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Utopia de Thomas More (1516)

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 74-78)

Utopia de More tem como título original: Libellus vere aureus nec minus salu- taris quam festivus de optimo reip[ublicæ] statu, deq[eu] noua Insula Vtopia. Através

de um jogo retórico, More descreveu outro país em reação ao mundo de ideias e valores que vivenciava no início do século XVI. Como contestação à sua realidade e impulsionado por um profundo desejo de mudança, More cria um país insular de lugar nenhum.

Tipias de Utopia

Ilha Reforça a ideia de cons-

trução de outro espaço, pro- tegido e isolado de tudo, localizado em um não lugar, em meio a um espaço ilimi- tado (o oceano).

Duplicata As cidades se repe-

tem, os edifícios se repetem, os palácios são todos iguais, os espaços públicos e equi- pamentos públicos foram construídos repetindo uma mesma conformação.

Geometria As cidades qua-

drangulares seguem um mes- mo plano regular, pontuam o território insular, mantendo- -se equidistantes, formando assim uma malha. Cada cida- de é dividida em quatro quar- tos cortados por vias retilíneas ladeadas por construções que seguem o alinhamento e um mesmo gabarito. Cada quarto possui pátio central quadrangular, ritmados pela localização equidistante dos palácios (todos iguais) que se alternam com os blocos residenciais.

Apesar de muitos autores considerarem a ilha criada por More como uma sociedade perfeita, interpretamos Utopia como outro mundo, um mundo diferente e reativo ao espaço e ao tempo vivenciado pelo autor, contendo também suas desarmonias e paradoxos. More colocou através do “Livro primeiro da comuni- cação de Raphael Hytlodeo” – título da primeira parte do livro – uma crítica, um protesto, uma denúncia do estado de miséria e injustiça dominante na Inglaterra no início do século XVI. O narrador, Hytlhodeo, capitão de um barco de Américo Vespúcio, faz ásperas acusações discorrendo sobre a sociedade mercantil domi- nada pela atração do lucro, a propriedade privada, a aristocracia improdutiva, a crueldade de tratamento dado aos ladrões que roubavam por necessidade, a transformação de terras de cultivo em pastos – o que forçava o abandono do campo por grande parte dos agricultores pobres –, como também denunciava o fanatismo religioso de seus contemporâneos.

Esse primeiro livro pode ser considerado como uma contextualização, um retrato crítico dos problemas e do estado das coisas com exposição de aspectos políticos, sociais, estéticos e religiosos. Podemos dizer que More nos mostra através do discurso de Hythlodeo os dois mundos daquele momento: o proble- mático Velho Mundo e o recém descoberto Novo Mundo. More prepara nesse primeiro volume a abertura para outro mundo, para um outro país que não pertence a nenhum dos continentes conhecidos, para um não lugar chamado Utopia. Utopia é outro mundo situado na borda do existente, no intervalo, entre o Velho e o Novo Mundo.

Partindo de uma narração de viagem, o autor nos lança num espaço vazio que suspende o tempo contínuo e a ordem dos loci. (MARIN, 2001, p. 22) O oceano navegado por Hythlodeo é como uma abertura, um espaço aberto que leva ao horizonte, e ao tocar o horizonte, toca-se o outro mundo. Utopia é a figura do horizonte, é uma potência infinita da figuração histórica que permite que a negação esteja associada a um lugar (ou-topos – u-topia); “Utopia é a figura plural da obra infinita, [...] da diferença na história”. (MARIN, 2001, p. 19-20) As utopias, assim como Utopia de More, são criadas em momentos específicos da história ocidental, são criações estratégicas que inventam outros mundos de imagens onde são expostas, seja pela negação, pelo jogo de inversão, pelo confronto ou de outra forma, as reações perante o que nos rodeia.

Elemento central A cidade de

Amaurota, a cidade central da Ilha de Utopia, comporta to- dos os poderes, sendo o local de todas as decisões.

Massa uniforme Utopia é ha-

bitada por um povo compos- to por outros homens, todos iguais e que juntos formam uma massa uniforme, um blo - co único, sem diferenças.

Ser desejante Rei Utopus,

movido por seu desejo, cria a Ilha de Utopia ao romper o istmo que a ligava ao con- tinente.

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Na segunda parte da obra – “Livro segundo da comunicação de Raphael Hytlhodeo” –, o capitão descreve a ilha Utopia e suas cidades, os aspectos sociais, políticos, econômicos e religiosos de Utopia. Abre-se outro mundo. More coloca como epígrafe o versículo 27 do capítulo 10, livro de Mateus da Bíblia: “O que vos digo em voz baixa ao ouvido, pregai-o em voz alta e abertamente”. Através dessa epígrafe, entendemos que More acreditava no poder de sua obra como tomada de consciência, como motor de ação e reação ao seu presente, como transformadora de conduta e ordem.

A obra de More criou um não lugar com grande força crítica em que tudo está aparentemente presente ao mesmo tempo em que tudo é negado, configurando um jogo retórico. Utopia: não lugar; Anhydra: rio sem água; Hythlodeo: espalhador de mentiras; Amaurota: cidade vazia; Alaopolitas: cidadãos sem cidade; Ademos: príncipe sem povo; Achoerenses: habitantes sem país. Essa forma de inversão, de apresentação de um mundo invertido, muito comum na tradição medieval e depois barroca, foi e é ainda interpretada com seriedade por alguns estudiosos, mas percebemos e concordamos com outras interpretações que ressaltam a ironia de More na construção deste não lugar e na constante negação de tudo como afirmação de sua inexistência.

Este jogo de palavras humanista com o nome ‘Utopia’ é uma forma humorística de desconstruir o que designa o nome, um ‘lugar nenhum’. Mas é também uma maneira de apresentar a força de ação de Utopia como esquema de imaginação transcendental pro- duzindo (e não reproduzindo) todas as imagens e figuras possíveis da liberdade em sua infinidade. (MARIN, 2001, p. 23)

O país de Utopia é uma ilha semicircular, com uma baía de águas calmas, acolhedora a todos os navios que conseguem vencer as barreiras e perigos natu- rais do golfo. Os rochedos e bancos de areia protegem Utopia de quem vem de fora. Apenas os utopianos sabem indicar o caminho seguro para a baía, já que os faróis situados por toda a costa dão pistas falsas aos viajantes estrangeiros. A imagem da ilha Utopia é a de um país isolado e protegido do exterior. Utopia é um país que se fecha em todos os sentidos a tudo que lhe é exterior e este fechamento, ou melhor, o nascimento dessa ilha, deste não lugar, como o próprio

Hythlodeo descreve, se deu pelo desejo de seu fundador Utopus (rei sem trono) ao ordenar a destruição do istmo que o ligava ao continente. Utopus rompe com o mundo existente, isolando-o fisicamente neste primeiro momento. Ao romper o istmo, Abraxa torna-se Utopia, um território continental torna-se uma ilha, é como um içamento de âncora, um lançamento ao horizonte.

Utopia é, à primeira vista, um país igualitário. Hythlodeo nos descreve uma sociedade em que não existe propriedade privada ou moeda, não existem ricos e pobres, mas há uma hierarquia. Os poderes em Utopia não estão ligados ao capital, mas sim à posição social e política. Utopia é, na verdade, um país rigida- mente hierarquizado. Existem escravos, seres desprovidos de qualquer direito, a população geral formada por uma maioria dividida em famílias – com ou sem laços consanguíneos – e os governantes com poderes e atuações diferenciadas (príncipe, filarcas e protofilarcas).

A organização rígida da sociedade é estendida ao espaço físico, à ocupação da ilha e à forma das cidades. A questão da igualdade é retomada e a questão da repetição de um plano urbano é apresentada quando Hythlodeo descreve as cidades de Utopia: “Quem conhece uma cidade, conhece todas, porque todas são exatamente semelhantes [...]. Poderia, portanto descrever-vos indiferentemente a primeira cidade que me ocorresse [...]”. (MORE,1995, p. 80) Por toda extensão da ilha, distribuem-se 54 cidades semelhantes e equidistantes que seguem o mesmo plano, sendo a cidade central a capital Amaurota.

As cidades se repetem como uma ação partidária da igualdade de condições. Por entre as 54 cidades, a terra é cultivada, formando uma malha composta por campo e cidade. Há uma divisão bem marcada entre campo e cidade. As cidades são protegidas por uma forte muralha pontuada por torres e fortalezas. Fora deste limite, estão as terras destinadas à agricultura. Os limites são bem definidos e a separação dos usos, funções e atividades também seguem uma ordenação. Em sua obra, More deixa bem clara a separação física campo versus cidade e propõe, ainda, uma espécie de rodízio dos habitantes que vivem então períodos especí- ficos em cada ambiente.

O posicionamento da capital Amaurota no centro da ilha, esta criação de um elemento central, uma cidade central onde se aglutinam os poderes, onde são tomadas as decisões, contrasta com o tom do discurso de Hythlodeo, que coloca

Trilogia das utopias urbanas 9b

Utopia como terra da liberdade e da igualdade. A construção do sistema político, social e econômico de Utopia, assunto que não será aprofundado, na verdade se mostra incongruente com todo o discurso de aniquilação das desigualdades e do estabelecimento de uma nação livre. Entendemos que More explora estas disparidades dentro do próprio discurso de Hythlodeo como uma forma de crítica, de ironia, avançando com o desenvolvimento de uma paródia das práticas reais. As construções, todas de três andares em pedra ou tijolos, acompanham a regularidade e retidão das vias. Erigidas de forma confortável e elegante ladeadas por jardins, as edificações possuem janelas envidraçadas, assim como os palácios construídos mantendo entre si distâncias iguais e diferenciando-se apenas pelos nomes. A divisão das cidades quadrangulares em quatro quarteirões e a retidão descrita das edificações mostram a geometrização do espaço. Essa geometrização é acentuada pela reincidente locação equidistante, numa maior escala das cidades e numa menor escala dos palácios e mercados, formando outras malhas regulares.

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 74-78)