• Nenhum resultado encontrado

5.2 A experiência Alemã

5.2.1 Musterverfahren

O instituto processual do Musterverfahren, introduzido no direito alemão pelo artigo 93a da Lei da Justiça Administrativa (Verwaltungsggerichtsordnung – VwGO)88, é um dos exemplos encontrados no direito comparado, em que se inaugura a sistemática de julgamentos em casos repetitivos, com eficácia vinculante para os casos pendentes de julgamento, em um sistema jurídico de tradição do civil law.

Segundo Cassagne, Gottschau e Aberastury,

O estudo do art. 93 da Lei da Justiça Administrativa Alemã adquire um significado especial, pois, sem cair nas denominadas ações de classe (class actions) ou nos processos coletivos, trata, pragmaticamente, da maneira de levar adiante demandas de um sem-número de pessoas, que em definitivo, debatem acerca da legalidade de uma determinada conduta do Estado, com um só objetivo: descongestionar os tribunais sem desconsiderar o direito de ser ouvido89. (tradução livre)

88

Lei de Justiça Administrativa Alemã, § 93 a (Processo-modelo) (1) Se a legalidade de uma medida administrativa for questionada em mais de vinte processos, o tribunal poderá conduzir, primeiramente, um ou vários processos idôneos (Musterverfahern), suspendendo os demais. As partes deverão ser previamente ouvidas. Não cabe recurso contra essa resolução judicial.(2) Quando houver coisa julgada nos processos findos, o tribunal poderá, depois de ouvir as partes, decidir sobre os processos suspensos por resolução judicial, se, em sua opinião, por unanimidade, os casos não contiverem particularidades essenciais, fáticas ou jurídicas, ante os processos decididos, e se os fatos forem esclarecidos. O tribunal poderá introduzir as provas do processo-modelo (Musterverfahren) em outros processos, bem como, de acordo com sua discricionariedade, determinar novo interrogatório de testemunha ou realização de nova perícia pelo mesmo perito ou por outro. O tribunal poderá denegar proposições de provas relativas a fatos acerca dos quais já tenha havido produção de provas no processo-modelo, caso sua admissão não contribua, segundo sua livre convicção, à prova de novos fatos relevantes para a decisão e retarde a solução do litígio. A denegação poderá ser na própria decisão, de acordo com a primeira fase deste inciso. Contra a resolução judicial fundada na primeira frase deste inciso, as partes possuem o recurso judicial que seria admitido se o tribunal decidisse por sentença. As partes deverão ser informadas sobre esse recurso (SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da; BLANCKE, Hermann-Josef / SOMMERMANN, Karl-Peter. Código de Jurisdição Administrativa, (o modelo alemão), Verwaltungsgerichtsordnung (VwGO), Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2009.

89CASSAGNE, Juan Carlos; GOTTSCHAU, Evelyn Patrizia; ABERASTURY, Pedro. Ley de la Justicia Administrativa Alemana, Coord. Pedro Aberastury, AbeledoPerrot: Fundacion Konrad Adenauer,

Deve-se registrar, antes de efetuar qualquer tipo de comparação com o ordenamento jurídico brasileiro, que a análise do “Musterverfahren” deve partir do pressuposto de que o sistema judicial alemão organiza-se de forma diferente do sistema brasileiro. É que no sistema tedesco há uma esfera judicial própria para tratar sobre questões relacionadas com o direito administrativo. Trata-se de verdadeira jurisdição administrativa.

Com efeito, de acordo com Blanke90, a justiça administrativa alemã está organizada em três esferas. A primeira instância, no âmbito dos Länder (estados da República Federal da Alemanha), é composta pelos tribunais administrativos de primeira instância, denominados Verwaltungsgerichte. A segunda instância, ou instância intermediária, é composta pelos Superiores Tribunais Administrativos (estaduais), denominados “Oberverwaltungsgerichte” ou “Verwaltungsgerichtshöfe”. Por fim, na cúpula do sistema de jurisdição administrativa da Alemanha está o Supremo Tribunal Federal Administrativo, denominado Bundesverwaltungsgericht.

Sendo assim, o âmbito de aplicação do “Musterverfahren” não é propriamente o processo civil, mas sim uma espécie de processo administrativo jurisdicionalizado, já que o sistema alemão possui uma jurisdição administrativa própria, apartada do sistema judicial comum.

Analisando o instituto, segundo o supracitado dispositivo legal, caberá ao Tribunal Administrativo, ao identificar a existência de mais de 20 processos impugnando o mesmo ato administrativo, eleger algum deles, que será considerado o processo-modelo, suspendendo-se a tramitação dos demais.

A menção a um ou vários processos, revela o objetivo de se chegar a uma decisão que leve em consideração a maior quantidade possível de argumentos

2009, p. 47. No original “El estúdio del art. 93ª de la Ley de la Justicia Administrativa alemana adquiere um especial significado pues, si caer em las denominadas acciones de classe o em los processos colectivos, trata, pragmaticamente, la manera de llevar adelante demandas de um sin- número de personas, que em definitiva, debaten acerca de la legalidad de uma determinada conducta del Estado, com um solo objetivo: descongestionar a los tribunales sin desconocer el derecho a ser oído.”

90BLANKE, Herman-Josef. Organização e Competências da Justiça Administrativa Alemã. In: SILVA,

Ricardo Perlingeiro Mendes da; BLANKE, Herman-Josef; SOMMERMANN, Karl-Peter (Coord.). Código de Jurisdição Administrativa (O modelo Alemão), Renovar, 2009, p. 23.

jurídicos, assegurando a justiça da decisão. Trata-se de providência que guarda estrita relação com o resguardo dos princípios do contraditório e da ampla defesa e com a legitimação do julgamento a ser proferido.

De acordo com o artigo 93a(1), as partes interessadas deverão ser previamente ouvidas quanto à suspensão dos processos. Proferida a decisão de suspensão, não caberá recurso para impugná-la.

Após o julgamento definitivo do processo eleito como modelo, o Tribunal poderá tomar uma série de providências em relação aos processos suspensos, que estão previstas em partes diversas da Lei de Justiça Administrativa Alemã.

Cassagne, Gottschau e Aberastury91, ao analisarem as providências que podem ser adotadas pelo tribunal administrativo, asseveram que: 1) podem decidir por sentença, com audiência prévia dos interessados, quando o conteúdo do processo que se encontra suspenso apresenta diferenças essenciais do processo modelo. Aqui, há verdadeiro “distinguishing” entre o processo paradigma que deu ensejo ao julgamento do “Musterverfahren” e o processo suspenso com base no instituto; 2) podem decidir por sentença simplificada, que se utiliza em situações nas quais se requer a realização de uma audiência para a apresentação de provas; 3) podem decidir por resolução, quando se encontrarem presentes os seguintes requisitos: 3.1) sentença com trânsito em julgado em processo modelo; 3.2) nenhuma diferença essencial quanto aos fatos e o direito envolvidos no caso (inaplicabilidade do “distinguishing”; 3.3) a maioria dos juízes deve considerar que não existe a necessidade de fundamentar a decisão e de aclarar o seu conteúdo; 3.4) transferência da decisão do processo modelo para o caso; 3.5) produção de uma audiência com o objetivo de comunicar qual a variante do processo foi eleita.

Como se pode perceber, as decisões por resolução configuram a essência do “Musterverfahren”, que pretende, através de apenas um processo, e por consequência, através de uma única decisão, resolver uma grande quantidade de causas que envolvam o mesmo ato da administração pública.

91CASSAGNE, Juan Carlos; GOTTSCHAU, Evelyn Patrizia, ABERASTURY, Pedro. Ley de la Justicia Administrativa Alemana, Coord. Pedro Aberastury, AbeledoPerrot. Fundacion Konrad Adenauer,

Obviamente que a adoção do procedimento ora apresentado poderá gerar diversas consequências positivas para a administração da justiça, que ganhará em celeridade, perderá menos tempo com procedimentos burocráticos para dar andamento a múltiplos processos idênticos, prestigiará a segurança jurídica e também a isonomia do jurisdicionado perante a Justiça Administrativa alemã, que decidirá de modo uniforme para todos aqueles que se apresentam nas mesmas circunstâncias fáticas. Por fim, consagra o direito fundamental à tutela judicial efetiva, conforme disposto no artigo 19.492 da Lei Fundamental de Bonn.