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Significações e (de)limitações de utopia

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 32-37)

Podemos destacar duas grandes obras críticas do século XX que se debru- çaram sobre o pensar utopia – e sobre o que seria a noção de utopia. O Princípio

Esperança24 de Ernst Bloch (1959) e Ideologia e Utopia25 de Karl Mannheim (1929)

ganharam reconhecimento e grande repercussão, marcaram e influenciaram o pensamento utópico. São obras referenciais, tomadas como marcos influentes

na compreensão da trajetória da utopia. Mannheim (1986) se apropriou da noção de utopia de maneira particular, construindo uma tipologia de utopia que se resumiu a apenas quatro formas,26 o autor definiu a utopia, de forma geral,

como “[...] toda ideia situacionalmente transcendente (não apenas projeções de desejos) que, de alguma forma, possui um efeito de transformação sobre a ordem histórico-social existente” (MANNHEIM, 1986, p. 229-230), cuja função é a ruptura com os laços da ordem existente. Ele assumiu a imprecisão do termo, a coexistência de diferentes formas de utopia e considerou a utopia e a ideo- logia como as duas grandes categorias mentais dos sistemas de pensamento. A mentalidade utópica foi descrita por ele como “a expressão das classes sociais dominadas que recusam as limitações que se impõem ao espírito de estado da realidade” (MANNHEIM, 1986, p. 462-463), enquanto a mentalidade ideológica como “o espelho das classes dominantes”. Para Mannheim (1986, p. 462-463), a utopia é o que nos assegura o distanciamento necessário entre nós e a realidade e declarou que uma sociedade não utópica seria, por definição, uma sociedade morta, visto que a utopia é vital para todo desejo de mudança.

Bloch (2006) foi um dos primeiros autores a adotar uma extensa visão sobre a utopia mostrando através de ideias, expressões diversas e acontecimentos a pre- sença do que chama “o princípio esperança”. O autor construiu toda sua filosofia em torno da reflexão sobre utopia expressa em três densos volumes. Para ele, a utopia era uma manifestação intelectual, num sentido amplo, “do pressentimento da esperança”, um quadro imaginário e impreciso da possibilidade. Apontou a expressão utópica como um sintoma da crise de uma organização, ao mesmo tempo como um sinal de que dentro desta mesma organização existem forças capazes de se encaminhar para fora, de ir além. Para Bloch, o ser humano – misto de presente, de transformação ou devir e de carência – não é o que “ainda pode se tornar” e como existência inacabada, percebe o mundo como possibilidade. Algumas de suas ideias convergem com as de Mannheim, principalmente na tomada de utopia como inerente ao ser humano. Para Bloch, “ser homem quer dizer, em realidade ter utopia” e a utopia é a força crítica do ser humano. As obras utópicas para ele eram totalizações provisórias que constituem um instrumento de interrogação crítica do real, convergindo mais uma vez com Mannheim na tomada de utopia como instrumento crítico.

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A ideia de utopia como antecipação, do “sonhar-para-frente” de Bloch foi seguida por Servier (1982, p. 317-318) e, para ele, utopia estaria no tempo futuro. Servier considerou em seus escritos a modernidade como a grande utopia oci- dental: “é o sonho do ocidente, de Fausto que, tendo esquecido o sentido da aventura humana, evocava, tremendo, a imagem de seus desejos, mas almejava ao mesmo tempo ser capaz de conjurá-la”. Do mesmo modo, Servier (1982, p. 320) se mostrou afinado com a ideia antes anunciada por Mannheim e Bloch de uma estagnação do homem numa sociedade sem utopias, pois, em suas palavras, “desta forma seria uma sociedade incapaz de criar, à beira da esclerosa e da ruína”. Para Servier (1982), as expressões utópicas, assim como o próprio pensamento sobre a utopia, gerariam uma fascinação pelo impossível. Ricoeur (1997), em concordância com os autores citados acima, declarou a impossibilidade de se imaginar uma sociedade sem utopia, porque seria uma sociedade sem horizonte, sem vontade de mudar e assim, sem a capacidade de compreender.

Bronislaw Baczkö (2001) acreditava na utopia como uma forma de mani- festação das inquietudes, das esperanças e das buscas de uma época e de um meio social, criticando e rompendo com as ordens vigentes – novamente a ideia de ruptura é expressa. Assumindo a variedade de expressões e de campos envolvidos com o pensamento utópico, este autor associou a expressão utópica como uma “visão global da vida social” que agruparia todas as tentativas em todos os domínios para construir outro mundo. Assumiu ainda que a precisão de um conceito de utopia seria uma tarefa complicada, já que utopia não é de forma alguma um conceito neutro por sua conexão direta com o meio presente. Alexandre Cioranescu (1972) definiu a utopia como uma atitude mental larga, aberta e globalizante, enquanto Pierre Versins (1984) considerou utopia como “o lugar onde se mostram os fantasmas”, um mundo imaginário, esteja ele situado em qualquer lugar no tempo e no espaço.

Mais tarde, Raulet (1992, p. 115) define a utopia como uma função da racio- nalidade moderna, um princípio, próximo ao “princípio esperança” de Bloch, e reconheceu uma dinâmica da utopia e de suas expressões, dizendo que a noção toma a forma que mais lhe convém e considerou esta mutabilidade como a razão pela qual a racionalidade a toma com seriedade. Nos anais do Colóquio de Grenoble sobre a temática utópica (1998), utopia foi apresentada como o “coração

da transformação e da criação social”, ou seja, aquilo que impulsiona o homem. Roland Schaer (2000) chamou de utopia a distância que uma sociedade é capaz de tomar dela mesma, para simular o que ela poderia se tornar. O fora da utopia, da mesma forma, foi tomado por Ricoeur (1997) quando diz que o ponto de vista do lugar nenhum permite colocar o sistema cultural à distância, podendo este ser visto de forma crítica e distanciada. Certeau (1979), como Marin (1979, 2001), situavam a utopia em um “entre”. Entre um passado perdido e um futuro condicional está o entre utópico, onde se situa a criação em que se pode mostrar toda crítica e todo o desejo através de um lugar nenhum, de um outro espaço da diferença.

Com nossas buscas, chegamos frente a um curioso e heterogêneo con- glomerado de definições, limitações, delimitações e noções. Concordamos com Wurnenberger (1979) que qualquer que seja a significação construída de utopia, esta a define de forma (mal) limitada, atribuindo e associando conotações e outros termos tão complexos quanto a própria utopia, tais como mito, ideal, ficção, ideo- logia etc. A maior parte dos autores cria suas próprias limitações, suas próprias fronteiras, estabelecendo uma espécie de recorte com o qual estabelece filtros e cria regras, terminologias para assim chegar a um “tipo” de utopia. Há certamente, como havia dito Baczkö (2001, p. 98), um “excesso de definições de utopia”, mas uma carência de teorizações sobre os fenômenos, discursos e expressões utópicas.

A cada época, a cada período histórico, expressões utópicas surgem como críticas assumindo formas e características diferentes, como mutações expres- sivas reativas e ressonantes de cada momento, sob a influência do campo e do meio onde são criadas. O momento histórico decide a sua metamorfose: sua forma se deforma, sua deformidade se reforma, a utopia revela-se dinâmica. A utopia tem uma consciência crítica em relação à história, seu sentido é fundado pela história e dá corpo ao vetor desencarnado da história, o faz atravessar a cadeira das necessidades e do desejo. (RAULET, 1979) Assim como as expressões utópicas, o termo e a própria noção de utopia mostram-se inconstantes pelas suas suscetíveis resignificações, o que pode ser visto com o grande número de termos que foram sendo construídos associados à utopia, e que acreditamos incrementar a mobilidade e a dinâmica da própria noção.

Lyman Tower-Sargent27 ressaltou em um de seus últimos artigos sobre esta

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dez termos fundamentais: utopismo, utopia, eutopia ou utopia positiva, distopia ou utopia negativa, sátira utópica, antiutopia, utopia crítica, distopia crítica, utopia imperfeita e comunidades intencionais. O autor desenvolveu questiona- mentos sobre as sucessivas mudanças da noção de utopia ressaltando o fato de que não podemos esperar que uma simples e única definição de utopia possa se encaixar em vários tempos e lugares (TOWER-SARGENT, 2005, p. 154), colocação com a qual concordamos, mas apesar desta afirmação, Tower-Sargent acaba caindo na tentação de julgar as definições dos autores levantados por ele como “erradas” ou “corretas”.

Alain Pessin (2001, p. 25), de maneira provocativa, afirma que a palavra “utopia” não possui algum valor classificatório, já que a utopia não existe, o que justifica a sua escolha restrita de um corpus. Mas sendo a utopia considerada como um conjunto imenso e heterogêneo, três obras podem aqui ser destacadas pela abertura praticada, sem a pretensão de esgotar a temática: Dictionnaires des

Utopies (2002), o catálogo da exposição da Bibliothèque National de France (BNF) Utopie, la quête de la société idéale em Occident (2000) e Encyclopédie de l’Utopie et de la Science Fiction (1972). Estas obras demonstram que a abertura da noção e

da significação tocante às variedades de utopia, são passos importantes para entender a complexidade do pensamento utópico e de suas expressões.

O pensar sobre utopia se inicia, muitas vezes, com questionamentos sobre limites, fixações e localizações, por mais paradoxal que isto possa parecer. Acreditamos que o percurso por algumas proposições teóricas foi suficiente para mostrar o quão real e complexa é a problemática que envolve a utopia. Na tenta- tiva de seguirmos a trajetória da palavra, do termo e de sua noção, constatamos o aparecimento de novas e antigas fronteiras e a mudança constante destas, sejam elas “lingüísticas, religiosas, culturais, políticas, traçadas por guerras, estabele- cidas ou dissimuladas por poderes, fronteiras que aparecem simplesmente pelo dom terrível da liberdade política e ideológica...”. (MARIN, 2001)

Levando em conta as considerações, discussões e problemáticas trazidas por vários autores que se dedicam (ou se dedicaram) à reflexão sobre a utopia, associadas à complexa problemática que a palavra traz consigo, assumimos a abertura da utopia. Acreditamos que desta forma estaremos clarificando nossa postura ao abraçar as suas variedades, as suas formas de expressão em diferentes

campos. Como pontuamos no desenvolvimento deste tópico, as significações e abordagens de utopia são instáveis e variáveis. Tanto as suas conceituações como os tratamentos e temáticas associadas à utopia vêm sofrendo influências relacionadas ao período histórico, campo de produção e interlocutores, resultando tanto em significados e conceituações restritas, unívocas em certos momentos, como amplas, heterogêneas, contraditórias e pluridisciplinares em outros.

Compreendemos que a utopia, suas noções e definições vieram ao longo do tempo sofrendo modificações, recebendo agregações, se ressignificando frente aos acontecimentos, tornando-se cada vez mais difíceis de delimitar. A utopia caracte- riza-se não só pela abertura, assim como por indecisões e incertezas. A profusão de abordagens e de temáticas envolvidas indica as ressonâncias, esvanecimentos e transformações que envolvem a utopia. São incontáveis as produções e expressões ligadas à utopia. Estas se estendem a diversos campos de saber, às diversas formas de pensar e criar e entendemos estas criações como expressões do pensamento enquanto heterogênese, como diriam Deleuze e Guattari.

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 32-37)