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Já se sabe que o stare decisis não é uma técnica que provoca o engessamento do pensamento jurídico, muito menos um sistema que exige do aplicador do direito a utilização acrítica de casos passados para o julgamento de casos futuros.

Sendo assim, permite-se ao julgador, presentes determinadas circunstâncias, que deixe de aplicar precedentes que foram invocados como paradigmas para os casos submetidos a seu julgamento, desde que a não aplicação seja fundamentada na presença de elementos de fato ou de direito que se diferenciam entre o caso atual e o caso invocado. Vige, aqui, a máxima “cessante ratione, cessat ipsa lex”, ou seja, “cessando as razões para a existência da norma jurídica, ela deixa de existir por si própria”53.

Nesses casos, caberá ao juiz executar o “distinguishing”, que consiste justamente na recusa da aplicação de um precedente invocado como paradigma em virtude da constatação da existência de elementos essenciais que diferenciam o caso em análise com o caso anterior. Estabelecido o distinguishing, poderá o juiz aplicar ao caso a regra jurídica que entender mais adequada, afastando-se, portanto, da conclusão anterior.

Além disso, é possível que, quando da análise do caso submetido à apreciação, verifique-se que os elementos de fato e de direito do caso invocado como paradigma e do caso atual são similares, não havendo nenhuma circunstância que autorize a execução do distinguishing.

52SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Juruá, 2008. p. 134. 53SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Juruá, 2008. p. 145.

Não obstante, é possível que uma nova reflexão sobre o tema exija que a fórmula utilizada para a solução do caso anterior seja abandonada. Nogueira elenca uma série de circunstâncias que podem ensejar a prática do overruling: a) mudança de composição do tribunal que elaborou o precedente; b) mudança na lei que integra a ratio decidendi do precedente ou c) mudança nos valores da sociedade54. Para Cole,

Precedente vinculante nos Estados Unidos não significa, porém, que o precedente de um caso está escrito em pedra. O precedente mudará progressivamente quando o legislador mudar a lei sobre a qual o precedente se baseia, quando a evolução cultural do tempo o requerer, quando a filosofia judicial da maioria da Corte, com autoridade para mudar o precedente aplicável, alterar ou revogar o precedente anterior, ou quando a Corte recursal com autoridade para mudar o precedente determinar que cometeu um erro ao estabelecer o precedente em questão55.

Nessas situações, será possível a prática do overruling, que é a revogação do precedente anterior e a criação de um novo precedente, que agora irá orientar a solução dos casos futuros.

Há autores, como Sotelo, que identificam na revogação do precedente uma declaração pública de que todos os casos precedentemente decididos sob os auspícios do precedente revogado foram decididos de forma contrária ao direito56. Discordamos do posicionamento do referido autor, pois, conforme relatado por Nogueira e Cole, haverá situações em que não se pode simplesmente concluir que o precedente estava errado, pois as circunstâncias sociais e políticas do momento histórico em que foram elaborados, ou mesmo as leis vigentes naquele momento histórico, autorizavam aquela conclusão. Nesse mesmo sentido, Reynolds, quando afirma que “o primeiro passo, é claro, requer que o juiz determine que a regra

54NOGUEIRA, Gustavo Santana. Stare decisis non quieta movere: a vinculação aos precedentes no

direito comparado e brasileiro. Lumen Juris, 2011. p. 185-199.

55COLE, Charles. Precedente Judicial: A experiência americana. Revista de Processo, Ano 23, n. 92,

Editora Revista dos Tribunais, 1998. p. 86.

56SOTELO, Jose Luiz Vasquez. A jurisprudência vinculante na common law e na civil law, in, Temas

atuais do direito processual ibero-americano. In: XVI JORNADAS IBERO-AMERICANAS DE DIREITO PROCESSUAL, 16, 1998, Compêndio de relatórios e conferências apresentados. Revista Forense, 1998, p. 369. No mesmo sentido, PORTES, Maira. Instrumentos para revogação de precedentes no sistema de common law. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). A Força dos Precedentes. Jus Podivm, 2010. p. 108.

anterior foi um erro, ou que a sociedade mudou desde que foi anunciada, ou que a nova regra simplesmente funciona melhor.”57

Deve-se mencionar ainda que o overruling tanto pode acontecer de forma explícita, nas hipóteses em que os tribunais expressamente declaram que estão abandonando uma orientação anterior e adotando uma nova regra de direito, ou de forma implícita, que ocorrerá quando os tribunais, a despeito de não declararem expressamente que estão revogando um precedente anterior, decidam de forma divergente e incompatível com uma orientação anterior.

Poderá também o juiz entender que o precedente merece apenas parcial revogação, em virtude, por exemplo, do surgimento de uma nova regra que termine por afetar a conclusão a que se chegou em momento anterior. Nesses casos, não haverá necessidade de aplicação do overruling, mas sim do overriding.

Relativamente aos efeitos que decorrem da prática do overruling, a doutrina terminou por elaborar novos conceitos, que visam justamente a modular a eficácia das alterações de posicionamento das Cortes, visando a garantir valores como a segurança jurídica e boa-fé objetiva.

É que, em países que adotam a teoria do stare decisis, o cidadão comum termina por pautar as suas escolhas pessoais e profissionais pelos precedentes criados pelos tribunais, e por isso, tem a justa expectativa de que suas condutas sejam julgadas com base nessas orientações. Justamente por isso, é preciso cautela na modulação dos seus efeitos, pois elas têm repercussão direta na vida das pessoas, relativamente a fatos e atos jurídicos já constituídos.

Alguns autores se debruçaram sobre o tema e esboçaram classificações quanto às possibilidades de eficácia da revogação dos precedentes. Pomorski, propõe a seguinte classificação: a) purely prospective aplication, através da qual o tribunal aplicará o novo precedente apenas aos fatos que aconteceram após o estabelecimento da nova regra; b) regular prospective aplication, através da qual o

57 REYNOLDS, William. Judicial process in a nutshell, 2. ed. St. Paul: West Publishing Co, 1991, p.

169 apud SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Juruá, 2008. p. 150.

tribunal poderá aplicar a nova regra aos casos que aconteceram após a alteração e ao caso que deu ensejo ao overruling; c) full retroaction, onde o tribunal aplicará a nova regra a todos os fatos que aconteceram antes de ela ter sido criada, incluindo aquelas situações que já foram julgadas de forma definitiva; d) limited retroaction, onde o tribunal poderá aplicar a nova regra aos fatos anteriores à sua criação e os fatos futuros, respeitando, no entanto, as situações onde já houver sentença definitiva no momento da publicação do novo precedente58.

Sesma propõe outra classificação: a) retroativa, quando o tribunal poderá aplicar a mudança da regra de direito aos fatos ocorridos antes ou depois da publicação do precedente revogador; b) prospectiva, quando o tribunal apenas aplicará a nova regra aos casos futuros; c) prospectiva-prospectiva, que ocorrerá quando o tribunal estabelecer uma data futura, a partir da qual o fatos ocorridos serão julgados de acordo com a nova regra, e; d) quase-prospectiva, quando o tribunal aplicará a nova regra ao caso que suscitou a revogação do precedente e aos casos futuros59.

O que se tem como regra, é que, no stare decisis, a revogação dos precedentes tem efeitos retroativos, de modo que quando uma Corte revoga um precedente e estabelece uma nova orientação, ela deve ser aplicada a todas as relações jurídicas ocorridas antes da decisão revogadora.

No entanto, por questões relacionadas à segurança jurídica das relações sociais, poderá o tribunal optar por aplicar o overruling apenas para os casos futuros, o que representa conferir efeitos prospectivos à superação do precedente, ou ainda, aplicar a alteração da orientação jurídica apenas a partir de determinada data futura, quando a sociedade já estará ciente da nova orientação e poderá pautar as suas ações baseadas no novo entendimento. Por fim, poderá o tribunal aplicar o novo precedente ao caso que lhe deu origem e aos casos futuros.

58SESMA, Victoria Iturralde. El precedente em el common law. Madrid: Civitas, 1995, p. 170 apud

SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Juruá, 2008, p. 157- 158.

59SESMA, Victoria Iturralde. El precedente em el common law. Madrid: Civitas, 1995, p. 170-171,

apud SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Juruá, 2008, p. 157-158.

Souza, com base nos ensinamentos acima relacionados, propõe que a eficácia da revogação dos precedentes seja classificada da seguinte forma: a) aplicação retroativa pura, quando o novo precedente aplica-se a qualquer caso, ainda que já tenha sido objeto de sentença transitada em julgado; b) aplicação retroativa clássica, nas hipóteses em que o novo entendimento aplica-se aos casos anteriores e posteriores ao novo entendimento, com a ressalva dos casos que já foram julgados definitivamente e daqueles que foram atingidos pela prescrição ou decadência; c) aplicação prospectiva pura, o tribunal aplicará o novo entendimento apenas aos casos futuros, excluindo-se aquele que deu ensejo a alteração do precedente; d) aplicação prospectiva clássica, hipótese em que o tribunal aplicará o novo entendimento a todos os casos futuros, incluindo o caso que deu ensejo à alteração do precedente e; e) aplicação prospectiva a termo, quando o tribunal aplicará o novo entendimento apenas a partir de uma data futura60.

4 OS BENEFÍCIOS DA ADOÇÃO DE UM SISTEMA DE PRECEDENTES VINCULANTES

A adoção da sistemática de precedentes vinculantes não é um mero capricho doutrinário, uma técnica processual que se impõe formalmente ou mesmo uma tentativa vã de “commonlawlizar” um ordenamento de tradição do civil law. Um sistema judicial que conta com uma cultura de observância de precedentes anteriores (ainda que a cultura seja imposta pela lei) pode extrair disso uma série de benefícios para a prestação jurisdicional, que, por tabela, estendem-se aos cidadãos, que são os maiores interessados no aperfeiçoamento do serviço público prestado pelo Poder Judiciário.

Nesse sentido, o objetivo deste capítulo é apresentar alguns argumentos favoráveis à adoção da sistemática de precedentes judiciais vinculantes, nas perspectivas da concretização do princípio da duração razoável do processo, da segurança jurídica e do princípio da isonomia do jurisdicionado perante o Poder Judiciário.