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6 APRESENTAÇÃO DE RESULTADOS: A RECONSTRUÇÃO DO CASO

6.5 QUINTO PASSO: COMPARAÇÃO CONTRASTIVA ENTRE A HISTÓRIA DE

6.5.7 A Enfermidade e Morte de Olga

O ano de 1975 ainda traria acontecimentos marcantes para Noeli: sua irmã Olga é diagnosticada com uma doença hepática e é levada em estado grave para um centro médico em Porto Alegre a fim de obter alguma chance de cura ou, ao menos, de melhora. Entretanto, diante do mau prognóstico da enfermidade, Olga que tinha então quatorze anos, dois anos menos que Noeli, ficou hospitalizada para tratamento. Noeli recorda o dia em que Olga foi conduzida por uma ambulância de sua cidade até a Capital:

[...] eles foram parar na santa casa de cinco da manha né (.) daí ligaram pro colégio e as freiras me trouxeram que eu tava no colégio de freiras né (.) ai chegamo ali ela tava em coma (.) ai a gente ficou o dia todo ali com ela daí (.) até que eles levaram ela pra UTI (.) daí os médicos disseram que não adiantava (.) que nós tinha que ir pra casa (P. 43, L. 23- 26).

Um aspecto a ser destacado é que os pais de Noeli não se opuseram às indicações da equipe médica para que Olga recebesse o atendimento dentro dos padrões do centro médico e dos preceitos da medicina alopática, pois haveria a hipótese de que Zafiro e Cenira ficassem impactados com o diagnóstico e preferissem dar um encaminhamento diferente para os cuidados

da filha. Um caminho seria o da via espiritualista ou outros tratamentos alternativos que poderiam estar disponíveis em Santo Antônio do Palma mesmo, de forma que eles pudessem ficar junto à Olga.

Tendo em vista que seus pais, após fazerem os procedimentos de internação de Olga, retornaram para Santo Antônio do Palma, o acompanhamento e os cuidados de Olga no hospital ficaram em grande parte a cargo de Noeli. O relacionamento que Noeli tinha com Olga desde a infãncia era muito próximo como destaca a entrevistada: “porque nós duas era muito unida né (.) porque antes d’eu tinha o Jairo (.) depois eu depois era eu e ela e o Arno (.) então nós dormia junto nós saia junto nos ia pra escola junto, nós tava sempre junto” (P. 43, L. 2- 5). Uma hipótese para que isto acontecesse talvez fosse a pouca diferença de idade entre elas, o que proporcionava que suas fases de desenvolvimento e, consequentemente, seus interesses fossem muito parecidos. Conforme Papalia e Feldman (2013), o número de irmãos numa família e o espaçamento entre eles, a ordem de nascimento eo gênero geralmente determinam papeis e relacionamentos.

Ainda há que se considerar outro fator predisponente para essa associação entre as duas irmãs que residia na hipótese de que Noeli, ao perceber que Olga “sempre foi amarelinha,

pálida”, tivesse algum problema e, por isso, necessitasse da sua proteção. Quando Noeli refere que Olga “não tinha vontade de fazer nada” e que, enquanto “todo mundo trabalhava”, a irmã “ficava só brincando” percebe-se um sentido latente na fala de Noeli, o qual indica que ela estaria

desculpando-a por ser “preguiçozinha”.

Olga permaneceu hospitalizada durante quase dois anos até que em 1977, o quadro de saúde de Olga agravou-se e somente um transplante poderia ser recomendado ao seu caso. Dessa forma, Cenira doou o fígado para sua filha e a cirurgia foi efetivada com êxito, constituindo-se no primeiro transplante deste tipo realizado em Porto Alegre e cuja notícia repercutiu em vários meios de comunicação.

Após todo o procedimento do transplante, Olga manteve-se restrita ao ambiente hospitalar pelo período de mais dois anos em constante tratamento, não sendo conhecida praticamente nenhuma informação sobre a presença de Zafiro e Cenira e a participação dos outros irmãos em visitas freqüentes para Olga. O que se sabe é que Noeli esteve envolvida regularmente com a internação de Olga, conforme ela narra: “os psicólogos diziam que eu era a mãe dela (.) eu era o pai dela (.) eu era amiga dela (.) eu era tudo dela e eu que cuidava dela” (P. 44, L. 29- 30).

O dado seguinte, datado de 1979 trata da morte de Olga por ter tido seu estado clínico fortemente debilitado em virtude da rejeição do fígado transplantado. Nesta etapa da entrevista, Noeli faz uso de uma narrativa com longos relatos permeados por muitos detalhes (alguns termos foram propositalmente omitidos na reprodução deste trecho em razão de serem considerados

‘fortes’ como descritores de seu estado físico de Olga no exato momento de sua morte):

[...] quando cheguei lá no quarto (.) ela não tava no quarto né (.) cheguei as crianças disseram que ela tava lá na pediatria que (.) eu cheguei as crianças tavam tudo apavorada que a Olga tinha ido=tinha passado mal tinha ido pra UTI (.) daí eu cheguei na UTI que era no mesmo corredor ali (.) e o médico disse assim (.) a gente sente muito mas ela faleceu (.) ela tinha 18 anos e meio (.) num domingo de tarde que era feriado (.) todos os meus amigos (.) todas as pessoas que eu conhecia ninguém tava aqui só eu (.) eu disse não=não fiquei naquilo assim sabe (.) fiquei em choque né daí quando eu me dei por conta eu cai (.) daí eles me levaram pra uma sala lá me deram remédio mas não tinha ninguém comigo (P. 45, L. 26 – P. 46, L.23).

A reação de Noeli em face desta vivência poderia ter sido de permanecer em choque e, com isso, manter-se inerte, sem possibilidades de tomar as providências necessárias. A hipótese que se configurou como a mais evidente foi a de que Noeli precisou de alguns instantes para se recuperar do impacto e depois começasse a agir.

Ela procurou obter ajuda, pois precisava realizar os procedimentos práticos e formais que precisam ser feitos depois que uma pessoa morre, no caso dela, desde avisar os pais para que viessem do interior, providenciar quem fosse buscá-los até resolver tudo sobre o sepultamento, incluindo o translado do corpo para Santo Antônio do Palma:

[...] era feriado ai eu fui na casa do Carlos (.) ele não tava não tinha telefone pra ligar pro Carlos (.) eu tinha que fazer alguma coisa (.) o que que eu vou fazer? (.) eu não sabia o que fazer (.) mas o pai e a mae não sabiam (.) eu não sabia se o recado tinha chegado lá (.) ai nessas alturas eu nem pensei mais nada né daí eu sai lá na frente da santa casa e peguei um táxi (.) ai entrei no táxi e eu contei pro taxista o que tinha acontecido né (.) onde é que tu quer ir? eu quero ir na Fernando Machado eu vou lá no nosso amigo lá do salão o Igor //E: Uh-hum// [...] quando eu cheguei na frente do prédio ele tava na frente daí eu chamei ele e ele veio (.) que tá fazendo aqui Noeli? (.) eu disse assim a Olga acabou de falecer (.) eu disse Igor tu pode me levar lá no Carlos? eu tô sem dinheiro (.) ele disse assim ah eu tô sem gasolina virou as costas e entrou de volta pra dentro do prédio (P. 46, L. 26 – P. 47, L.2).

A partir deste trecho fica claro que o impacto e sofrimento causados pela morte de Olga colocaram mais uma vez à prova a capacidade de Noeli de enfrentar as adversidades que foram surgindo em sua vida. Aqui se pode verificar também um traço presente no seu interesse de

apresentação que é o de se utilizar de relatos bem detalhados quando ela narra situações difíceis e delicadas a fim de auferir maior peso a esses eventos e, com isso, realçar a sua resiliência.

Novamente ela faz menção a estar “sozinha” nestes momentos. Aqui a solidão, enquanto

ausência de pessoas de seu conhecimento, parentesco ou amizade parece ter tido muito mais um

efeito emocional do que àquela “solidão” que ela referia quando realizava o trabalho pesado na

roça, que parecia ter mais uma conotação de falta de ajuda física, força e suporte material.

O tema ‘morte’ já tinha sido mencionado sucintamente por Noeli na etapa da entrevista em que ela conta sobre o que se lembra da morte de seu avô, principalmente quando descreve o ambiente, os objetos e os personagens envolvidos na cena:

[...] me lembro quando meu vô morreu (.) eu tinha 4 anos (.) eu me lembro daí são flashes (.) não me lembro de tudo que aconteceu mas me lembro das coisas que me marcaram né (.) quando meu vô morreu ele tava num-(.) a casa da minha vó era de madeira e tinha as frestas né e eu fiquei espiando assim (.) eu vi aquela agonia toda sabe (.) botando uma vela sabe (.) ali eu lembro eu deitada na cama da vó e a vó tava chorando [...]//E: Uh-hum//ai eu me lembro desta parte da vó chorando e eu abraçada nela e dai (.) eles estavam fazendo aquele caixão de madeira (.) mas não me lembro nada de velar o corpo que faziam em casa (.) nada (.) e eu não sabia que aquilo era morte também né (P. 8, L. 21- 39).

Estes dois trechos espelham duas formas diferentes com que a morte e o luto são tratados nas sociedades modernas. Uma em que o processo final de morrer se dá em casa, com o amparo íntimo e dos amigos como no caso do avô de Noeli; e o outro, como no caso de Olga, que ocorrem em ambientes impessoais como hospitais, que apesar de proverem o melhor cuidado médico, o contato do paciente com os familiares é, muitas vezes, considerado uma inconveniência para os regimes de tratamento destes locais (GIDDENS, 2012).

Existe uma lacuna na narrativa de Noeli em relação ao período que se seguiu ao falecimento de Olga no que tange à forma como ela viveu esse luto. De qualquer sorte, uma das hipóteses que seria a de que Noeli pudesse entrar em um estado de grande tristeza e até mesmo depressivo não se confirmou, tendo em vista que o seu discurso se orienta na direção de ter dado prosseguimento de forma regular aos seus afazeres tanto no trabalho como em sua vida pessoal.