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6 APRESENTAÇÃO DE RESULTADOS: A RECONSTRUÇÃO DO CASO

6.5 QUINTO PASSO: COMPARAÇÃO CONTRASTIVA ENTRE A HISTÓRIA DE

6.5.2 O Nascimento de Noeli

Noeli, a personagem principal e única narradora de sua história, nasceu no ano de 1958, em uma zona agrícola de um pequeno município do interior do Rio Grande do Sul, Santo Antônio do Palma. Filha de Zafiro e Cenira, ela é a quarta filha de uma família de sete filhos, sendo cinco mulheres e dois homens. Por ser um grupo pequeno e por seus membros terem grande contato face a face, a família é o agente mais importante para o processo de aquisição das habilidades básicas requeridas para agir na sociedade durante a infância, sendo adequada para fornecer o tipo de atenção íntima e cuidadosa para a socialização primária. Além do mais, a família em que a pessoa nasce exerce uma influência relativamente duradoura (BRYM et al., 2010).

Noeli não fornece muitas informações sobre sua família expandida, entretanto foi informado que os avós paternos, alguns tios e primos moravam na mesma localidade, e os avós maternos em um município próximo. Não ficam claras também as circunstâncias em que os pais de Noeli se conheceram, nem mesmo se encontraram-se inicialmente em Santo Antônio do Palma ou em outra cidade, tendo ido posteriormente para lá. É possível ainda que seus avós ou bisavós tenham vindo de outros países, haja vista a menção de Noeli sobre sua ancestralidade tanto alemã quanto italiana.

No caso de seus bisavós ou mesmo avós terem vindo de outros países é plausível que possam ter feito parte da corrente migratória que houve de alguns países da Europa, especialmente Alemanha e Itália, a qual foi estimulada, nos anos de 1875 e 1914, pelo projeto geopolítico do Governo do Rio Grande do Sul, visando fomentar a produção agrícola e também

de preencher os chamados “vazios demográficos” do estado, e com isso, reforçando as fronteiras

e a posse do território ameaçada pelos países vizinhos (FAUSTO, 2000). Eles eram considerados trabalhadores livres e chegavam ao Brasil com o sonho de, com seu trabalho, possuírem terras no país, sonho este praticamente impensável na Europa de então.

Na hipótese de seus avós ou bisavós terem imigrado para o Brasil, é possível que tenham recebido lote de terra do Governo para cultivo e, portanto, terem se fixado nesta região. Desta forma, aumentaria a possibilidade de Zafiro e Cenira terem se conhecido em Santo Antônio do Palma, em razão de eles estarem dando continuidade às atividades de seus pais nestas propriedades rurais familiares, criando gado e desenvolvendo a lavoura de milho e trigo.

Brandão (1993) afirma que as condições de acesso à posse futura e ao uso atual da terra são igualmente determinantes da localidade de residência e trabalho de uma família recém

formada. “A patri ou matri localidade depende da existência de melhores condições de produção

oferecidas pela fazenda dos pais de um dos cônjuges, quando ambos são proprietários. Quando só um deles possui terras, dirige-se para lá ou então é neolocal” (BRANDÃO, 1993, p. 122).

Quanto ao relacionamento com suas famílias de origem, não se sabe se Zafiro e Cenira eram próximos aos parentes ou, em oposição, não mantinham relacionamento com eles, mas Noeli evidenciou a forte ligação que tinha com a avó paterna: “[...] a vó tava chorando (1) eu lembro que eu tava deitada com ela (.) porque eu era muito da minha vó né (.) a minha vó era tudo que eu tinha na vida né (.) eu chegava a tirar as coisas da minha mãe para dar pra ela né.” (P. 8, L. 25-28).

Da mesma forma, há outras menções a respeito da presença de tios e primos no cotidiano de Noeli, sugerindo que por menor que fosse a interação entre eles, ao menos da família de origem de Zafiro havia sim o contato com a família nuclear de Noeli: “[...] aí eu passei pela casa da minha vó e a minha tia pra variar tinha 20 anos né (.) ela perguntou onde que eu ia (.) eu disse que ia na bodega e ela disse assim péra aí que eu vou contigo [...].” (P. 9, L. 14-15).

“[...] perguntei pra ele (.) pai posso ir lá na tia Maria (.) daí ele disse pode (.) que não dava

pra gente trabalhar quando tava chovendo (.) ai eu fui lá na tia e combinei tudo com a minha prima né [...].” (P. 15, L. 26-27).

[...] ai quando foi de tardezinha chegou o meu tio (.) que morava na cidade (.) o irmão dele e ficaram tomando chimarrão na frente de casaE: //Uh-hum// a mãe disse vai lá cumprimentar o teu tio (.) porque tu sabe como o teu pai é (.) ele é igualzinho a ele (.) eles são irmãos [...] passei pelo meio deles no terreno né (.) ai o tio disse guria como tu tá grande (.) boa tarde (1) tinha que dizer benção (.) não era boa tarde (.) fui lá botei uma escada o pai não deixava nós tirar pinha do pinheiro que não tava madura ainda (.) botei uma escada subi no topo do pé de pinheiro e comecei a derrubar aquelas pinhas [...] E: //Uh-hum//aí veio ele e o tio aí o tio disse assim ô macaca tu vai cair daí macaca (P. 13, L. 29-40).

Sabe-se que o nascimento de Noeli sucedeu em menos de dois anos o nascimento de seu irmão Jairo e, também apenas dois anos após Noeli ter nascido, Cenira deu à luz à Olga. A proximidade dos nascimentos dos filhos (as duas irmãs que nasceram antes de Jairo também tiveram cerca de dois anos de intervalo entre elas) pode ser uma possível causa para que Zafiro e Cenira ficassem preocupados com os recursos necessários para o sustento de toda a família.

Neste sentido, considerando-se que na época do nascimento de Noeli, as condições e recursos financeiros fossem limitados e, sendo eles proprietários de pequena propriedade rural, seria razoável pensar que eles teriam que tirar dali o provento para a sua subsistência. Pode-se considerar ainda que Zafiro contasse somente com a força de trabalho dos próprios filhos para a lida na roça, mesmo sendo estes ainda muito pequenos, principalmente porque, para a contratação de empregados, seriam necessários mais recursos financeiros, haja vista que a criação de nova legislação trabalhista como a que foi sancionada pelo Presidente João Goulart, em 1962, que instituiu o 13º salário, onerariaainda mais o orçamento de Zafiro encargos e despesas.

Cenira que era responsável pelas tarefas domésticas e pelo cuidado dos filhos, também participava intensivamente do trabalho na lavoura e, possivelmente para complementar a renda da família, fazia outras atividades como costurar e confeccionar vassouras de palha. Noeli se refere à capacidade de trabalho de sua mãe, demonstrando orgulho e admiração pela sua força, por tudo que ela fez pela família, inclusive por achar que possui muita semelhança com Cenira neste sentido:

[...] aquela ali foi uma (.) foi heroína fazer o que ela fez ela trabalhava assim ó de sol a sol pra criar aqueles filhos [...] a mãe tomava café na roça ela amanhecia na roça ela escurecia na roça ela costurava (1) é eu acho que eu sou filha da mãe mesmo sabe ((rindo)) (.) ela costurava ela fazia vassoura pra fora (.) aquelas vassouras de palha E: //Uh-hum// fazia bombacha (.) aquelas toda plissadas assim favo de mel que fazia e o pai ficava em cima dela ela costurando as bombachas dele e ele dando ordem das bombacha e a mãe tava s:::empre trabalhando tava sempre=sempre= sempre=sempre (P. 48, L. 21- 29).

Não se tem informação se Cenira e Zafiro pediram ajuda para familiares ou outras pessoas de suas relações para que auxiliassem no cuidado dos sete filhos, ou mesmo que tenham oferecido algum deles para adoção por não conseguirem dar conta de criar e dar sustento a todos. Outra possibilidade que poderia ser aventada é de que as condições financeiras de Zafiro e Cenira, à época do nascimento de Noeli, fossem favoráveis e até abundantes. Dessa forma, Zafiro poderia contar com funcionários para as tarefas da roça e abrir mão da ajuda dos filhos para esta

finalidade, deixando-os liberados para envolverem-se somente com as atividades típicas da infância.