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Voyage en Icarie de Etienne Cabet (1840)

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 92-95)

Voyage en Icarie representa, aproximando-se até de uma caricatura, a base

das chamadas utopias comunistas do século XIX. Como ressaltou Mumford (1959, p. 151), Cabet escreveu sua utopia sob a influência dos acontecimentos desde a Assembleia Nacional de 1789 até a formação do Império de Napoleão III e de certa forma construiu através de Icária um estado nacional sob a tradição napoleônica. Influenciado também pelos efeitos da Revolução Industrial e consequências sociais nas cidades, Cabet escreve Voyage en Icarie durante seu exílio em Londres (1834-1839).24 Icária é um não lugar “tão vasto como a França”.

Icária figura como um grande formigueiro igualitário, um país monótono onde as cidades, bairros e moradias são reproduções e repetições de um mesmo modelo. São 100 províncias com extensões praticamente iguais, divididas em dez comunas também iguais, sendo a capital situada na província central, no centro geométrico do país. Há aqui uma clara aproximação feita não só por Mumford (1959), como também por Sargent e Schaer (2000), à divisão do território francês como um novo plano de organização e administração feita durante a Assembleia Nacional de 1789.

Conector Todos os Falans-

térios possuem torres. Estas torres são pontos de comuni- cação de onde se estabelecem a conexões com outros Falans- térios por meio telegráfico.

Tipias de Voyage

en Icarie

Geometria A descrição de

Icária mescla a forma circu- lar - dominante no centro do país - a traçados regulares, seguindo linhas paralelas, ortogonais.

Elemento central O Centro

Cívico de Icária representa a palavra-chave para CABET: fraternidade. Esse edifício central deveria ser exemplo de igualdade e símbolo da democracia popular.

Duplicata Arquitetura repe-

titiva, na qual o padrão de edificação se repete infinita- mente. As cidades também se repetem, seguindo um mesmo plano.

O desenho dividia todo o território em quadrados, atendo-se apenas à regu- laridade do traçado e desconsiderando as antigas divisões regionais, aspectos topográficos e geográficos, população e história específica de cada região. É uma imagem perfeita da racionalização do espaço, como transparece na geometria apresentada pelas cidades utópicas. A desconsideração com fatores externos pode ser aqui interpretada pela localização da utopia em um não lugar, o que extingue qualquer particularidade, afinal, sendo o campo utópico um espaço liso, as criações utópicas são livres para compor suas cidades.

Cabet descreve Icária como um país de forma quase circular e dividido em partes iguais por um rio de margens muradas. No meio do território, o rio se divide em dois braços, formando uma grande ilha circular. Na ilha, situa-se o Centro Cívico, edifício mais importante de Icária. Cabet descreve um fabuloso jardim suspenso, com uma vasta colunata que abraça uma estátua colossal, dominante no espaço e situada bem no centro do jardim que contorna o Centro Cívico.

A cidade é dividida em bairros, cortada por 50 avenidas retas e amplas paralelas ao rio e outras 50 perpendiculares, formando o desenho de uma grande grelha. Ao mesmo tempo em que Cabet explora a forma circular, ele descreve uma rigidez ortogonal que nos faz acreditar na impossibilidade de um desenho compatível com as descrições contidas na obra. Cada quarteirão é formado por 15 casas de cada lado, o centro da quadra é ocupado por um prédio público e o espaço livre, por jardins públicos cuidados pelos moradores enquanto as calçadas são cobertas por coberturas em vidro, a fim de proteger os pedestres da chuva. Icária apresenta uma sofisticada, racionalizada e padronizada organização. Iluminação pública, faixas destinadas ao trânsito de carroças, estábulos, hospitais e matadouros são situados na periferia externa da cidade, enquanto as fábricas e armazéns são construídos contíguos às linhas férreas e canais fluviais. Cabet aqui mostra clara preocupação não só com a salubridade do espaço da cidade, como também com a organização e otimização do processo de chegada e saída de produção e mercadorias.

Em Icária, não há propriedade privada, bens ou hierarquia social. Todos os habitantes são considerados como associados e cidadãos, tendo direitos e deveres iguais. A sociedade icariana, como descreve Cabet, é “fundada com base na perfeita igualdade”, fundamento visível na adoção de uniformes elásticos de Massa uniforme Em Icária,

todos os habitantes devem formar uma coletividade harmoniosa e, como expres- são da igualdade, todos se vestem com uniformes de mesma cor, mesmo material, formando uma massa mono- cromática e uniforme.

Máquina CABET descreve

máquinas de lavar, máquinas de içar e de carregamento.

Veículo Icária é movimentada

por diversos veículos (cada um em seu devido lugar, se- guindo a obsessão por orga- nização e limpeza do autor). Ônibus, carroças puxadas por cavalos e pequenos veículos puxados por grandes cães circulam pelas ruas, seguindo trilhos em trechos pavimen- tados “de forma a evitar a formação de lama”.

Trilogia das utopias urbanas 25b

tamanho único para todos os que pertencem a uma mesma condição. Detalhe curioso, mas justificado pela facilidade da produção em série e para que as ves- timentas possam ser usadas por pessoas de tamanhos diferentes. A população uniformizada de Icária forma uma multidão homogênea e monocromática. É uma cidade onde as pessoas perdem suas características pessoais, perdem sua individualidade em nome de uma coletividade harmônica.

De acordo com Mumford (1959), neste universo racionalizado, simplificado ao extremo e altamente controlado, pressente-se uma espécie de monstro frio e tentacular. Nisso talvez resida “o único aspecto profético do projeto de Cabet, que deixa entrever inconscientemente, o horizonte kafkaniano dos totalitarismos modernos”.25 A obra de Cabet na verdade não é muito empolgante ou inovadora. Ele

continua uma tradição utópica sem trazer grandes e novas contribuições. Muitos autores consideram Voyage en Icarie como um romance direcionado para as leitoras da época e mais, como colocado por Ruyer, um livro monótono e mal escrito.

Pouco tempo depois, animado com resultados positivos da comunidade experimental de New Lannark de Robert Owen, Cabet abandonou a utopia e trabalhou sobre um plano para a construção de uma nova comunidade baseada em suas ideias expressas em Icária. Após duas tentativas frustradas de implan- tação, Cabet conseguiu reunir 240 colonos dispostos a se instalar em Nauvoo, uma antiga colônia de mórmons no estado americano de Illinois. Otimista com os bons resultados iniciais, Cabet partiu para a Inglaterra com o projeto de implan- tação de outra colônia com 1.200 colonos. Chamado às pressas para retornar à Nauvoo, Cabet encontrou a cidade imersa em crise com as lutas internas – talvez incitadas pela incrível monotonia imposta pelas regras icarianas. Com a ordem aparentemente restabelecida pelo patriarca, a comunidade de colonos expulsa o próprio Cabet com um movimento de revolta contra seu autoritarismo. Depois da morte de Cabet, em 1858, ainda houve tentativas de manutenção de comuni- dades icarianas em território americano, sendo algumas com a incorporação de ideias anarquistas e revolucionárias, como foi o caso da Jovem Icária fundada na Califórnia, mas nenhuma delas conseguiu se manter, tendo o ano de 1895 a data de dissolução da última comunidade.

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 92-95)