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Utopias urbanas e seus movimentos

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 56-62)

De acordo com Deleuze e Guattari (1992), um conceito tem seus ambientes e territórios. O que ocorre quando um conceito é levado para outro ambiente? Quais são os acontecimentos que ocorrem quando um conceito se desterritorializa? A esta questão responde a ideia do ritornelo, “ideia que propõe ao conceito seu ritmo e seu canto, para posturas e acrobacias inauditas”. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 3) Os gestos nos campos da arte que reagem aos ambientes são tomados por nós como o ato criativo de inventar imagens, de criar utopias urbanas. Esses atos de criação são repetições constantes sob diferentes formas em diferentes campos, (re)inventando componentes, o que nos leva à ideia do ritornelo.

O ritornelo, por sua vez, envolve uma série de conceitos que compõem a geofilosofia de Deleuze e Guattari, e esta, com seus planos de consistência e seus movimentos relativos à terra, coloca-se como uma alternativa ao pensamento para a superação da dicotomia sujeito-objeto. O desdobramento conceitual, envol- vendo as relações entre a terra e os territórios, surge no sentido de superar a mencionada dicotomia. O conceito de território está

relacionado ao conceito de agenciamento e, em um enfoque voltado para a esté- tica, podemos relacioná-lo igualmente ao conceito de ritornelo – um estribilho, uma frase melódica que se repete envolvendo as forças do espaço ao redor (são as composições das imagens). Constituir um território ou promover uma territo- rialização significa entrar em agenciamento com forças espaçotemporais que nos rodeiam, daí que o ritornelo, como o canto dos pássaros, visa estabelecer uma relação de forças com o território.

Estabelecemos uma marca territorial (uma assinatura) quando promovemos uma intervenção nas forças do mundo para impor uma distância crítica, fazendo nascer assim meios e ritmos. Este agenciamento das forças da terra para consti- tuir meios e ritmos expressivos tem as características de um ritornelo. Deleuze e Guattari (1997a, p. 125) chamam de ritornelo “todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em motivos e paisagens territoriais”. É como o canto e a encenação (qualidades expressivas) de um pássaro que constitui seu território. “A territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo, ou dos componentes de meios tornados qualitativos”. O fator terri- torializante se manifesta pelo “devir-expressivo”, pelo ritornelo: as qualidades expressivas que se repetem como num estribilho. Portanto, “o território já é um efeito da arte!”. O primeiro ato do artista é o de constituir um território através de uma marca, de uma placa, de uma assinatura. Então, a qualidade expressiva implica posse e é anterior a esta. (DELEUZE; GUATTARI, 1997a) Mas será que basta fundar um território através de qualidades expressivas para criar uma obra de arte? Será que a arte começa e termina no movimento de territorialização?

“O território é, ele próprio, lugar de passagem. O território é o primeiro agen- ciamento, a primeira coisa que faz agenciamento. Mas como ele já não estaria atravessando outra coisa, outros agenciamentos?”. (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 132) Com esta questão, Deleuze e Guattari sugerem que um agenciamento terri- torial não se sedimenta nunca de forma constante. A função de desterritorialização implica o abando do território, a linha de fuga nômade. Assim, o ritornelo terri- torializante implica meios e ritmos, enquanto que a desterritorialização envolve motivos e contrapontos. “O agenciamento territorial, na verdade, não é separável das linhas ou coeficientes de desterritorialização, das fugas, das passagens e das alternâncias para outros agenciamentos”. (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 133)

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Conforme DG, o ritornelo é um conceito eminentemente sonoro, devido à maior potência de desterritorialização que o som possui sobre os demais materiais. (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 118) Entretanto, Deleuze e Guattari ressaltam que essa qualidade do som não torna a música superior às outras artes, mas lhe confere a característica notável de tanto mais se afinar quanto mais se desterritorializa. Apesar do privilégio da música no conceito de ritornelo, este pode ser aplicado a qualquer manifestação artística. Há uma repetição do mesmo ato e de mesmos componentes (de maneiras diferentes) nas utopias urbanas nos campos da arte. A criação de imagens das utopias urbanas pelos diferentes campos imprime um ritmo e esta repetição, este retorno em campos diferentes, indica um ritornelo.

O ritornelo é uma ação que envolve as forças do mundo – forças do caos, da terra e do cosmo –, apresenta a característica de conjugar expressão estética e fabricação, presentificação ou exibição do tempo. Deleuze (1988, p. 285) coloca que é a imaginação “[...] que atravessa domínios, ordens e níveis, abatendo as divisórias, co-extensiva do mundo, guiando nosso corpo e inspirando nossa alma, apreendendo a unidade da natureza e do espírito, com consciência larvar, indo sem parar da ciência ao sonho e inversamente”. Para ele, a diferença e repetição fundam o processo de atualização como linhas de “diferenciação criadora”.

As utopias urbanas criadas com o passar do tempo oferecem em ocasiões diversas e a propósito de objetos diversos, suas percepções por princípio dispersos, indiferentes às delimitações e às fronteiras, enfim, em uma palavra: nômades. (SCHÉRER, 2000, p. 12) Quando colocamos a palavra “nômade”, estamos nos inspirando no uso feito por Deleuze em Lógica do Sentido (1969), no qual ele quali- fica as significações dispersas no universo e no espírito sem que isto seja legítimo nem possível de conferi-las a uma mesma origem, uma única fonte, de fazê-las depender da transcendência de um princípio. As significações são imanentes no curso da vida, de todas as vidas nas quais a cada vez, em cada ponto, exprimem as singularidades. Tomamos as expressões utópicas como singularidades.

Assim, aproximamos as utopias ao nomadismo. As utopias urbanas nos parecem surgir sempre singulares a cada criação, a propósito de problemas específicos, em meios específicos, sendo nômades tanto em seu sentido como em seu desdobramento. O nômade é aquele que transgride todas as fronteiras,

que se abre em sua fluidez e em seu movimento se distribuindo por toda parte, características que atribuímos às utopias e particularmente à imagens das utopias urbanas. Arquitetos urbanistas, cineastas, artistas de HQs têm a possibilidade de assumir um estatuto quase nômade eles próprios. Eles podem ir de um ponto a outro por intermédio de canais, já que a imagem é livre, transpõe fronteiras e perpassa diferentes campos.

O nomadismo é o apelo do fora, é o movimento, é a abertura. Dizemos que as utopias são nômades por irem em direção ao fora, ao lateral, se manterem em movimento para se instalarem em lugar nenhum e assim olharem para o seu presente e continuarem este movimento. Os nômades não são aqueles que se mudam à maneira dos migrantes, ao contrário, são aqueles que não mudam e põem-se a nomadizar para permanecerem no mesmo lugar: no fora, no não lugar. As utopias têm um movimento, uma operação de “desterritorialização” do pensamento de acordo com Deleuze e Guattari (1992).

A utopia “significa a desterritorialização absoluta”, sempre no ponto crítico em que esta se conecta com o meio relativo presente. A desterritorialização absoluta refere-se ao pensamento, à criação. Para DG, o pensamento se faz no processo de desterritorialização. Pensar é desterritorializar, o pensamento só é possível na criação e para se criar algo novo é necessário romper com o território existente, criando outro.

As utopias são sempre (im)possibilidades, lateralidades que permanecem como tal, são devires, criações outras, diferenciações que não se deixam agrupar nem fixar. “Utopias são devires no sentido em que permanecem sempre no condicional, são cidades que poderiam ser [...] que contestam ao mesmo tempo tanto o modelo como a cópia”. (DELEUZE, 2003, p. 2) A força das utopias urbanas está na sua constante transformação, em sua trajetória movimentada, na sua incessante (re)invenção a cada presente que passa e em sua distribuição por vários campos. A criação de utopias urbanas e de suas imagens nos campos da arte pode ser considerada como produção de diferenças a partir de repetições, de movimentos, de atos criadores. A criação de utopias urbanas se passa sem cessar na junção entre o repetitivo e o diferencial. A criação é um ato de repetição, que traz repetições assim como traz diferenças.

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As utopias urbanas são diferentes, sejam diferenças de natureza, diferenças de grau ou de intensidade,1 mas toda utopia urbana possui diferenças internas, dife-

renças consigo mesma. As diferenciações implicam a mobilidade de relações dife- renciais e acontecem como linhas de um “processo de atualização”. Diferenciar-se é o movimento de uma virtualidade que se atualiza. (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 137) As utopias urbanas vão sendo criadas conectadas ao seu presente em um processo de atualização, de diferenciação, é o pensamento utópico em movimento, com toda sua abertura à invenção. Enquanto a atualização é sempre criadora, a realização é sempre reprodutora ou limitativa, esta colocação nos leva à proble- mática (paradoxal) da materialização, da construção das utopias urbanas.

As utopias urbanas não se mantêm imóveis, atravessando de alguma forma o tempo. Estas criações são dinâmicas, são atualizações reagindo ao meio, sendo (re)inventadas, assumindo novas formas, espalhando-se no tempo e espaço, escapando à imobilidade e à estática. Os movimentos das utopias urbanas podem ser percebidos ao cartografarmos as suas expressões em diferentes campos e em diferentes momentos. Para nós, as utopias urbanas circulam e se distribuem nomadicamente e sendo encaradas como um processo, elas se transformam, são figuras dinâmicas, são fluxos. Ao tomamos as utopias como um fluxo, como um processo, nada há de ser fixo.

As utopias como mecanismo de reflexão crítica são móveis, dinâmicas, elas se transformam e se movem, sendo criadas em momentos diferentes e em campos diferentes, constituindo outros espaços diferenciados a cada criação. De acordo com Foucault (1994, p. 739), “é muito cansativo ser sempre o mesmo”. As diferenciações acontecem como linhas de um processo de atualização. As utopias urbanas são criadas ligadas a valores e normas históricas, teorias e discursos, limites, mas, a cada vez, atualizadas.

Esses movimentos das utopias impedem uma conceituação única, uma definição precisa e fechada. As utopias escapam a todas as formas de imobili- zação e de apropriação, mostrando-se como território (e não objeto) movediço. Acreditamos que a força das utopias resida justamente nestes movimentos, na sua constante transformação e capacidade de atualização. Por isso, sua incom- patibilidade com os sistemas, com os modelos que aprisionam a reflexão, que fecham os horizontes, atitudes contrárias às utopias que justamente abrem os

horizontes, rompem os sistemas, não para substituí-los, mas para abrir o pensa- mento e como ação na direção de possibilidades que mostrem novos caminhos, novas articulações, outros espaços. (LEFEBVRE, 2000, p. 1)

Na tentativa de visualizarmos esses movimentos, estabelecemos duas entradas: a primeira que chamamos de atualizações encubadas (pequenos movi- mentos que ocorrem dentro de cada campo) e a segunda, chamada de atualização por contaminação (grandes movimentos que transpassam campos sem reconhe- cimentos de limites ou fronteiras). Assim, pretendemos evidenciar as utopias como um fluxo, um processo, ao qual é indissociável a ideia de movimento. As atualizações encubadas mostram o processo de criação de utopias urbanas dentro de cada campo em questão, explicitando o dinamismo de suas criações e com- posições, enquanto as atualizações por contaminação mostram como a criação das utopias urbanas se estende a vários campos da arte e como o pensamento utópico estabelece uma malha, uma rede de conexões, de relações e de trocas.

Notas

1 As diferenças podem ser de grau (ou nível) e podem ser de natureza. A utopia se atualiza em diferentes formas de expressão que diferem de natureza entre si. Na literatura, urbanismo, HQs ou cinema, as atua- lizações são os devires-outro de utopia.

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 56-62)