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5.2 A experiência Alemã

5.2.2 KapMuG

O “Gesetz zur Einfuhrung Von Kapitalanleger-Musterverfahren” (KapMuG), diferentemente do “Musterverfahren” previsto na Lei de Justiça Administrativa da Alemanha, consiste na aplicação da sistemática de julgamento de demandas repetitivas no âmbito do próprio sistema processual civil, ou seja, na denominada Justiça Comum.

No entanto, conforme alerta Cabral93, o “Musterverfahren” previsto no KapMuG não consiste em norma geral a ser aplicado a qualquer espécie de processo judicial onde esteja sendo discutida uma questão repetitiva. Por isso mesmo, não encontra previsão no “Zivilprozessordnung”, ou ZPO, diploma normativo alemão equivalente ao Código de Processo Civil Brasileiro. Ao contrário, ele tem um objetivo específico, qual seja, disciplinar a proteção dos investidores no mercado de capitais. Trata-se de modelo de vigência temporária, segundo dispõe a própria norma que o instituiu94.

Similarmente aos objetivos perseguidos pelo “Musterverfahren” previsto na Lei de Justiça Administrativa da Alemanha, o instituto previsto no KapMuG pretende

92Artigo 19 [Restrição dos direitos fundamentais – Via judicial] (4) Toda pessoa, cujos direitos forem

violados pelo poder público, poderá recorrer à via judicial. Se não se justificar outra jurisdição, a via judicial será a dos tribunais ordinários. Mantém-se inalterado o artigo 10 §2, segunda frase.

93CABRAL, Antônio do Passo. O Novo Procedimento-Modelo (Musterverfahren) Alemão: Uma

alternativa às ações coletivas, Leituras Complementares de Processo Civil, 8. ed. rev. e ampl, Ed. Juspodivm, 2010, p. 34.

94Inicialmente, a vigência do KapMuG estava prevista apenas até 01 de novembro de 2010. No

entanto, em 24 de julho de 2010 foi publicada uma nova lei que prorrogou a validade do instituto até 31 de outubro de 2012.

estabelecer uma esfera de decisão coletiva de questões comuns em dissídios individuais, em demandas consideradas isomórficas, com eficácia ultra partes95.

O procedimento inicia-se com o pedido de instalação do incidente-padrão, perante o juízo individual, com a indicação do objeto que será submetido ao crivo do Poder Judiciário. São requisitos do pedido de instauração do procedimento-modelo a indicação dos pontos litigiosos, bem como os meios de prova que serão produzidos em juízo. Além disso, deve o requerente demonstrar que o pedido terá repercussão em processos diversos, interferindo assim na esfera individual de outros litígios já ajuizados.

O Parágrafo 1º, (3), da KapMuG, elenca uma série de situações em que o procedimento-modelo não poderá ser instaurado, em especial, situações em que a sua instauração possa atrasar indevidamente o processo ou quando a questão jurídica submetida não necessitar de tratamento coletivo. Tais situações serão apreciadas pelo juízo instaurador do procedimento-modelo.

De acordo com o Parágrafo 2º do KapMuG, o juízo de origem em que a questão está submetida deve anunciar publicamente o pedido de instauração do procedimento modelo, devendo constar do anúncio, dentre diversos requisitos, o objetivo do pedido para o estabelecimento de um procedimento-modelo. Publicado o anúncio, devem os processos que deram origem ao pedido ser interrompidos, conforme determinação do Parágrafo 3º do KapMuG.

Importante notar que é possível que questões fáticas e jurídicas sejam submetidas ao procedimento, desde que tenham relação com o objeto do “Musterverfahren”, que é a proteção de investidores no mercado de capitais.

Essa possibilidade de discussão quanto a questões fáticas e jurídicas, segundo Cabral96, possibilita a resolução parcial dos fundamentos da pretensão, com a cisão da atividade cognitiva em um momento coletivo e um individual.

95CABRAL, Antônio do Passo. O Novo Procedimento-Modelo (Musterverfahren) Alemão: Uma

alternativa às ações coletivas, Leituras Complementares de Processo Civil, 8. ed. rev. e ampl, Ed. Juspodivm, 2010, p. 34.

96CABRAL, Antônio do Passo. O Novo Procedimento-Modelo (Musterverfahren) Alemão: Uma

alternativa às ações coletivas, Leituras Complementares de Processo Civil, 8. ed. rev. e ampl, Ed. Juspodivm, 2010, p. 35.

Exatamente em razão disso, a despeito de o caso concreto poder ter peculiaridades que podem não ser típicas a outros casos, o “Musterverfahren” evita a dissociação entre fato e direito na decisão coletiva, sem, contudo, desprezar as particularidades de cada caso. Sendo assim, é possível que as peculiaridades dos casos concretos sejam observadas, a fim de aplicar a tese jurídica consolidada no procedimento-modelo de modo uniforme a todos os casos submetidos à sua tutela.

Após a efetivação do pedido, a admissibilidade do procedimento-modelo será decidida pelo juízo de origem, que provocará um tribunal de hierarquia superior (Oberverwaltungsgerichte” ou “Verwaltungsgerichtshöfe”) a decidir sobre as questões coletivas.

A condição de admissibilidade do procedimento, segundo o Parágrafo 4º, (1), 2, é a constatação de, pelo menos, 10 requerimentos do incidente-padrão, que versem sobre os mesmos fundamentos, dentro do período de quatro meses subsequentes à publicação a que se refere o Parágrafo 2º. Caso não seja observado o número mínimo referido, segundo o Parágrafo 4º, (4), deve o juízo rejeitar o requerimento e prosseguir no processo individual.

Interessante notar que a decisão que instaura o procedimento-modelo, segundo o Parágrafo 4º, (1), 2, é irrecorrível, vinculando inclusive a instância superior, que será o órgão jurisdicional responsável pelo julgamento de mérito do “Musterverfahren”. Aqui, há verdadeiro deslocamento de competência para o julgamento do caso, que passa a ser de competência do órgão jurisdicional de segunda instância. Ademais, instaurado um procedimento-modelo, não é possível a admissão de outro incidente com o mesmo objeto, de acordo com o Parágrafo 5º do KapMuG.

Seguindo o procedimento, determina o Parágrafo 7º do KapMug, que após o Tribunal competente para o julgamento do procedimento-modelo anunciar a existência do procedimento, todos os processos pendentes ou qualquer processo proposto antes da entrega do procedimento-modelo, em que a decisão depende das questões a serem decididas no âmbito do “Musterverfahren” devem ser suspensos, de ofício, ainda que neles não tenha havido requerimento de procedimento-modelo.

A decisão é irrecorrível, sendo facultado aos interessados o direito de serem ouvidos quanto à suspensão.

No que se refere às partes que compõem o procedimento-modelo, o Parágrafo 8º do KapMuG autoriza que o tribunal eleja representantes dos autores e dos réus para realizarem a interlocução com a Corte. A eleição dos denominados líderes parece realmente ser razoável, pois como se está diante de um procedimento de coletivização de questões comuns a vários processos individualizados, faz-se necessária a intermediação por meio de um porta-voz.

No entanto, aqueles que não foram eleitos como os representantes para dialogar com o Tribunal no âmbito do procedimento-modelo, podem, de acordo com o Parágrafo 12º do KapMuG, valer-se dos meios de defesa que estiverem disponíveis para praticar atos processuais necessários à sua defesa, desde que tais declarações não sejam contrárias àquelas que foram alegadas pelos líderes das partes.

Ressalta-se, ademais, que tanto as partes eleitas como representantes, como os interessados, de acordo com o Parágrafo 13º do KapMuG, podem pleitear a expansão do objeto do procedimento-modelo, desde que o objeto do pedido adicional tenha relação com o objeto principal do incidente e que o tribunal considere a questão relevante.

Por fim, o ponto mais importante quanto à sistemática do “Musterverfahren” diz respeito aos efeitos que podem advir da sentença proferida no âmbito do procedimento-modelo. Inicialmente, dispõe o Parágrafo 14 da KapMuG que, após audiência, o tribunal elaborará uma decisão modelo, sem mencionar o nome das partes, que deverá servir tanto ao procedimento-modelo quanto às partes interessadas, que devem ser informadas a publicação da decisão.

Segundo o que dispõe o Parágrafo 16 (1) da KapMuG, as decisões proferidas em sede de procedimento-modelo serão vinculantes em relação aos juízos de origem, ou seja, em relação aos juízos competentes para o julgamento de processos

suspensos em virtude da admissibilidade do “Musterverfahren”, ainda que as partes de tais processos não tenham se manifestado quando tiveram a oportunidade.

Como se vê, a característica que marca o instituto é a aptidão da decisão judicial ali proferida para surtir efeitos em relação a todos os processos que estejam pendentes de julgamento no momento de sua publicação, o que não autoriza a aplicação da mesma decisão a casos futuros. Segundo Viafore,

A decisão modelo proferida tem eficácia vinculante a todos os litigantes cujas demandas foram suspensas durante o procedimento, bem como vincula o juiz quando da definição da demanda individual, qualquer que seja seu resultado. No entanto, a vinculação é somente para os processos pendentes e não aos autores futuros, pois se exige a existência de litispendência dos processos individuais no momento da decisão do Tribunal97.

A limitação da vinculação da decisão aos casos pendentes gera certa desconfiança quanto à configuração da eficácia vinculante do precedente firmado no “Musterverfahren”, justamente por não haver a obrigação de que aquela decisão seja aplicada a processos que futuramente venham a ser ajuizados.

Seja como for, o fato é que as demandas já ajuizadas estarão submetidas ao que restou decidido no procedimento-modelo. Demandas futuras poderão, até, ter conclusões diversas, já que a possibilidade de “overruling” sempre se preserva, mesmo em sistemas que adotam tradicionalmente o “stare decisis”.