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7.5. O incidente de resolução de demandas repetitivas

7.5.2 Procedimento

Dispõe o projeto do novo Código de Processo Civil, no artigo 988, que o incidente de resolução de demandas repetitivas será admissível quando, estando presente o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, houver efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito.

Verifica-se pois, que três são os requisitos para a instauração do incidente, quais sejam: o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica; a efetiva repetição de processos; e a controvérsia sobre questões unicamente de direito.

Com efeito, a existência de múltiplos processos que controvertem sobre as mesmas questões de direito pode acarretar a existência de decisões jurídicas divergentes, o que fatalmente quebraria o princípio da isonomia do jurisdicionado perante o Poder Judiciário, bem como atentaria contra a segurança jurídica, no aspecto da previsibilidade das condutas do Poder Judiciário.

Nesse sentido, não custa lembrar que, ao discutirmos sobre as eventuais vantagens da adoção de precedentes vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro, elegemos como principais argumentos justamente os princípios da isonomia e da segurança jurídica, aliados à concretização do princípio da duração razoável do processo. Andou bem, portanto, o legislador, ao estabelecer os citados requisitos.

Não se pode dizer o mesmo em relação à eleição do requisito da controvérsia em matéria exclusivamente de direito. É que uma técnica de julgamento de demandas repetitivas, nada mais é do que uma forma de tutelar direitos individuais homogêneos.

Essas novas perspectivas para as ações de grupo tem forte influência na reflexão da tutela dos direitos individuais homogêneos. A apresentação de um procedimento-modelo para a defesa desses direitos apresenta-se como uma alternativa, principalmente em ordenamentos jurídicos que não contemplam a possibilidade de utilização de processo coletivo para a defesa de direitos individuais homogêneos282.

E para tutelar direitos individuais homogêneos, é imprescindível a reflexão sobre os fatos que ensejaram a violação do direito. Segundo Zavascki,

Os elementos minimamente essenciais para a formação do núcleo de homogeneidade decorrem de causas relacionadas com a gênese dos direitos subjetivos. Trata-se de direitos originados da incidência de um mesmo conjunto normativo sobre uma situação fática idêntica ou assemelhada283.

O projeto, ao eleger como critério para a instauração do incidente a controvérsia sobre a mesma questão de direito, termina por ampliar de forma perigosa o âmbito de aplicação do incidente, pois, é possível que a mesma tese jurídica seja discutida em casos que não possuem o mesmo contexto fático, ou pelo menos um contexto fático similar, o que certamente dificultará a aplicação do instituto.

Melhor seria se o legislador tivesse restringido o âmbito de aplicação do incidente para a sua natural vocação, qual seja, a tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos, que, segundo a conceituação do Código de Defesa do Consumidor, são aqueles direitos decorrentes de origem comum.

Ao eleger o requisito da controvérsia em matéria de direito para a instauração do incidente, o projeto termina por confundir a técnica pura e simples de uniformização de jurisprudência com uma técnica de julgamento de demandas repetitivas.

A primeira, de fato, está vocacionada para uniformizar entendimentos em matéria de direito. Já a segunda, por outro lado, deve ter por objetivo, como dito, tutelar direitos individuais homogêneos, que dão origem a uma multiplicidade de processos potencialmente causadores de ofensa aos princípios da isonomia e da

282PINTO, Luis Filipe Marques Porto Sá. Técnicas de tratamento macromolecular dos litígios:

Tendência de coletivização da tutela processual civil, Revista de Processo, n. 185, 2013, p. 126.

283

ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: Tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 167.

segurança jurídica. No nosso entendimento, o projeto termina por fazer essa confusão.

Seja como for, prossegue o projeto estabelecendo, no § 1º do artigo 988, que o incidente poderá ser suscitado perante o Tribunal de Justiça ou perante o Tribunal Regional Federal, devendo o pedido, de acordo com o § 3º do mesmo artigo, ser dirigido ao presidente do tribunal pelo relator ou órgão colegiado, de ofício, pelas partes, Ministério Público, Defensoria Pública, pela pessoa jurídica de direito público ou por associação civil cuja finalidade institucional inclua a defesa do interesse ou direito objeto do incidente, por petição. Como se vê, a legitimidade para instauração do incidente é ampla, devido aos fortes efeitos vinculantes que advirão do seu julgamento, conforme se verá adiante.

Importante ressalva é feita pelo § 2º, no sentido de que o incidente somente poderá ser suscitado na pendência de qualquer causa de competência do tribunal. Portanto, não caberá a instauração do incidente nas hipóteses em que a competência do tribunal não estiver ainda estabelecida. Em outras palavras, processos que tramitem na primeira instância não poderão dar ensejo ao incidente, em que pese possam sofrer os efeitos da instauração.

Cumpre registrar que o fato de o incidente ser instaurado apenas no âmbito do tribunal, em fase recursal, ou em processos de competência originária, se for o caso, afasta o incidente de resolução de demandas repetitivas de institutos correlatos do direito comparado.

É que, conforme já visto em capítulo próprio, a legislação de países como a Alemanha, Portugal, Espanha e Inglaterra, permitem que as técnicas de julgamento de demandas repetitivas sejam instauradas já na primeira instância. A grande vantagem é que, nesses países, em nenhum momento se observará qualquer violação à segurança jurídica ou a isonomia, haja vista que as sentenças de primeira instância já seguirão os precedentes consolidados nos procedimentos especiais de tramitação e julgamento das demandas repetitivas.

Da forma como foi pensado o instituto entre nós, haverá um lapso temporal, que ocorrerá entre a prolação das sentenças de primeira instância e a instauração do incidente, em que os princípios da isonomia e da segurança jurídica correm sérios riscos de violação, haja vista que os magistrados estarão livres para proferir suas sentenças sem compromisso com essa ou aquela tese jurídica.

Melhor seria se o incidente de resolução de demandas repetitivas pudesse ser instaurado na primeira instância, e julgado por apenas um juiz, eleito como competente para o julgamento de acordo com regras próprias e prévias à instauração do incidente. Nesse caso, não haveria espaço para violação da isonomia e da segurança jurídica, já que todos os processos que versam sobre o mesmo tema teriam o mesmo tratamento desde o seu início.

Instaurado o incidente, de acordo com o § 8º, é incabível a instauração de outros incidentes, quando o objeto da discussão seja a mesma questão de direito material ou processual repetitiva.

Após a distribuição e juízo de admissibilidade, que se restringirá a constatar a existência dos requisitos previstos no caput do artigo 988, poderá o relator, de acordo com o art. 990, § 1º, I, suspender os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região, conforme o caso. A medida visa a evitar o desperdício de tempo e de dinheiro público, além de evitar o congestionamento do Poder Judiciário com a tramitação desses processos. Nesse sentido, os atos relativos a tais processos somente serão retomados quando já houver uma solução para a controvérsia de direito submetida ao trâmite do incidente. Importante regra advém do § 4º do mesmo artigo, pois autoriza que o interessado, por simples petição, requeira o prosseguimento do seu processo, caso demonstre que o seu caso discute questão jurídica distinta daquele que foi objeto do incidente. Por outro lado, poderá também solicitar a suspensão do andamento do seu processo, nos casos em que a matéria nele discutida estiver abrangida pelo incidente a ser julgado.

Caso seus argumentos sejam admitidos pelo juízo onde tramita o processo, ele retornará a tramitar normalmente, ou será suspenso, a depender do pedido formulado. Da decisão que indeferir o pedido de distinguishing ou o pedido de suspensão caberá agravo de instrumento.