistências que exprimem suas críticas ao mundo, o desejo de mudança e de transformação, abrindo todo um campo de possibilidades.

As utopias urbanas são ocasionais, singulares, criações que se espalham nomadicamente.1 As utopias urbanas, a cada época e a cada criação, (re)surgem

diferentes. Os relatos de viagem e romances no princípio e depois ficções dese- nhadas (HQs) e imagens projetadas – aqui nos dois sentidos: urbanismo e cinema – são formas de expressão que procuram o fora, a lateralidade, instalam-se no terreno do possível – e não da realidade mas diretamente conectadas a ela –, espaço de resistência e livre à construção crítica, onde se mantêm como possibili- dades. As utopias urbanas se constituem como um desvio, uma esquiva, criações que partem de uma visão crítica da ordem histórica na qual ela está inserida para se instalar em outro espaço. A instalação no fora permite a livre criação, em que as utopias urbanas encontram seu lugar.

As utopias urbanas podem ser consideradas como resultado de um processo de pensar e repensar o aqui e o agora, são uma forma de resistência, de crítica à topia, ou seja, ao quadro de referências recebido culturalmente e socialmente. (NEOTTI, 1975, p. 6) A cada período, em cada campo, as utopias urbanas surgem diferentes, sempre ressignificadas em resposta aos acontecimentos e ao seu pre- sente, mas sempre como novas criações. Retomando a frase de DG (1992, p. 130): “é com a utopia que a filosofia se torna política e leva ao ponto mais alto a crítica de sua época”. A grande variedade de expressões e de abordagens das utopias urbanas clarifica esta constante ligação com o meio, com sua época. As utopias urbanas não seguem modelos ou fórmulas, não se fixam sobre uma escala, elas associam possíveis e impossíveis e produzem variedades de imagens. Um dos paradoxos das utopias (senão o maior) é que elas tocam o real através do mundo do artifício. E segundo Schérer,2 a utopia critica, analisa e revela fazendo estourar

as mediocridades e defeitos do nosso vivido, ela vem de fora e instala-se por entre nós agindo como um estrangeiro, em que se misturam o próximo e o longínquo, revelando o que não vai bem.

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Os três dispositivos por nós considerados estão diretamente relacionados com a dinâmica particular da criação de utopias urbanas e suas imagens, são eles que impulsionam a criação destes outros espaços, destas outras imagens de cidades de lugar nenhum, num processo que sempre se mantém no fora, mas relativo ao mundo vivido. As utopias urbanas são contestadoras, através de sua criação e da composição de suas imagens, as frustrações frente ao estado das coisas são expressas de forma crítica, resistem às imposições, à imobilidade e à estagnação e abrem sempre novas fugas, criam outros lugares, trazem novas ideias, mostram outras visões. Podemos considerar que as utopias formam uma rede, se relacionam, estabelecem conexões, trocas e, como afirmou Deleuze em seu Abecedário,3 a função da rede é resistir e criar.

A criação de utopias urbanas é impulsionada pelo desejo, componente indissociável às utopias. Quanto mais embarreirados e mais desprovidos nos encontramos, mais impregnados de desejo nos tornamos. O desejo é o delírio gerador dos acontecimentos. (CIORAN, 1960, p. 103) O próprio ato de criação de utopias urbanas é desejo.4 DG (1997b) propõem pensar o desejo como um

construtivismo, renunciando ao sujeito-objeto – aquele que deseja e aquilo que é desejado. O desejo seria maquínico, produtivo, construtivo. Nunca desejamos só uma coisa, desejamos sempre um conjunto de coisas. Dessa forma, o desejo vem sempre agenciado e, nessa concepção, o desejo cria territórios, pois ele faz uma série de agenciamentos.

O desejo ligado à criação de utopias urbanas vai muito além do desejante (autor/interlocutor) e do desejado (criação). Segundo de Guattari (1997b), desejar consiste em fazer cortes, deixar correrem alguns fluxos, antecipá-los, cortar as cadeias nas quais eles se enlaçam. Para eles, o desejo só pode ser compreendido a partir da categoria de “produção”. O desejo não depende de uma falta, diferencian- do-se, assim, da necessidade. Desejar não é sentir falta de alguma coisa, o desejo produz, objetiva, funciona como mecanismo, estabelece ligações entre as coisas.

O desejo não pára de trabalhar a história, mesmo nos seus piores períodos e em certas condições o desejo das massas pode vol- tar-se contra os seus próprios interesses. Existe uma produção desejante que investe as diversas formas de produção de fruição

e as estruturas estabelecidas para reprimi-las. Sob diferentes regimes, em diferentes tempos é a mesma energia desejante que encontramos nas utopias. (DELEUZE, GUATTARI, 1992)

Não há nenhuma vocação nas utopias urbanas de tornarem-se reais, de serem realizadas, mas bem o contrário, a vocação das utopias urbanas é sua criação contra a realidade, se afirmar e resistir frente à realidade. (DADOUN, 2000, p. 39) Sua ação é crítica e resistente e se mantém na produção, não na rea- lização. As utopias urbanas colocam em discussão as práticas, resistem às ordens vigentes, aos dogmas, são diferenças criadas que transgridem o estabelecido.

As diferenças se mantêm ou surgem à margem da homogenei- zação, seja como resistências, seja como exterioridades (o lateral, o heterotópico, o heterológico). O diferente é antes de tudo o excluído: as periferias, as favelas, os espaços de jogo, aqueles da guerrilha e das guerras. Cedo ou tarde, a centralidade existente e as potencias homogeneizantes absorvem as diferenças, se elas permanecem na defensiva, e não passam ao contra-ataque. A centralidade e a normalidade mostram os limites de sua capaci- dade de integração, de recuperação ou de eliminação daquele ou daquilo que transgride. (LEFEBVRE, 2000, p. 430)

Em alguns momentos, as utopias urbanas entram em linhas de destruição: são quando elas são revertidas para ações como os modelos, com a multiplicação do mesmo, quando são cooptadas, reduzidas a formas concretas. Desta forma, elas perdem todo o seu poder crítico e contestador, desligam-se do desejo que impulsionou sua criação, não se mostram mais resistentes à imobilização e ao aqui e agora e como num movimento inverso, deixam o fora, a abertura, para um fechamento e uma fixidez.

Os movimentos das utopias se dão, da mesma forma, pela sua recusa de fechamento, de reversão em modelo e de aprisionamento em um sistema, em um bloco único. Ao acompanharmos a criação de utopias urbanas, constatamos que houve sucessivas tentativas de classificação que levaram a um agrupamento de expressões muito diferentes. Muitas vezes, estas aproximações e fechamentos foram feitos guiados por interesses práticos, por modos utilitários ou ainda pela procura de semelhanças e estas classificações e agrupamentos acabaram

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sempre se mostrando insuficientes na capacidade de acompanhar a dinâmica e a mutabilidade das criações.

De acordo com Michel Ragon (1985), o pior que poderia acontecer às utopias urbanas seria a sua fixação. Enquanto Ragon trata esse caráter fixista como uma alienação, pra nós a fixação na verdade é a aniquilação das utopias urbanas. Neste sentido, ressaltamos o fato de considerarmos a transformação de muitas das utopias criadas – principalmente no campo do urbanismo5 – em modelos, da

reversão de utopias em realizações como sua partida em linhas de destruição. Essa forma de captura faz com que todo o sentido da criação utópica seja destruído, a transformação de uma utopia urbana em realidade acaba gerando desastres, grandes experiências falhas, como afirmado por Dadoun (2000) e por Ragon (1985). “Rousseau no poder torna-se Robespierre. O Falantério de Fourier insti- tucionalizado torna-se as casas comunais da URSS. A Icária de Cabet, tomada ao pé da letra, conduz ao Goulag. A Ville Radieuse (Cidade Radiosa) de Le Corbusier, vista pela administração se metamorfoseia em grande conjunto”.6 (RAGON, 1985,

p. 24) As utopias urbanas definem elas próprias os seus não lugares, não tendo nenhuma destas criações vocação para serem revertidas em realidade, elas jamais se deixarão reduzir a um quadro restrito materializado, seja ele qual for.

Quando consideramos e refletimos sobre a natureza como um todo, ou sobre a história da humanidade, ou sobre nossa própria atividade intelectual, em primeiro lugar vemos o retrato de um emaranhado infinito de relações e reações, permutas e combi- nações, no qual nada permanece o que era, onde estava e como estava, mas tudo se movimenta, muda, se transforma e desapa- rece. Vemos, assim, em primeiro lugar o retrato como um todo, com suas partes individuais ainda mais ou menos mantidas em segundo plano; observamos os movimentos, transições, conexões, em vez das coisas que se movem, se combinam e são conectadas. (ENGELS,1962, p. 71)

Notas

1 Ver tópico seguinte: “Utopias urbanas e seus movimentos”.

2 Entrevista de René Schérer ao jornal L’Humanité em outubro de 2007, disponível no site: http://www.humanite.fr.

3 A série de entrevistas com Gilles Deleuze, feita por Claire Parnet, foi filmada nos anos 1988-1989 e chamada de Abecedário (Abécédaire) foi veiculada no Brasil pela TV Escola/Ministério da Educação e sua transcrição está disponível em português no site http://www.oestrangeiro.net.

4 O desejo não é aqui considerado como uma noção de falta.

5 O Urbanismo é um campo muito fluido e bastante tensionado pelas diferentes formas de abordagem. Consideramos, em linhas gerais, o Urbanismo como uma postura, uma sensibilidade frente à cidade e que detém da técnica para responder a demandas territoriais e sociais.

6 “Rousseau au pouvoir devient Robespiere, le Phalanstère de Fourier, institutionnalisé, devient ‘maison communes’ em URSS. L’Icarie de Cabet, prise à lettre, conduit au Goulag. La Cité Radieuse de Le Corbusier, vue par l’administration, se métamorphose en grande ensemble”.

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