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6 APRESENTAÇÃO DE RESULTADOS: A RECONSTRUÇÃO DO CASO

6.5 QUINTO PASSO: COMPARAÇÃO CONTRASTIVA ENTRE A HISTÓRIA DE

6.5.5 A Mudança para a Capital

O que sucedeu aos acontecimentos sobre os castigos corporais e insultos verbais narrados por Noeli foi efetivamente a sua saída da casa dos pais e sua ida para Porto Alegre. Era 1975 e Noeli tinha dezesseis anos quando articulou o início de um novo período de vida em que ela, distanciada de sua família nuclear, passaria a estudar e trabalhar para prover o seu sustento, assumindo integralmente a sua autonomia. Além da motivação de querer fazer cessar a situação de humilhação oriunda dos xingamentos e da punição física, ao decidir ir embora de casa e até de Santo Antônio do Palma, Noeli estaria também cumprindo o desejo de trilhar um caminho diferente dàquele que ela observava ser o habitual das jovens que moravam na sua localidade. Quando Zafiro perguntou a razão de sua decisão, ela respondeu:

[...] ele disse assim (.) mas o que que tu vai fazer lá? (.) tu não tem tudo o que tu quer em casa? (.) tenho mas não é isso que eu quero (.) eu não quero casar me encher de filho como todas gurias fazem (.) eu quero estudar eu quero arrumar um emprego eu quero trabalhar (P. 15, L. 32- 35).

O estabelecimento da identidade como uma concepção coerente do self constituída de crenças, valores e metas com as quais a pessoa está fortemente comprometida é mais um dos processos que se inicia na adolescência. Para proceder a transição entre a dependência dos pais e a dependência de si mesmo, o adolescente necessita desenvolver uma percepção estável de si e um dos maiores desafios deste estágio da vida é a identidade versus a confusão de papeis (MORRIS; MAISTO, 2004). Os jovens precisam integrar diversas autoimagens – de filho, de amigo, de estudante, de líder, de seguidor, de homem, de mulher - em uma única imagem e escolher uma carreira e um estilo de vida que tenha significado para eles (DAVIDOFF, 2001).

Noeli conta na etapa bem inicial da narrativa principal como foi a sua viagem de ida para a Capital, evidenciando sua intenção de apresentar-se como uma pessoa ingênua que não tinha a dimensão dos desafios aos quais estava se lançando quando optou pelo afastamento geográfico de sua família. Com este interesse de apresentação, ela estaria disposta a enaltecer a sua capacidade de enfrentar situações desconhecidas, fazendo da mesma, posteriormente, um motivo pelo qual orgulhar-se de si mesma.

[...] daí eu vim pra Porto Alegre e eu não conhecia a cidade eu não sabia com 16 anos o que era luz elétrica (.) eu não conhecia nada da cidade (.) eu nunca tinha saído do interior até que quando eu vim (.) é que eu vim de noite de lá de ônibus de noite (1) [...] quando eu tava chegando perto de Lajeado ali que começou a acender as luzes da cidade né (.) eu disse assim meu deus quanta estrela que desceu pra terra né (.) porque era as luzes da cidade (1) pra mim era as estrelas (.) [...] aquilo ali pra mim parecia (.) eu digo vai ter festa né (.) era um povaréu que eu não sabia de onde é que tinha saído ((agora tu imagina)) quando ((eu cheguei na capital)) um monte de gente (P. 1, L. 26- 34).

Imediatamente após sua chegada à Porto Alegre, Noeli se dirige para o internato que foi o

colégio no qual ela ficaria estudando e sendo, de alguma maneira, “assistida” pelas freiras

moradoras e responsáveis pelo colégio. Poucos detalhes estão disponíveis sobre o acerto que ela realizou com as freiras sobre a sua residência lá, mas o que se sabe é que em apenas dois ou três dias Noeli já estava trabalhando como empregada doméstica numa família constituída por um casal e dois filhos pequenos. Sobre o breve período em que ela permaneceu neste emprego, Noeli faz um relato de como era o trabalho que ela realizava, mas principalmente, faz referência sobre algo que a impressionou muito:

[...] aí eu botei a mesa meio-dia e botei cinco pratos na mesa (.) aí ela disse assim (2) são quatro pratos tu não contou as pessoas? (2) é cinco (1) não são quatro pessoas conta (1) quantas pessoas tem na casa? são cinco aí ela disse (.) não eu meu marido meu filho e a minha filha são quatro (1) empregada aqui não come na mesa (1) empregada come lá na

mesa da rua (2) ((ah aí já deu né)) (.) cachorro que comia na rua né (.) gente não come na rua (.) lá em casa nós também tinha peão ((os peão comia na mesa)) mas aqui não (.) aqui a empregada comia ou na cozinha mas como lá era casa tinha uma mesa lá na rua tinha que ser lá na rua (.) aí fiquei cinco dias na casa da mulher assim só chorando né (2) aí queria ir embora (P. 16, L. 31- 39).

É possível que esta diferença de tratamento dada aos serviçais somada à falta de acolhimento da patroa tenha fragilizado Noeli que já estava especialmente sensível pelo estresse causado por sua grande mudança de vida. Ainda que os estressores possam variar de pessoa para pessoa, ele é um fator inerente à vida e refere-se à qualquer exigência do ambiente que cria um estado de tensão ou ameaça e que requeira uma adaptação por parte do indivíduo (MORRIS; MAISTO, 2004). Entretanto não se pode excluir a hipótese de que Noeli não estivesse ainda tão preparada quanto ela pensou para implementar uma transformação tão grande em seu cotidiano e na sua forma de viver como um todo.

Noeli resolve então sair, ou melhor, resolve fugir do emprego, pois enquanto a patroa e sua família ainda dormiam, ela arrumou seus pertences e foi embora. Mesmo sem saber que tipo de condução pegar ou mesmo sem pedir para que alguém a ajudasse, ela foi caminhando, seguindo apenas o seu senso de orientação espacial e um ponto de referência que era a torre da igreja do colégio, e conseguiu chegar ao internato, deflagrando o desconforto que estava sentindo e dando vazão a toda a sua dificuldade de adaptação:

[...] cheguei lá no colégio chorei chorei chorei (.) ai disse pra Irmã (.) me dá meu dinheiro porque o dinheiro da passagem que eu tinha trazido da ida e a volta né (.) ela ficou com o dinheiro né pra guardar porque as outras guria roubavam e eu peguei e queria queria ir embora (.) ai ela disse assim não tu não vai tu vai te acostumar porque não sei o que (.) não mas eu não quero mais ficar aqui eu não quero mais ficar nâ::o (.) mas a gente vai achar uma outra casa pra ti trabalhar (.) melhor não sei o que (.) me engambelou o dia todo e não deixou eu ir disse que não ia me dar o dinheiro que era pra mim me acalmar (1) tá (2) daí ch-deitei de noite chorei a no::ite to:da de desespero que eu queria ir embora que eu queria ir embora que eu queria ir embora né (P. 17, L. 8- 16).

No dia seguinte, Noeli foi surpreendida com a chegada no colégio de um de seus irmãos que estava voltando de São Paulo, cidade para onde ele havia se mudado. Não ficam claras as circunstâncias nem as razões pelas quais o irmão comparece no internato, mas ele questiona Noeli, ao mesmo tempo em que lhe faz uma cobrança sobre como ela havia deixado os pais sozinhos, pois possivelmente, na visão dele, era razoável (e até esperado) que as filhas mulheres ficassem junto de seus pais, zelando por eles. Em várias sociedades, as relações entre homens e mulheres são socialmente determinadas, bem como o que é considerado próprio do masculino e

do feminino, sendo comum a ideia de que há a obrigação das mulheres em acatarem a vontade dos homens e a ênfase na importância de manter as mullheres em casa (STEARNS, 2007).

Noeli responde ao irmão dizendo que fez o mesmo que ele já havia feito, dando a entender que não se sentia minimamente culpada por isso. De qualquer maneira, como naquele momento Noeli estava com vontade de voltar para casa, assim ela o fez e retornou com o irmão para Santo Antônio do Palma. Em sua fala, a entrevistada quer deixar claro que procedeu desta forma devido ao seu interesse e desejo e não porque estivesse recebendo e acatando qualquer tipo de reprimenda do irmão pelo seu ato de sair de casa.

Logo que chega a Santo Antônio do Palma, apesar de ter ficado ausente menos de um mês, Noeli descreve o local como um cenário “seco” e “parecido com um deserto”, então manifesta a certeza de que não quer mais viver lá. Portanto, fica apenas oito dias enquanto espera seus pais voltarem de Santa Catarina e, após, retorna para Porto Alegre, desta vez disposta a superar os obstáculos da adaptação e permanecer, como se a sua primeira ida para a Capital tivesse sido um ensaio semelhante àquela pessoa que primeiro coloca apenas o pé na água do mar para sentir a temperatura para só depois mergulhar de corpo inteiro.