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Sergio Bernardes: 67 Rio do Futuro (1965)

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 155-160)

Sergio Bernardes (1919-2002) formou-se em 1948 na Escola Nacional de Arquitetura, hoje Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal

do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ), já em um momento em que a arquitetura moderna brasileira se desenvolvia em um contexto de reconhecimento internacional. Sua produção mais intensiva se deu entre os anos de 1950-1970.

Rio do Futuro pode ser apontado como um projeto de convergência na própria

trajetória de Bernardes, pois este reúne muitas ideias e experimentações que o arquiteto e urbanista vinha gestando há tempos. Projeto este crítico, reativo e que congrega o desenvolvimento do pensamento de Bernardes até sua publicação e figura como geratriz pulsante do que estaria por vir na continuidade de seu pensamento em desenvolvimento e gradativa complexificação. Mais à frente, em 1979, oficialmente tem lugar com a formação do Laboratório de Investigações Conceituais (LIC), abrigado no próprio escritório de Bernardes.

Vanguarda Além da lin-

guagem arquitetônica van- guardista, ISOZAKI segue os preceitos do Manifesto Metabolista (1960).

Tipias em Helix City

Conector A estrutura das tor-

res se conecta com a rede de circulação da cidade, formando uma única malha de conexão.

Panorama KUROKAWA des-

taca a vista panorâmica da torre helicoidal, captando a visão das outras torres que formam a cidade.

Vanguarda KUROKAWA ex-

perimenta novas formas de composição espacial seguin- do preceitos metabolistas.

Móvel Concebido de manei-

ra complexa, o sistema de

circulação da cidade integra automóveis, trens, elevado- res e metrô.

Trilogia das utopias urbanas 87b

Rio do Futuro de Bernardes mostra-se como um Rio de papel/de desenhos/de

reflexões. Esta publicação – Edição Especial da Revista Manchete 1965 –69 assim como

a exposição do Museu de Arte Moderna (MAM/1984), publicada integralmente em número especial da revista Módulo dedicado a Sergio Bernardes, podem ser apontados como dois momentos de reunião, ou mesmo síntese de ideias várias de forma articulada.

Em Rio de Futuro, Bernardes apresenta uma construção, cria outros sis- temas, organizações da condição humana em vários aspectos impregnadas de um otimismo racionalista, marcante no início do século XX, mas atualizado insistentemente por Bernardes em meio a um contexto agitado, incerto e ruidoso dos anos 1960 no mundo, no Brasil e, em especial, no Rio de Janeiro. Ressonância a tantos ruídos, Bernardes alça a antiga capital a uma cidade, não global, mas universal, humana e cibernética, desmanchando estruturas e sistemas físicos, socioeconômicos e político-administrativos vigentes.

Rio do Futuro não é de forma alguma neutro ou passivo, mas como são as

utopias, é ativo, engajado, transformador e, longe de qualquer antecipação ou apontamento para aproximações redutoras, é um conjunto capaz de revelar o presente vivido, a época na qual foi concebido e neste caso em especial, o corpo de um livre pensar, que Bernardes travará um esforço contínuo em expô-lo de maneiras e intensidades muito variantes ao longo de sua vida.

Ao invés de, como na clássica Utopia de More, apresentar a redenção do homem citadino em terreno insular longínquo, Bernardes apresenta um Rio de Janeiro em devir. Respondendo a problemas de seu presente, de seu contexto, com a liberdade de pensamento que o deslocamento de tempo permite, Bernardes, por descontentamento, cria um Rio de Janeiro de aparente encantamento. Aparente, pois, nesse conjunto de curtos textos e muitas imagens, por vezes, oníricas ou com ares de ficção científica, reside uma densidade radical, visível, por vezes, apenas ao debastarmos as suas camadas.

O Rio do Futuro, título principal do número especial da revista Manchete de 17 de abril de 1965, é seguido pelo subtítulo “antevisão da cidade maravilhosa no século da eletrônica” e há um grande destaque para as 44 páginas em cores. A capa traz uma perspectiva do projeto bairros verticais de Bernardes. Podemos supor a escolha desta imagem por duas razões: o impacto visual, afinal, a revista

Voadores KUROKAWA dese-

nha helicópteros sobrevo- ando a cidade de Helix City.

Duplicata As células habita-

cionais se repetem e o padrão de crescimento da cidade faz com que as estruturas se repitam de forma idêntica e em cadeia.

Geometria O padrão de cres-

cimento e organização da cidade segue a geometria fractal. As estruturas em helicoide sustentam planos e células de habitação.

Vertical As torres helicoidais

são os elementos verticais da cidade de Helix City.

Tipias em Rio do Futuro

Geometria Os bairros verti-

cais são helicoides que alcan- çam quase 1 km de altura, os megaequipamentos seguem

Manchete era uma publicação semanal de grande circulação no Rio de Janeiro,

voltada a público não especializado; e a importância e complexidade da proposta em si: os bairros verticais (com suas curvas helicoidais) são uma resposta direta ao processo de adensamento da cidade, resultado também de mudanças da legislação de ocupação territorial do estado da Guanabara (Decretos n° 991 e 1.590) e um empenho especial de Bernardes pela “libertação do solo e da gravi- dade” e a limitação da expansão horizontal da cidade. Pode ser apontado como a continuidade, mas como hipérbole, do projeto Casa Alta (1963). Cada um dos 156 bairros verticais, neste momento, era composto por 20 mil lotes de 100 m2 cada,

teriam 600 metros de altura, mas poderiam alcançar 1 km de altura e abrigariam 150 milhões de habitantes. Com a verticalização radical, preservariam a paisagem da cidade, otimizando infraestrutura em um núcleo central e evitando a dispersão urbana. Bernardes mostra a totalidade da proposta dos bairros verticais apenas em 1975, em seu livro Cidade: sobrevivência do poder (editora Guavira), e é ampliada na edição de 1977 Bonus Patrimoniais – capitalização do solo urbano.

No topo de página dupla, anuncia-se o projeto para o Rio na idade da Cibernética. O termo “Cibernética”, criado por Norbert Wiener no pós-guerra, nomeia uma nova disciplina, dedicada a estudar o impacto social da automação. Trinta e três anos depois da obra literária de ficção científica Admirável Mundo

Novo, do inglês Aldous Huxley, Rio, admirável mundo novo intitula texto de autoria

de Bernardes apresentando o projeto do qual se destaca o seguinte trecho:

O processo evolutivo do homem e da natureza é recíproco: aper- feiçoa os dois. Desenvolve-se no espaço e no tempo, acumulando experiências e aprendizagens, que se transformam em conheci- mentos, numa acelerada progressão, geradora de um homem e de um mundo novo. Às vezes a soma das experiências supera as parcelas, suplanta o individuo e a natureza, produzindo, sobre- tudo na adaptação especulativa das cidades, desajustamentos que exigem nova compreensão, adaptação e ação para situar o homem em sua escala universal. É tarefa do arquiteto traduzir, no espaço e no tempo, o equilíbrio buscado, sem o qual a evolução é massacre de indivíduos, esmagamento da humanidade, degra- dação e destruição da natureza pelo sacrifício do universal aos interesses particulares.

formas geométricas marcadas, como os trapézios invertidos, abrigando hotéis nas bases da ponte Rio-Niterói, os volumes prismáticos do centro cívico e a circularidade do plano estrutu- rado pelos anéis de equilíbrio que circundam os maciços do território da cidade...

Vertical A verticalidade está

presente praticamente em todo o projeto.

Voadores Helicópteros e

aviões povoam os céus de Rio do Futuro, assim como vistas aéreas da cidade a partir de aviões e helicópteros são desenhadas.

Duplicata Os bairros verticais

replicam-se pela cidade.

Elemento central BERNAR-

DES assume o centro geo- gráfico da cidade como cen- tro simbólico, escolhendo o centro cívico como elemento central. Este centro é marca- do por uma torre triangular conformada por três prismas (triangulares). Uma referência à congregação dos três pode- res do Estado.

Trilogia das utopias urbanas 89b O plano que apresento é uma contribuição desinteressada ao meu

Estado e, sobretudo, ao seu povo. (BERNARDES, 1965)

Em seguida, Bernardes enumera seis ações principais – de escalas, tempos e prioridades diferentes – tocantes à mobilidade/conectividade, crescimento urbano, verticalização, livre-comércio, estrutura turística, habitação.

Em seguida, amplia para a questão do homem no universo, uma abor- dagem humanista cara a Bernardes que irá tornar-se não só uma constante, mas norteadora na formação do LIC, como também irá dominar seu discurso, especialmente a partir do final dos anos 1960. Cabe lembrar que o contexto da cidade, país e mundo, com seus acontecimentos – desde a conquista do espaço e a competitividade técnica-tecnológica, aos problemas urbanos comuns das grandes cidades, como a rápida expansão e crescimento populacional e os problemas de mobilidade com a multiplicação de automóveis – postos aqui de maneira muito superficial – estão provocando, reações projetuais e reflexões radicais sobre o futuro, marcadamente na Europa, América e Japão. Bernardes, de certa forma, está também, neste período, reverberando a estes acontecimentos.

Os trabalhos dos ilustradores José Ramis, Anna Sakalys e Janusz Stylo são de grande impacto visual e expõem as ideias de Bernardes com uma linguagem gráfica particular ao optarem por pranchas em alternância cromática. O estudo da diagramação da revista evidencia o cuidado de apuro com o qual Bernardes e sua equipe estavam empenhando na composição da edição. Associando pers- pectivas, plantas, diagramas, imagens-conceituais a fotos da cidade e imagens que a cada página vai construindo um outro Rio de Janeiro, reconhecível apenas, nas pranchas em guache, pela topografia peculiar e característica da cidade.

A cidade existente permanece – apesar dos desenhos não mostrá-las – neste futuro, diferentemente da tábula rasa, os bairros verticais se integram ao existente, se enraízam aproximando-se da realidade concreta, paradoxalmente assegurando sua característica futurista. Cria vocabulário próprio e brinca sobre dois planos diferentes: maleáveis, mas apropriados à escala temporal.

Rio do Futuro opera, assim como muitos outros de seus projetos, de um lado

em uma realidade técnica, topográfica e sociopolítica, mas transpõe, de outro lado, estes dados a uma utopia urbana que o permite repensar o espaço do real.

Natureza Nas imagens com

aproximação da escala, o paisagismo aparece de forma bem trabalhada e integrada aos espaços projetados. Na macroescala, a preocupação ecológica e a menção aos ecossitemas são constan- tes. Assume a exuberância natural da cidade do Rio de Janeiro, valorizando-a.

Panorama Imagens a partir

das torres mostram um pano- rama da cidade futura do Rio de Janeiro, integrada à topo- grafia característica da cidade e aos seus marcos naturais.

Móvel Monotrilhos, car-

ros, navios, aviões e outros transportes cruzam a cidade expondo o pensamento de Bernardes sobre as questões de mobilidade e sua preocu- pação com a estruturação do sistema de transportes da cidade em expansão.

Como o próprio Bernardes afirma nessa mesma edição, de forma provoca- tiva: seu posicionamento não é científico, tecnológico ou erudito, mas sim “um comportamento prospectivo, a fim de permitir de uma maneira imediata livrar o futuro de seus velhos hábitos, com os quais ele é obrigado a apresentar-se hoje, deixando-o livre de decidir ele próprio suas próprias vestimentas. Eu me expresso no sentido de contribuir para um mundo melhor”.

No Rio do Futuro, Bernardes mostra sua reinvenção de uma sistemática, reen- contrada de maneira mais robusta em outros de seus trabalhos, principalmente no livro Cidade – a sobrevivência do poder (1975). Invenção técnica, unificação do tempo e matriz de progresso humano guiam a reorganização total do território trabalhado como uma trama matemática, ações que se materializarão mais claramente no Plano do Rio e Projeto Brasil (1975).

Torna o centro geográfico da cidade, na baixada de Jacarepaguá nomeado como centro de equilíbrio, o centro comum, onde desenha o edifício dos três poderes, trazendo função e carga simbólica à localidade que depois foi assumida com Centro Metropolitano no Plano Piloto para a Baixada de Jacarepaguá de autoria de Lucio Costa (1969). Considerando uma população de 15 milhões de habi- tantes, cria megaequipamentos conectados por sistemas de transporte público, como o monotrilho. São equipamentos que figuram como megaestruturas vol- tadas às artes, cultura, lazer, comércio, turismo, assim como campus universitário, centros esportivos e educacionais. A mobilidade planejada de Bernardes prevê ampliação da rede de túneis existente, a criação de pontes – lembrando que a ponte que liga Rio-Niterói ainda não existia –, rede de freeways e monotrilhos diretos, pois cada bairro vertical possui seu próprio centro de compras, médico, administrativo etc.

Ao tratar da mobilidade, Bernardes perpassa por diferentes escalas – uni- versal, global, continental, nacional, regional, local. Demonstra embasamento e pesquisa nas descrições e com material encontrado no acervo, mapas e mapas de estudo foram trabalhados para a elaboração e refinamento das propostas, em especial os anéis de equilíbrio.

Neste ponto, percebe-se a ideia das conexões territoriais que Bernardes ampliará ao território nacional e a outros modais no Projeto Brasil. Explora amplia- ções e aproveitamentos de estruturas a serem criadas para múltiplos propósitos, Conector Os anéis de equilí-

brio contornando os maciços da Tijuca e Pedra Branca conectam as áreas da cidade. Uma extensa malha viária associada aos anéis promove a conectividade da cidade. Em diagramas, BERNARDES mostra diferentes níveis de conexão da cidade: local, regional, nacional, global... E o mais importante, mostra conexões de sistemas cria- dos/interpretados por ele.

Tipias de Plug-in-city

Máquinas Gruas e guindas-

tes, máquinas e aparelhos eletrônicos substituem tra- balhos repetitivos, desgas- tantes e perigosos. Todo co- mércio é automatizado e por autosserviço.

Duplicata Cápsulas e módu-

los produzidos em massa são as unidades mínimas que se repetem, formando as torres e aglomerações urbanas.

Trilogia das utopias urbanas 91b

como o caso da ponte ligando Rio a Niterói, tendo em seus pilares estrutura por- tuária, de armazenamento, importação/exportação ou ainda a associação entre o aeroporto intercontinental e um porto turístico na baía de Sepetiba.

Rio do Futuro mostra o posicionamento de Bernardes. É uma utopia opera-

cional que reúne muitos de seus projetos e que irá retornar, de maneira atuali- zada, em seus projetos daí por diante. Ele traz questões de tempo, escala e de experimentação para constituir uma escritura que o permite atemporalizar seus projetos e provocar/responder às críticas ao declarar que a “viabilidade de um projeto repousa mais sobre a capacidade de uma população e suas instituições a aceitar um modo de vida radicalmente diferente do que a validade dos meios técnicos necessários para sua realização”.

Sergio Bernardes desenvolveu muitos projetos para as cidades, em especial para o Rio de Janeiro, destacando-se como um dos poucos arquitetos brasileiros a se debruçar sobre utopias urbanas. O arquiteto sempre se mostrou como um questionador70 e, segundo Lauro Cavalcanti, Bernardes foi “radical em seus

impulsos ficcionais e na imaginação poética”.

Bernardes elaborou muitos planos e projetos. Seu acervo é vasto e rico em temáticas e abordagens. Vale aqui ressaltar ainda suas incursões no design que abrangeu a criação veículos como a Biocleta, o Avião Gaivota, o carro flexível

Bernadete e o transporte público Rotor. Em muito podemos aproximá-lo a figuras

como Buckminster Fuller (autor do aero-fuller e do dymaxion-car) e F. L. Wright (autor dos helicópteros individuais). Suas criações utópicas e seu singular pen- samento, infelizmente, ainda são pouco estudados e difundidos.

Archigram:

71

Plug-in-city (1962-1966) de Peter Cook, Walking

No documento Trilogia das utopias urbanas (páginas 155-160)