• Nenhum resultado encontrado

6 APRESENTAÇÃO DE RESULTADOS: A RECONSTRUÇÃO DO CASO

6.5 QUINTO PASSO: COMPARAÇÃO CONTRASTIVA ENTRE A HISTÓRIA DE

6.5.4 A Punição Através dos Castigos Corporais

Notifica-se então que na interpretação de Noeli, ela passa a infância e a adolescência envolvida na dinâmica de trabalho junto com os pais e os irmãos. E um aspecto que merece ser destacado é o mecanismo que Zafiro utiliza durante este período para impor a disciplina que ele entende como adequada para seus filhos que é a punição.

Em relação à Noeli, ela refere um primeiro episódio em que sofreu uma punição que foi quando ela, aos cinco anos de idade, foi ao armazém fazer compras encomendadas por seu pai e,

acompanhada por uma tia que lhe induziu a gastar todo o dinheiro, acabou voltando tarde para casa por ter ficado observando o movimento das máquinas na construção de uma importante rodovia na região. A punição que lhe foi imposta por Zafiro foi uma surra a qual Noeli narra da seguinte forma:

[...] o pai disse assim onde é que eu te mandei? (.) na bodega (.) e onde é que tu tava até agora? (.) cadê o dinheiro (.) ai eu fui lá e peguei e trouxe tudo pra ele assim emboladinho ai ele olhou a capa [...] ai ele tirou (.) tinha ai quando ele batia ele batia bem né (.) ele não brincava de bater (.) ele batia (.) tinha aquelas cordas de couro trançado que botava na guampa do boi pra segurar quando eles lavravam [...] (1) ele deu na minha perna com aquilo com aquele couro trançado chegou a cortar as perna né (.) aí eu disse pra ele péra aí péra aí (.) chorei chorei (P. 9, L. 34 – P. 10- L. 2).

Com este trecho é válido observar que a forma pela qual Zafiro optou por aplicar a punição foi através do castigo corporal que se caracteriza pelo uso da força física com intenção de causar dor de modo a corrigir ou controlar algum comportamento (PAPALIA; FELDMAN, 2013). Há outras maneiras de atribuição de uma sanção como o isolamento ou a negação de privilégios que também se caracterizam como punição, mas com outro alcance e consequências, principalmente nas crianças. Estímulos punitivos que dependem de reações humanas desagradáveis como ridicularização, sarcasmo, desaprovação e franzimento do cenho podem ser considerados sociais. Já o castigo corporal visando incutir respeito pela autoridade dos pais, além de ser potencialmente causador de danos ou sequelas físicas, ainda pode fazer com que as crianças que são vítimas desta prática não consigam internalizar mensagens morais ou venham a desenvolver comportamentos agressivos e antissociais (DAVIDOFF, 2001).

Após a aplicação do castigo corporal, as reações de Noeli poderiam se dirigir na direção da culpa e posterior obediência em relação à Zafiro; ou em sentido oposto, que seria o da revolta e rebeldia causadas por sensação de injustiça e posterior desafio à autoridade dele. No entanto, Noeli parece ter optado pelo caminho da ausência de mágoa ou rancor, querendo interagir com seu pai minutos após ter apanhado, querendo contar-lhe como foi sua experiência de ver as máquinas e os operários envolvidos com a construção da estrada.

Os castigos corporais são novamente citados por Noeli quando ela dá a entender para a entrevistadora que as exigências de Zafiro em relação ao seu rendimento no trabalho na lavoura eram altas e que, na visão dela, ela estava fazendo o seu máximo, inclusive chegando ao limite de sua capacidade física ao empreitar inúmeras tarefas que exigiam força muscular e resistência para conseguir manter um ritmo intenso de produção durante muitas horas do dia. Conforme

explicitado por Noeli, aquela não era a mesma concepção de Zafiro que, além de lhe impingir castigo corporal, começa então a lhe proferir insultos verbais quando ela tinha doze para treze anos:

[...] quando eu ia na frente do meu irmão eu era obrigada a ir lavrando (.) senão ele me batia [...] daí uma vez eu tava lavrando de manhã com meu irmão e o pai de manhã cedo e tinha sereno [...] e eu nós tava lavrando na frente de casa assim e tinha muita pedra e muito toco e eu não conseguia alcançar o meu irmão (.) mas eu tava trabalhando né //E: Uh-hum//eu não tava brincando e o pai chegou lá tirou aquela açoitadeira e me deu=deu que meio assim que cortou a minhas perna [...] aquilo não passou despercebido aquilo assim (.) eu pensava assim (.) pô eu tô trabalhando eu não tenho força pra fazer isso e me chamava de morta de fome que eu só tava ali pra comer (P. 10, L. 35 – P. 11- L. 8).

Não se tem informações sobre eventos geradores ou razões pelas quais Zafiro, além de impor os castigos corporais, passou também a fazer uso das agressões verbais contra Noeli. Independente de quais teriam sido as motivações de Zafiro para tratar Noeli desta maneira, algumas hipóteses devem ser examinadas. A primeira delas poderia estar baseada no fato de Zafiro estar mais preocupado com os recursos necessários para o sustento de toda a família que neste período já estava mais numerosa, constituída agora por sete filhos com o nascimento da filha caçula Berenice em 1970, além dos outros dois filhos nascidos depois de Noeli, Olga em 1960 e Arno em 1967. A pressão por fazer o cultivo da terra ter mais produtividade e, consequentemente, gerar mais recursos pode ter propiciado este tipo de comportamento em Zafiro.

Outra hipótese que se apresenta com razoável consistência é a de que ele, prevendo algum tipo de negligência ou transgressão às suas ordens por parte dos filhos que estariam ficando mais velhos, mais especificamente de Noeli, quisesse se antecipar, promovendo com estes insultos, um ambiente de temeridade para que eles nem sequer pensassem em qualquer insurgência contra sua autoridade. Os adolescentes, ao atingirem o nível operacional – formal de pensamento em termos de desenvolvimento cognitivo são capazes de raciocinar de maneira abstrata e, com isso, são capazes de especular a respeito de novas alternativas, entre elas a possibilidade de colocar em xeque a parentalidade autoritária, que enfatiza o controle e a obediência sem questionamentos (MORRIS; MAISTO, 2004).

O que se sabe é que por Noeli estar com quase treze anos já teria entrado na fase na qual ocorre o terceiro estágio do desenvolvimento moral do ser humano, aquele em que a crença de que todos devem ser tratados da mesma maneira é substituída pelo ideal de equidade que dá a

noção de que devem ser levadas em consideração as circunstâncias específicas de cada situação (PAPALIA; FELDMAN, 2013). Desta forma, ela sentia-se apta a requisitar um tratamento mais condizente com a situação em que se encontrava, ou seja, se ela estava se esforçando nas tarefas, como poderia estar sendo chamada de “preguiçosa”?

Um aspecto que não pode ser menosprezado é que Noeli, sendo alvo de tais acusações, pudesse ver afetada a sua autoestima, a qual possui como um importante determinante, a visão que um indivíduo tem de sua capacidade para o trabalho produtivo. Ao aprender as habilidades valorizadas em sua sociedade, a pessoa ingressa num estágio de desenvolvimento psicossocial baseado na produtividade versus inferioridade, cuja resolução bem sucedidade desta etapa é a competência. Portanto, a competência é a visão que se tem de si mesmo como capaz de dominar determinadas habilidades e realizar tarefas e, conforme Papalia e Feldman (2013), os pais exercem grande influência nas crenças de uma criança/jovem sobre competência.

Existe uma lacuna na narrativa de Noeli em relação à existência de colegas ou amigos durante este período do final da infância e primeiros anos de sua adolescência, o que leva a crer que ela não mantivesse um vínculo regular com uma escola, por exemplo, ou que não tivesse o hábito de frequentar a casa deles ou eles a sua. Grupos de colegas representam, com freqüência, um dos principais agentes de socialização, depois da família, e estes indivíduos que não são necessariamente amigos, mas possuem a mesma idade e um status semelhante, ajudam crianças e adolescentes a desligar-se de suas famílias e a desenvolver fontes independentes de identidade (BRYM et al., 2010).

Muitas vezes, a escola é uma razão de conflito para a família camponesa, pois a presença do filho na escola representa a sua ausência na lavoura e, por conta disso, acabaria se fazendo necessária a contratação de trabalho assalariado. Dessa forma, os pais permitiam o estudo aos filhos, mas os obrigavam a faltar as aulas em épocas de muita demanda de serviços na lavoura como os períodos de plantio e de colheita (BRANDÃO, 1993).

As pouquíssimas referências que ela faz de convívio com pessoas que não fossem de sua família como irmãos e prima, dizem respeito a um vizinho com qual ela foi uma vez ao cinema ou outro jovem que também era seu vizinho e que costumava auxiliar na colheita por ser dono de uma trilhadeira. Pertencer a uma turma ou passar uma grande quantidade de tempo com os amigos são maiores na adolescência do que em qualquer outra época da vida e a ênfase na intimidade, na lealdade e no compartilhamento marcam uma transição para as amizades adultas.

Além disso, o aumento da intimidade reflete o início da preocupação dos adolescentes no seu autoconhecimento e está ligada ao ajustamento psicológico e à competência social (PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2009).

Com o passar de mais algum tempo, quando Noeli estava com dezesseis anos, o teor de agressividade das verbalizações aumentou e ela traz mais uma sequência a qual classifica como tendo sido a gota d´água, ou seja, um acontecimentoa partir do qual, segundo a citação, ela define

“eu não quero mais isso pra mim” e decide sair de casa.

[...] nós tava lá pra baixo puxando pra levar lá em cima e ele assim (.) Noeli tu já terminou de puxar?(.) ainda não pai (.) o senhor não tá vendo? (.) Noeli tu já terminou? (.) ai ele começou a gritar comigo né (.) ai eu disse pai eu ainda não terminei eu tô sozinha porque os outros tão brincando (.) tu não terminou? (.) eu vou te jogar uma pedra (.) eu disse então tu joga (.) bah eu me indignei (.) então tu joga joga uma pedra (.) ele se abaixou pra pegar a pedra para jogar em mim eu tava com vantagem (.) ele tava lá em baixo e eu tava com uma pilha na minha frente né (.) mas eu nunca tinha respondido porque nós tinha medo dele eu nunca tinha respondido pra ele (.) então tu joga (.) pode jogar a pedra em mim (.) daí eu disse pra ele joga (.) mas ele disse tudo aquilo que todo mundo ouviu né (.) eu comecei a chorar e fiquei braba (.) dai eu comecei a trabalhar mais ainda né (.) eu fiquei revoltada //E: Uh-hum// outra (.) nós não podia sair da roça sem a ordem do pai né [...] eu botei a minha corda nas costas e fui pra casa sem ordem (.) foi quando eu me revoltei daí chegou no limite (1) peguei e fui pra casa e começou a me bater também (P. 12, L. 9- 31).

Ao que tudo indica, ela não pretendia continuar com este tipo de vivência, principalmente desempenhando o papel de uma filha submissa e refém dos destemperos de seu pai, o qual não demonstrava estar muito preocupado com os efeitos que suas punições arbitrárias e rigorosas poderiam causar em seus filhos, especialmente em Noeli. Em adição, a parentalidade omissa exercida por sua mãe talvez tenha sido também um reforço para a tomada de decisão de Noeli de afastar-se do convívio da família, pois na oportunidade em que teve de demonstrar que apoiava a insurgência de Noeli contra o pai, Cenira só fez endossar a sua postura subserviente à Zafiro e pedir que Noeli fizesse o mesmo.

Dessa forma, Noeli contradiz o que uma parentalidade autoritária pressupõe que é, como já dito anteriormente, a obediência sem questionamentos. Nos dias que se seguem ao acontecimento narrado, ela se rebela e se nega a voltar a trabalhar na lavoura ou a fazer qualquer tarefa doméstica. Além disso, apresentando sinais de força e coragem para manter a sua oposição ao pai, ela ficou sem falar com ele durante mais de uma semana, não atendeu aos chamamentos para fazer as refeições na mesa e colocou vestimentas que Zafiro não aprovava que suas filhas usassem.

O período da adolescência o qual envolve confusão emocional, conflito com a família, comportamento impulsivo e rejeição dos valores adultos é também chamado de tempo da rebeldia do adolescente. Assim, a adolescência, com freqüência, pode ser uma época difícil para jovens e seus pais, sendo o conflito familiar mais intenso no meio da adolescência do que no início. Mas, convém ressaltar que o nível de discórdia pode depender em grande medida da atmosfera familiar, sendo que a maioria dos problemas surge quando os pais excedem o que os adolescentes percebem como limites apropriados para a legítima autoridade parental (PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2009).

O que chama a atenção sobre a apresentação da biografada acerca deste momento é que apesar de seu pai ter sido o causador dos acontecimentos que a fizeram tomar a decisão de sair de casa, ela não aparenta nutrir ódio nem expressa ter tido qualquer desejo de vingança ou rechaço a seu pai. Ao contrário, há momentos da fala de Noeli em que ela faz uso de argumentações para

explicar as razões pelas quais o pai brigava muito com ela. Noeli reputa ao “nervosismo” de

Zafiro a causa das desavenças, e não a ele ter má índole ou ser “ruim”, como dito nas palavras dela.