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Utopias urbanas

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 44-50)

Foram muitas as expressões utópicas1 produzidas nos últimos

cinco séculos, desde a Utopia de Thomas More (1516). Estas expressões vêm abordando assuntos dos mais diversos, não constroem ou seguem um quadro único, um viés comum e muitas vezes surgem contrárias a si próprias, escapando de uma unidade ou uniformidade. As expressões utópicas podem ser aproximadas de acordo com as intenções, conteúdo, processos, métodos, origens, efeitos ou ainda interesses, tendo vários tipos.2 Esse

conjunto de multiplicidades é o que faz da produção utópica material tão complexo, amplo e interessante.

Dentro desta vasta produção de expressões utópicas, nos interessam primeiramente aquelas criadas nos campos da arte e que definimos como utopias urbanas. As cidades têm se mos- trado como essencial na composição de obras utópicas e a criação de outras espacialidades tem estado presente na maior parte das suas expressões. É a tomada da cidade como criação principal que para nós define uma utopia urbana. Utopias urbanas são as invenções que tomam o urbano como ambiente/criação essen- cial, são expressões críticas focadas em concepções espaciais,

na invenção de cidades que não existem, obras que constroem não lugares. As utopias urbanas criam estes não lugares como importantes instrumentos de reflexão, como parte de um processo crítico que se utiliza da lateralidade, da invenção livre de formas, da variabilidade de enfoques, meios e modos de expressão para pensar sobre a cidade e sua complexidade.

Acreditamos que a reflexão sobre a cidade pode ser associada às utopias urbanas e às suas imagens. Percebemos um constante exercício de criação de imagens utópicas urbanas presente nos vários campos da arte. O urbanismo, HQs e cinema estão repletas de imagens de outros lugares, de imagens de lugar nenhum. Essas imagens mostram-se saturadas de informações, explicitam rela- ções, valores, composições únicas, surgindo como invenções. Nosso interesse está focado na criação de imagens nas utopias urbanas, não só como construções de outras espacialidades, mas como espaços dinâmicos e interconectados que envolvem a contestação de práticas, processos, situações e acontecimentos. As imagens são formas, meios de comunicação, meios de expressão artística que fazem parte de todos os campos da arte em questão: urbanismo, HQs e cinema. Sendo a imagem um meio de expressão comum aos campos, é através delas e de suas composições que iremos buscar as conexões e aproximações para entender as diferenciações do pensamento utópico, sua relação com as cidades e o esforço em seguir um pensamento por imagens, o qual acreditamos ser pouco explorado. As imagens, resultado de um ato de criação, podem ser encaradas como impor- tantes expressões de um processo de pensamento, mostram-se um interessante material de reflexão, análise e de problematização.

As utopias urbanas não se apresentam da mesma forma, elas estão em constante transformação, formam um verdadeiro fluxo de imagens inventadas que sofrem processos de atualização, numa espécie de criação contínua que se repete gerando diferenciações e resignificações. Como colocado por Deleuze (1988, p. 285), as diferenciações acontecem como linhas de um “processo de atualização” e é essa a dinâmica pela qual a ideia mostra sua metade chamada estética. Cada imagem utópica é uma criação, uma figura dinâmica, um bloco de sensações. (DELEUZE; GUATTARI, 1992) As imagens das utopias urbanas são imagens móveis, abertas, livres. Essas imagens dispersam-se em todas as direções, perpassam e penetram todos os campos da arte, tomando posições em

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vários locais. Elas estão presentes em diversos momentos ao longo do tempo e em diversos campos, o que caracteriza sua mobilidade.

A utopia é uma potência criadora, um campo livre ao pensar onde a arte inventa suas utopias urbanas. Esta criação de utopias urbanas, de imagens de cidades que não existem é o momento em que se abre a outras possibilidades, é um processo de abstração, de invenção, de liberdade. Inicialmente, foi no campo da literatura que as utopias urbanas e suas imagens (descritas) foram criadas. A imagem utópica é uma criação nascida na literatura, da palavra escrita, ou ainda, fundada sobre imagens mentais. São as palavras utópicas que formam as imagens primeiras. A literatura é tomada por nós como ponto de partida por ter sido o campo no qual o termo utopia foi criado e ainda, foi na literatura que o pensamento utópico se desenvolveu primeiramente. As imagens descritas pelas obras literárias são consideradas de grande importância para a compreensão da dinâmica do pensamento e da composição utópica. Essas primeiras utopias urbanas (literárias) foram responsáveis pela criação de um vasto “repertório” utópico de composição/componentes que se tornou constante e variante nas criações de utopias urbanas. Este é um fato importante, pois esta interessante (e pouco evidenciada) circulação de ideias e imagens, inicialmente encubada no campo literário, vai se espalhando e alcançando outros campos artísticos, como uma forma de contaminação. Nossa intenção é evidenciar esta permeabilidade do pensamento, da criação, esta contaminação e o alcance de referenciais, ideias e influências dentro e através de três campos da arte: urbanismo, HQs e cinema através da cartografia das utopias urbanas.3

De acordo com Deleuze e Guattari (1992), cada arte tem suas técnicas, e através destas o poder crítico e revolucionário pode atingir o seu valor máximo, promovendo uma abertura para a invenção. Eles ainda colocam que os campos artísticos são formas de pensar e criar que interagem com outras formas de pensar e criar (ciência e filosofia). Interessam-nos estas trocas e relações e é através da invenção de cidades utópicas, da criação de imagens utópicas urbanas – consideradas por Deleuze e Guattari (1992) como “blocos de sensações” – que percorremos esta outra forma de pensar na tentativa de tornar visíveis estas conexões pouco exploradas.

As utopias urbanas são mundos criados, uma seleção investida por desejos, forças, potências e poderes em conflito, dominações, atrações, explorações, abusos, paixões e todos os outros afetos de que o ser humano é capaz. As imagens são criações de novas percepções, de perceptos os quais pressupõe afetos, ou seja, novas relações e conexões perceptivas e afetivas. As artes têm meios e métodos diferentes na criação de imagens, assim como cada autor/criador e tomamos esta variabilidade e variedade como característica essencial para a impressão de uma forma de ritmo,4 assim como de diferenciação na produção das utopias urbanas.

Percebemos que há uma grande liberdade de criação quando percorremos as imagens das utopias urbanas, não importando o suporte (seja papel, tela ou película), ou campo (seja urbanismo, HQs ou cinema). A criação de utopias urbanas, de cidades que apenas existem em imagens, é reconhecida por nós pela sua função crítica. Afinal, a criação de outro lugar não seria uma forma efetiva de contestação? E ainda, não seria através das utopias urbanas que poderíamos acompanhar a problematização e o pensamento contínuo e sempre contextuali- zado de nossas cidades, considerando que as utopias (e suas expressões) estão sempre relacionadas ao meio presente?

As imagens urbanas utópicas, a criação de imagens nos séculos XX e XXI, seja no urbanismo, HQs ou cinema, não são reproduções ou representações, estas imagens vão muito além de uma associação com a realidade e com a vivência da cidade real. A associação entre as imagens criadas e a cidade real é clara, mas estas imagens urbanas utópicas são tomadas por nós como espaços de criação, onde ocorre uma repetição. Essa repetição não é do mesmo, como acontece no reflexo, mas uma repetição diferente, uma repetição com atualização. A criação de cada imagem é algo novo, é uma repetição que gera diferenciação. Essas ima- gens são ressonâncias, são invenções compostas por elementos visíveis, como por fenômenos e relações. “A obra de arte existe não por suas semelhanças com a vida [...] mas por sua incomensurável diferença com ela, diferença deliberada e significativa, constituinte do método e do sentido da obra”.5 (STEVENSON, 1884

apud LE BRIS, 1987, p. 84, tradução nossa)

A reflexão sobre a cidade e sobre o pensar cidade não deve ser dissociada à criação de imagens pelas utopias urbanas. O campo da arte, seja através do cinema ou das HQs – artes urbanas que nascem na cidade e acompanham desde

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então todas as suas transformações – ou, seja através do urbanismo, campo criado em função da problemática que envolve a cidade, forma um verdadeiro laboratório com suas experimentações e composições de utopias urbanas. Cada arte tem suas técnicas, e através delas o poder crítico e revolucionário pode atingir seu valor máximo, promovendo uma abertura para a invenção. (DELEUZE; GUATTARI, 1992)

Os urbanistas e artistas aqui incluídos abrem discussões importantes rela- tivas à cidade e à formação e composição do espaço urbano. Eles criam variedades nas quais a imagem pode ser considerada como a “materialização” de uma subjetividade e é através dela que vemos a cidade utópica. A imagem oferece um quadro ideal para as formas de especulação e invenção. A imagem permite a visualização de parte de todo um mundo criado, de todo um universo inventado fazendo do espaço em branco – seja em qualquer suporte –, um espaço aberto ao pensamento, aberto a qualquer tipo de expressão, livre para toda criação.

Nossa cultura não estoca sua história apenas em palavras e textos, mas igualmente em imagens. A imagem é uma linguagem que se abre a incontáveis interpretações. Nosso interesse aqui está focado na criação de imagens nas utopias urbanas, não apenas pela composição da imagem, da espacialidade das cidades criadas, assim como pela dinâmica da própria produção, da própria criação que evidencia a dinâmica do próprio pensamento sobre a cidade, suas conexões, trocas e influências. O pensar por imagens se impõe ao campo do urbanismo, como ao campo das HQs e ao campo do cinema – lembremos os livros Imagem-

Tempo e Imagem-Movimento de Deleuze. Esse livro é justamente uma tentativa

de pensar também por imagens.

Notas

1 Chamamos de expressões utópicas, de maneira geral, as criações materiais, as manifestações ligadas à utopia independente de suporte, forma de expressão e disciplina em que são criadas.

2 Os tipos de utopia são abordados e definidos de maneira variável por vários autores e o desenvolvimento sobre a tipologia das utopias para nós se distancia dos objetivos principais do trabalho. Para mais sobre os tipos de utopia, consultar: Bloch (2006), Deleuze e Guattari (1992); Pessin (2000), Trousson (1999) e Riot-Sarcey (2006).

4 Tema desenvolvido no tópico sobre as Utopias e seus movimentos, neste mesmo volume.

5 “L’oeuvre d’art existe non par ses ressemblances avec la vie [...] mais par son incommensurable différence avec elle, délibéré et significative, constitutive de la méthode et du sens de l’oeuvre”. Trecho de carta datada de 1884 de Robert Louis Stevenson a Henri James.

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 44-50)