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O Ensino de Microbiologia e Parasitologia na História Natural e na Biologia

CAPÍTULO 3 ASPECTOS HISTÓRICOS DO ENSINO DE PARASITOLOGIA E MICROBIOLOGIA

3.5. O ENSINO DE PARASITOLOGIA E MICROBIOLOGIA NO INTERIOR DAS UNIVERSIDADES

3.5.1. O Ensino de Microbiologia e Parasitologia na História Natural e na Biologia

Conforme afirmado anteriormente, na história da Microbiologia e da Parasitologia, as grandes novidades no século XIX, também não ocorreram no ambiente acadêmico, embora tenham, paulatinamente, influenciado teorias e práticas ensinadas nas universidades. Afirmou-se ainda que o modelo alemão foi responsável, em grande medida, pela introdução dos saberes destas áreas do conhecimento, ao substituir um ambiente de “cultivo do saber” (CHARLE;

VERGER, 1996), pela lógica da formação profissional. E, no caso dos profissionais das Ciências Biológicas, ligados aos microrganismos, e daqueles que atuavam nas Ciências da Saúde em geral, estes novos saberes, como se afirmou, modificaram substancialmente as concepções e práticas vigentes. O modelo alemão, portanto, preparava as universidades para a extensão destes conhecimentos e práticas ligados ao paradigma microbiológico.

A introdução destes novos saberes, entretanto, não foi de fácil implementação. As práticas subjacentes a estes saberes demandavam ambiente distinto. Poucas universidades possuíam, neste período, estrutura física que comportasse o desenvolvimento destas novas ciências. As tradicionais universidades de Cambridge, Oxford, Coimbra, Upsala, Harvard e Berlim, por exemplo, passaram por reestruturação física que envolvesse estas novas tecnologias da microscopia, no final do século XIX e início do século XX (esta última universidade foi a pioneira nestas reformas), ganhando diversos laboratórios de física, química e biologia, museus, jardins botânicos e observatórios. Cambridge construiu, em 1921, seu Instituto Molteno de Parasitologia Animal (LOUREIRO, 1975).

Na maioria dos países, as universidades não eram responsáveis sequer pela formação dos professores de ciências (MONTEIRO, 2005). Nos Estados Unidos, cátedras de ciências começaram a surgir no início do século XIX, como “ciência laboratorial”, o que fez com que, desde o início de seu ensino nas universidades, seus professores fossem mais propensos para a pesquisa do que para o ensino (GINGRAS, 1986). Na França, por exemplo, a formação de professores torna-se tarefa das universidades no início do século XX (LOUREIRO, 1975).

Por isso, a Microbiologia, laboratorial por excelência, foi rapidamente incorporada ao cotidiano universitário a partir desta perspectiva, reforçada pelas reformas universitárias que, no mundo todo, reestruturaram estas instituições baseando-se no modelo alemão48.

A Microbiologia, a Parasitologia e as demais áreas correlatas, sendo responsáveis diretas por esta reestruturação acadêmica (a microscopia e as necessidades assépticas destas ciências estão visceralmente relacionadas à constituição dos laboratórios), constituem-se, na compreensão que aqui se explicita, precursoras e alvos destas transformações, que, aos poucos conduziram estes saberes para uma profissionalização na formação universitária e para a superespecialização destes campos.

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Apesar disso, para autores como Barbosa e Barbosa (2010), ainda hoje são raras as instituições de ensino superior que possuem ambientes e equipamentos adequados ao ensino de Microbiologia baseado na experimentação em sua totalidade.

Esta tendência à superespecialização pôde ser notada logo após o surgimento deste paradigma e, no início do século XX, pesquisadores do mundo inteiro já se debruçavam sobre temas como genética, imunologia, fisiologia, bioquímica, epidemiologia e morfologia de microrganismos (WAINWRIGHT; LEDERBERG, 1992). Tal processo é ainda crescente e foi revigorado, a partir da influência de inovações científicas difundidas nos últimos vinte anos, como a Biologia Molecular, a Biotecnologia e a Genética Molecular, as quais foram responsáveis por uma nova revolução científica nos campos da Microbiologia e da Parasitologia.

A influência da Biologia Molecular, não somente nestes campos, mas em toda a Biologia, provocou intensas mudanças estruturais, que foram consideradas inclusive:

o fundamento lógico para reivindicar a igualdade de tratamento com as ciências físicas. [Deste modo, ela] proporcionou um elevado prestígio e uma teoria superior que unificaram muitos aspectos da disciplina (GOODSON, 1997, p. 75).

Consulta à base de dados da MEDLINE/PubMed (uma base de dados com periódicos de diversos países) a partir das palavras-chave “microbiology” e “parasitology”, forneceuos seguintes resultados49:

- buscando obter uma amostra representativa do universo da produção científica na área, elegeu-se um critério que garantisse uma escolha “aleatória” nesta base de dados. Por isso, a ordem de apresentação dos resultados da pesquisa foi o critério escolhido. Deste modo, as trinta primeiras publicações consultadas a partir do termo “microbiology” versavam sobre Biologia Celular/Biotecnologia/Imunologia de microorganismos (60,0%), Genética Microbiana (20,0%), Epidemiologia (3,3%), Clínica, Prevenção e Tratamento de Doenças Infecciosas (13,4%) e ainda, Aspectos Históricos associados a este campo (3,3%);

- com o termo “parasitology”, foram encontradas, em ordem decrescente de frequência, as subáreas de Biologia Celular/Biotecnologia/Imunologia (50,0%), Clínica, Prevenção e Tratamento (23,4%), Biologia de Microorganismos (6,7%), Epidemiologia (6,7%), Anatomopatologia, Veterinária, Genética e Epistemologia (3,3% cada).

A influência destas transformações no ensino destas disciplinas será analisada mais acuradamente a seguir, quando o contexto brasileiro for objeto de exame, mas não se poderia deixar de referir às observações feitas por Freire e Gambale (1997), que afirmam que o estudo da fisiologia ou da genética dos

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agentes causantes é uma tendência da pesquisa microbiológica em países onde esta ciência é mais desenvolvida. Segundo os autores, tais estudos visariam o conhecimento das causas implicadas nas etiologias por eles causadas, quadro distinto da realidade brasileira, onde os pesquisadores estariam trabalhando, em geral, apenas com os efeitos dos microrganismos no hospedeiro. Ainda segundo os autores, tal avaliação é corroborada em documento elaborado pela Secretaria do Planejamento e pelo CNPq, em 1982, e formulado por lideranças científicas da época. Tal documento apontava ainda:

que a maioria dos trabalhos utilizava métodos tradicionais de isolamento e identificação, não havendo um espírito multidisciplinar de abordagem, como acontece nos países mais desenvolvidos (FREIRE; GAMBALE, 1997, p. 7). A relação entre as inovações tecnológicas, entre a temática investigada na atualidade no campo da Microbiologia e o Ensino de Microbiologia praticado no ensino superior, foi um dos temas do I ENAPROM, que esteve preocupado com o crescente papel da Biotecnologia. Segundo os organizadores do evento, esta área tem contribuído para que, além dos tradicionais profissionais da área de saúde, a Microbiologia passe a ser exercida em outras áreas do conhecimento, tais como aqueles ligados a indústrias de alimentos, farmacêuticas e químicas (SBM, 2010).

Outra análise que merece destaque é a influência de uma visão “experimentalista” no ensino da Microbiologia, discutida por outros autores. Na percepção destes, os docentes desta disciplina confundem “prática” com “experimentação”, restringindo o rol de estratégias para as aulas práticas, que poderia, segundo os autores, incluir:

o uso de computador, análise de estudos de casos, entrevistas, debates, feitio de modelos, maquetes, vídeo, seqüência de slides, trabalhos de campo e análises de artigos científicos (BARBOSA; BARBOSA, 2010, p. 137).

Para estes autores, as atividades práticas acabam restritas à microscopia e ao desenho das estruturas observadas. Tais desenhos, presentes em quase todos os manuais escolares de Microbiologia são incentivados sob alegações:

que vão dos interesses da indústria editorial ao desinteresse dos alunos pela leitura e conseqüente abandono do texto escrito mesmo no espaço escolar (BARBOSA; BARBOSA, 2010, p. 137).

Ainda segundo estes pesquisadores, neste estudo, tais procedimentos acabariam conduzindo a uma compreensão denominada por estes autores de “reducionismo experimentalista", que consistiria na mera:

reprodução de protocolos rígidos que visam a confirmação de fenômenos já esperados e levam a interpretações simplistas dos resultados das experiências (BARBOSA; BARBOSA, 2010, p. 137).

Estas também foram preocupações dos docentes participantes do I ENAPROM, que, segundo seus organizadores (SBM, 2010), preocupou-se em apoiar o processo de superação de deficiências na formação profissional no campo da microbiologia, destacando um ensino memorístico, na visão dos alunos, e de elevado custo, segundo as instituições. Neste sentido, acreditam que seja necessária à capacitação em microbiologia, a aquisição de uma base sólida de conhecimentos durante o curso de graduação, processo em que os professores desempenhariam papel principal.

Um último aspecto a ser abordado neste item não diz respeito, particularmente, ao campo da Microbiologia ou da Parasitologia, mas à estrutura acadêmica contemporânea em geral e, portanto, não poderia deixar de ser agregada nesta análise conjuntural.

Este aspecto é explicitado por autores como Bazzo (2004) e Oliveira (2007a), para os quais, nos últimos vinte anos, o produtivismo e a política do “publique ou pereça” tem caracterizado a universidade contemporânea. Para este último autor, tal dinâmica contribuiu para que houvesse um desequilíbrio na importância relativa entre ensino e pesquisa, com a supremacia da última, forçando os professores a dedicar menos atenção aos demais aspectos envolvidos na sua atuação como um intelectual cuja profissão é a de docente universitário.

No Brasil, a origem das universidades se deu em período tardio, diferente inclusive de alguns países da América espanhola, que já no século XVI fundaram suas primeiras universidades (CHARLE; VERGER, 1996). No caso da formação de professores de biologia, por exemplo, sabe-se que estas instituições só passaram a responder por esta tarefa em 1931 (MALACARNE, 2007).

E ainda que, por intermédio de religiosos católicos, se tenham desenvolvido atividades universitárias de ensino da Medicina, no final do século XVIII, estas não incluíam o estudo das Ciências (CUNHA et al., 2009). Muitos brasileiros que pretendiam frequentar universidades viajavam para estudar em Coimbra, além de Montpelier e Paris (LOUREIRO, 1975), a maioria, entretanto, para estudar Direito ou Letras, ainda que, segundo Filgueiras (1990),

muitos dos que escolheram a carreira científica ou médica tenham se tornado conhecidos. O autor afirma que, no início do século XVIII, não havia ainda no Brasil, um ambiente propício para o desenvolvimento das ciências. Por outro lado, parece sugerir que o aumento na procura de brasileiros pela Universidade de Coimbra pode estar relacionado com o advento do ensino das ciências experimentais no Brasil, a partir da Reforma Pombalina, em 1771, ao afirmar que é tentador querer correlacionar estes dois eventos.

Uma consequência deste início tardio das universidades no Brasil foi o forte movimento anti-universitário oitocentista, sobretudo por parte dos positivistas, que defendiam a formação puramente profissional. Segundo Filgueiras (1990), esta posição seria reacionária em quase dois séculos. Sintomático deste atraso também é o fato de que, segundo o autor, a Academia Científica no Brasil foi fundada em 1772 ou um século depois de suas congêneres européias. Pior que isso, afirma ainda que a referida academia, embora possuísse seções de História Natural, Química e Farmácia, acabou se desfazendo por simples falta de atividades científicas regulares e organizadas.

O quadro muda com a chegada de D. João VI e suas ações em favor da modernização técnico-científica no Brasil, como a inauguração de instituições científicas [o Museu Real, o Jardim Botânico (segundo FILGUEIRAS, 1990) e a Casa de História Natural (conforme LOUREIRO, 1975)] e a abertura dos portos, que viria a acabar com o isolacionismo do Brasil.

Estas ações tiveram como consequência a vinda ao Brasil de dezenas de naturalistas estrangeiros, que, a partir de inúmeras expedições estimuladas pelo regente, produziram importantes tratados de História Natural Brasileira (FILGUEIRAS, 1990).

No campo da produção científica, as escassas atividades de investigação no Brasil, ao final do século XIX e início do XX, foram realizadas fora da órbita oficial e das escolas superiores, em instituições como o Instituto Bacteriológico, Butantã, Manguinhos, entre outros (LUCKESI et al., 1989).

Apesar disso, tais investigações, realizadas predominantemente nos campos da Parasitologia e da Microbiologia, por importantes médicos sanitaristas como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, tornaram a pesquisa científica no Brasil, em particular aquelas realizadas junto ao Instituto de Manguinhos, reconhecidas internacionalmente.

Se, por um lado, a produção científica nestes campos produzia importantes frutos, conforme apontado, o ensino destas disciplinas ainda não havia sido incorporado ao cotidiano das universidades. Ainda que o Paradigma da Microbiologia fosse emergente e que seus saberes já estivessem difundidos pelo mundo neste período, havia ainda uma barreira para que seu ensino fosse efetivado: as condições objetivas para a realização de atividades práticas experimentais em laboratório. Tais condições foram oferecidas, no Brasil, a

partir da Reforma Sabóia, de 1882, de inspiração germânica (KEMP; EDLER, 2004), que reestruturou fisicamente o ensino superior, dotando-o da infraestrutura necessária para que tais atividades, tão vitais nestes campos, pudessem ser realizadas.

Nos campos da Microbiologia e Parasitologia, por outro lado, a produção de conhecimentos continuaria centrada em instituições como o Instituto de Manguinhos, sendo que a atividade universitária nestas áreas não teve grande repercussão neste período. Estudantes buscavam avidamente as instituições de pesquisa para complementar sua formação (BENCHIMOL, 2000).

Já no século XX, a partir da Lei 5.540-68, a influência americana se fez sentir em toda a estrutura universitária brasileira. A referida lei foi baseada no

sistema universitário norte-americano e, segundo estudos realizados por uma comissão partidária composta de americanos e brasileiros, em base a um convênio entre o MEC e a USAID, com o compromisso do governo brasileiro de adotar, na reforma, as sugestões apresentadas pela referida comissão (LUCKESI et al., 1989, p. 103).

Esta influência estrangeira, que dará um caráter de racionalidade técnica à universidade do século XX, é bem recebida no Brasil, tornando-se hegemônica no ensino universitário. Deste modo:

No Brasil, a Universidade acha-se espoliada pela alienação da atual sociedade brasileira, que se serve da Universidade para manter os privilégios de uma minoria exploradora. Os assuntos: currículo, matérias fundamentais, especialização, cátedra vitalícia, unidade da Universidade, reforma universitária, conceito e finalidade da Universidade são temas secundários comparados com a “reforma universitária”; são secundários porque presos à atual classe de professores, “marginais superiores”, classe alienada e alienadora da realidade brasileira. (VIEIRA-PINTO, 1962, p. 125).

Mas como seria o ensino de Parasitologia e Microbiologia hoje, quase meio século depois da publicação do estudo de Vieira Pinto, acima referido? Conforme apontado anteriormente, o período ao qual o autor faz referência é de vigência do modelo alemão, já que o projeto americano seria implantado em 1968. No caso dos cursos universitários de formação de professores, que, segundo Malacarne (2007), já existiam no formato 3+1, desde o início da década de 30, a década de 60 é um período de licenciaturas já consolidadas e onde ainda há relativo prestígio na profissão. Segundo este autor, a docência na educação básica

é exercida, majoritariamente por integrantes da classe média, quadro que se altera no final dos anos 60 do século passado com a expansão e popularização do acesso à educação básica, a débâcle da classe média do magistério e a crescente desvalorização destes profissionais.

Esta expansão do ensino básico conduz à adoção de medidas legais que criam “esquemas” para encurtar o período de formação de professores, como as licenciaturas curtas e os estudos complementares para habilitar indivíduos com nível médio à docência, o que cria um quadro em que trabalham no magistério todo o tipo de profissionais (CHAGAS, 1975).

Em outro momento (item 3.5.3), serão discutidas, a partir da análise de ementas e planos de ensino, as repercussões destes fatos históricos nas atuais concepções e práticas docentes.

3.5.2. O Ensino de Microbiologia e Parasitologia na Educação em