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O Ensino de Microbiologia e Parasitologia na Educação em Saúde

CAPÍTULO 3 ASPECTOS HISTÓRICOS DO ENSINO DE PARASITOLOGIA E MICROBIOLOGIA

3.5. O ENSINO DE PARASITOLOGIA E MICROBIOLOGIA NO INTERIOR DAS UNIVERSIDADES

3.5.2. O Ensino de Microbiologia e Parasitologia na Educação em Saúde

Os cursos de Medicina estiveram entre os primeiros cursos universitários da história, remontando ao século XII (Escola de Salerno, Itália), (TOBIAS, 1969; CHARLE; VERGER, 1996). E apesar das inúmeras contribuições à medicina que os estudiosos, ao longo de séculos ofereceram, ainda no século XVIII as obras de Hipócrates e Galeno influenciavam as escolas médicas (OLIVEIRA, 2007b).

O ensino da enfermagem, por sua vez, é mais tardio, surgindo em fins do século XVIII, já que na Idade Média, ela é uma atividade puramente manual, feminina e religiosa, de cuidado aos doentes. Não havia um ensino sistematizado para o exercício da função, mas um treinamento das religiosas mais aptas. Até mesmo o precursor modelo nightingaliano inglês priorizava as qualidades morais das candidatas, tanto das alunas chamadas de ladies, da alta classe burguesa, quanto das nurses, de camadas populares (PEREIRA; RAMOS, 2006).

Já o ensino nas Ciências Farmacêuticas, que não surge a partir de trabalhos manuais, nem das universidades, tem a mais remota origem histórica, sendo imputada aos árabes, já no século II d.C. a fundação da primeira Escola de Farmácia e também da primeira legislação para o exercício desta profissão. O título de farmacêutico, entretanto, foi criado por Luis XV, em substituição ao termo apoticário, utilizado até então. Neste período já se exigiam estudos teóricos e prestação de exames práticos, ainda que não universitários (CRF, 2011b).

Longo tempo passou sem mudanças profundas nas práticas em saúde. Muito mais tarde, passa a ser influenciada pela clínica nos hospitais e, na primeira metade do século XIX, seguia o chamado modelo médico francês,

oriundo das modernizações implementadas por Napoleão I, responsável pela inclusão das Ciências à vida universitária parisiense (LOUREIRO, 1975).

Este modelo caracterizava-se por:

seus preceitos epistemológicos oriundos do sensualismo dos idéologues50 e sua prática clínica amparada em instrumentos e técnicas de inspeção que incluíam o exame físico de palpação e auscultação, o estetoscópio, as estatísticas médicas, o ensino sistemático à cabeceira do paciente, a anatomia patológica e o exame anatômico após a morte (KEMP; EDLER, 2004, p.580).

Tal modelo, pouco diferia daquele que, em qualquer profissão, remontava aos primórdios da civilização. Neste modelo primitivo, como relata Lampert (2002), o aprendiz, para dominar um ofício, acompanhava o mestre como assistente ou auxiliar e, posteriormente, passava a atuar de forma autônoma, após exercer as atividades de forma supervisionada por algum tempo.

Ele foi, aos poucos, em todo o mundo, sendo substituído pelo modelo alemão, referido anteriormente (item 3.4) que substituiu um modelo de educação médica baseado na clínica, para um modelo mais “científico”, de especialidades e laboratórios.

A conhecida Reforma Flexner, implementada nos Estados Unidos após o fortalecimento da Teoria do Germe, também consistiu num aprofundamento desta germanização da educação médica, associando o Ensino das Ciências à medicina hospitalar e ao treinamento clínico à pesquisa científica, tendência que se refletiria em todo o mundo ocidental (OLIVEIRA, 2007b). Além disso, este novo modelo americano diferia do modelo alemão pela fraca intervenção do Estado e pela posição subordinada dos professores (CHARLE; VERGER, 1996).

Tal reforma propunha uma padronização dos currículos médicos, ensino por meio de disciplinas, segundo especialidades, ministradas de forma independente, nas quais prevalecia a lógica interna de cada disciplina ou especialidade o que vai influenciar a educação médica, com a saúde pública perdendo força na construção de sua identidade multiprofissional (MACHADO, 1997).

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Na filosofia francesa oitocentista, havia uma escola que se definia a si própria e aos seus membros como idéologues, que partilhavam em especial da convicção de Destutt du Tracy, segundo a qual se fosse possível analisar sistematicamente ideias e sensações, obteríamos uma base segura para um conhecimento sólido (HEKMAN, 1990).

Assim, o modelo de educação médica atual (e também muitos outros) é influenciado por estas reformas, que, segundo a avaliação do próprio Flexner, alguns anos mais tarde, geraram um currículo médico que dá mais peso para os aspectos científicos da medicina, com a diminuição da importância, ou exclusão, dos aspectos social e humanista (OLIVEIRA, 2007b).

Deste modo, ainda que, aparentemente, a predominância dos saberes médicos na Microbiologia e na Parasitologia na própria formação médica poderia constituir vantagem, não se pode esquecer que estes saberes estão impregnados com o tecnicismo da universidade moderna e pelos “defeitos de origem” do paradigma microbiológico, situando a relação parasita-hospedeiro em relação direta com a geração de doenças e buscando, quase exclusivamente, a eliminação física dos parasitos.

Tal compreensão contribuiu também para uma priorização de estratégias medicamentosas e individuais no combate aos parasitos, que levou a um amplo domínio e ingerência da indústria farmacêutica nas políticas públicas de saúde (PEREIRA;RAMOS, 2006), além da saúde privada, os quais em conjunto, contribuíram para a formação do complexo médico-industrial (DA ROS, 2000). O contexto brasileiro do ensino de Parasitologia e Microbiologia na Educação Médica possui especificidades dignas de referência. Assim, um panorama da Medicina e da Educação Médica no Brasil iniciará a exposição dessa particular realidade.

Um marco para o início de tais análises é, como referido, a chegada de D. João VI que, inicialmente restabelece os cargos de físico-mor do reino e cirurgião- mor dos exércitos, tal como em Portugal. Dispôs também delegados nas províncias (PAIM, 2009) e, em breve período fundou o Colégio Médico- Cirúrgico da Bahia (1808) e a Escola de Medicina do Rio de Janeiro (1809), depois de tantos anos de interdição da formação médica em território brasileiro impostas por Portugal (FILGUEIRAS, 1990).

A “Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras”, no Rio de Janeiro, a “Escola de Enfermeiras” (ambas de 1901) e a “Escola de Parteiras” (1902), em São Paulo, por sua vez, só foram fundadas no início do século XX. Nesta área, entretanto, foi a fundação da “Escola de Enfermagem Anna Nery”, em 1923, o principal marco da formação profissional dos trabalhadores da saúde. Apesar disso, somente com a LDB de 1961 (Lei nº 4.024), o curso de enfermagem passa a ser superior (PEREIRA; RAMOS, 2006).

Outro marco pós-D. João VI, foi o ano de 1828, em que a saúde pública passa a ser responsabilidade das municipalidades, a inspeção dos portos passa para a esfera do Ministério do Império e, por causa dos casos de febre amarela no Rio de Janeiro, é criada, segundo Paim (2009) a Junta de Higiene Pública.

Relata ainda o autor, que neste período, diante de epidemias, a ação comunitária organizava-se em nível local, ressaltando o fato de que se está

tratando de um período prévio à seguridade social e, portanto, anterior à compreensão do papel do Estado na saúde pública brasileira.

As instituições médicas brasileiras eram orientadas pelo modelo francês e o foram até 1880, quando este modelo foi oficialmente abandonado com a Reforma Sabóia, em 1882, de influência alemã (KEMP; EDLER, 2004). Influência que deve ser considerada com parcimônia, num país onde procedimentos, crenças e ritos ligados à prática médica, e oriundos das culturas indígena e africana, sempre foram importantes. Por isso, estes autores, afirmam que:

qualquer análise da mudança brasileira em questão precisa levar em conta o fato de que o Brasil tinha, no começo do século XX e mesmo antes, uma tradição médica complexa e rica que não poderia mudar com facilidade ao capricho das forças de fora (KEMP; EDLER, 2004, p. 570).

De qualquer modo, a influência alemã entre os intelectuais da época era grande. José Joaquim Belfort, por exemplo, o autor da primeira obra brasileira sobre a Universidade, diz:

Desde já declaramos que as nossas simpatias, no intuito de achar um modelo para nós, são pelo sistema alemão, e ninguém achará por certo suspeita a nossa propensão e sem fundamento a nossa escolha, quando a Alemanha entre todas as nações representa a ciência (BELFORT, 1873, p. 118).

Um aspecto particular da história da formação médica no Brasil – ligada à história da Microbiologia e da Parasitologia – diz respeito à Escola Tropicalista Baiana, grupo formado por médicos estrangeiros, como os portugueses Otto Wucherer e José Francisco da Silva Lima e o escocês John Paterson, médicos pesquisadores da Microbiologia e fundadores da Gazeta Médica da Bahia, que iriam congregar estudantes e médicos mais jovens, alguns dos quais iriam se tornar atores políticos importantes nos movimentos abolicionista e republicano, afirma Benchimol (2000).

Segundo este mesmo autor, a referida escola permaneceu na fronteira entre o paradigma miasmático/ambientalista e a teoria dos germes. E apesar de estrangeiros, preocuparam-se em combater a ideia difundida e, segundo o referido autor, preconceituosa, de que a medicina brasileira era imitação da européia, buscando produzir:

investigações originais sobre as patologias nativas daquela região da “zona tórrida”, bem como suas posições independentes face à

medicina acadêmica européia e ao establishment médico local (BENCHIMOL, 2000, p. 266).

Esta escola também mantinha íntima interação com pesquisadores como:

Davaine, Theodor Bilharz, Wilhelm Griesinger, Rudolph Leuckhart, Spencer T. Cobbold, Le Roy Mericourt, Joseph Bancroft, Patrick Manson, nomes, enfim, que meio século depois iriam compor o panteão da parasitologia e da medicina tropical. A Gazeta Médica da Bahia dava muito mais importância aos trabalhos desses pesquisadores ainda desconhecidos do que aos expoentes da medicina acadêmica européia (BENCHIMOL, 2000, p. 267).

O autor também registra o antagonismo que, à época, instalara-se entre a referida escola e os médicos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, afirmando que

enquanto estes encaravam o progresso como imitação da ciência e das instituições européias, os (...) baianos investigavam a singularidade das doenças nos trópicos (BENCHIMOL, 2000, p. 267).

Para Edler (1999), entretanto, os médicos cariocas, também combatiam a imagem eurocêntrica do Brasil, apontando a necessidade de investigação das patologias nativas.

Importantes mudanças nas práticas médicas, no sentido de promover, também no Brasil, as reformas germanizantes, tiveram como importante personagem Domingos José Freire e seus quatro relatórios enviados à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que versavam sobre os progressos em curso nas áreas da química, da biologia e da medicina em instituições européias que visitou entre 1874 e 1876. Benchimol (2000) diz que tais relatórios informavam sobre o espírito da reforma do ensino médico, a ênfase na ciência experimental e no ensino de laboratório e ainda; que o autor dos relatórios então presidiu a comissão que redigiu a lei que instituiu a reforma no ensino superior criando um laboratório de Química Orgânica na referida faculdade.

Com o início das atividades do Instituto de Manguinhos, entretanto, o desenvolvimento da ciência nos cursos superiores tornou-se menos exuberante (MASCARINI, 2003). Oswaldo Cruz tinha prestígio e reconhecimento internacional, mas a corporação médica, com representantes no Parlamento, não

apreciava a realização de atividades de ensino fora da Faculdade. Os estudantes, por outro lado, debandavam voluntariamente para Manguinhos (BENCHIMOL, 2000).

O “boicote” político da corporação acadêmica a Oswaldo Cruz não obteve os resultados almejados. Em 1902, ele torna diretor de saúde pública do governo de Rodrigues Alves e, apesar de ter seus pleitos recusados pelo Congresso Nacional, destina verbas próprias para elevar a categoria do então Instituto de Manguinhos. Suas fronteiras se alargam e seus cientistas passam a atuar em diversos locais do Brasil para combater doenças como a malária (MASCARINI, 2003).

A Parasitologia, a Microbiologia e a Medicina Tropical Brasileiras tornam-se, no início do século XX, reconhecidas internacionalmente, com sofisticados laboratórios para a produção de soros e vacinas. Neste período, inclusive, segundo o próprio Oswaldo Cruz (1906), Manguinhos gozava mais prestígio no exterior do que no Brasil, onde o Instituto era desconhecido entre os leigos, mesmo os mais cultos.

A atuação destes médicos-sanitaristas, entretanto, mudou drasticamente este quadro. Neste período, a forma de ocupação do espaço agrário e urbano em São Paulo, produziu uma infinidade de doenças, como a febre amarela, a peste, a malária, as leishmanioses cutâneo-mucosas e a doença de Chagas (BARATA, 2000), as quais comprometeram a economia agroexportadora brasileira, impondo ao poder público o saneamento dos portos, o combate aos vetores e a vacinação obrigatória (PAIM, 2009). Produziu-se então um ambiente propício para estes novos médicos mostrarem a eficácia de sua formação.

Suas vacinas e soros contribuíram para reduzir estes problemas, mas a crescente industrialização brasileira aumenta ainda mais os agravos à saúde, espalhando por todo o território nacional, de norte a sul, os desmatamentos, a poluição, a falta de saneamento básico e as parasitoses deles consequentes. Além do mais, estas ações eram episódicas e voltadas para doenças específicas, não havendo uma centralização das ações de saúde e nem sequer um Ministério da Saúde havia sido criado (PAIM, 2009).

No final do século XX, até mesmo as insuficientes medidas tomadas pelos médicos-sanitaristas de Manguinhos perdem espaço no meio acadêmico. A racionalidade técnica oriunda da implantação do modelo americano aos cursos universitários brasileiros e a produção de conhecimentos em saúde para debelar estas doenças, cede espaço às inovações biotecnológicas.

Convém lembrar ainda que o modelo hegemônico de Educação Profissional em Saúde era pautado, desde o início do século XX (processo de industrialização brasileira), por uma concepção de ensino enquanto forma de adaptação dos trabalhadores ao existente, às condições objetivas da produção e

reprodução do capitalismo. Apesar disso, formou-se também um projeto contra-hegemônico de formação de trabalhadores em saúde

cuja meta é entender as condições históricas que produzem e reproduzem o próprio sistema capitalista periférico e dependente, apontando para formas de luta e de superação dessa mesma sociedade brasileira injusta e desigual (PEREIRA; RAMOS, 2006, p. 13). No tocante ao ensino específico das disciplinas de Microbiologia e Parasitologia nas universidades brasileiras, tal quadro contribui para que seu ensino passe a ser realizado a partir de disciplinas enquanto compartimentos estanques, realidade que é predominante até os dias de hoje.

Para finalizar tal análise, apontam-se algumas características particulares destas disciplinas no cenário nacional, segundo nos informam os currículos e planos de ensino investigados neste estudo.

Uma diferença em relação ao quadro traçado para o ensino de Microbiologia e Parasitologia nas Ciências Biológicas é o fato de que no caso dos cursos da área de saúde (Medicina, Enfermagem, Farmácia, Medicina Veterinária) estas disciplinas são obrigatórias em 100% dos cursos (FREIRE; GAMBALE, 1997), enquanto nos demais, ainda que frequentes, não são obrigatórias em todos os casos.

Apesar disso, os conteúdos da área de saúde parecem perder espaço nestas áreas e, como se registrou, em pesquisa referida anteriormente (item 3.4.1), temas como a Clínica, Prevenção e Tratamento representam, atualmente, 20,0% dos estudos em Microbiologia e 23,3% das pesquisas em Parasitologia, enquanto estudos envolvendo os microrganismos e suas relações com a biotecnologia constituem grande parte das pesquisas realizadas no Brasil.

3.6. O ENSINO UNIVERSITÁRIO ATUAL DE MICROBIOLOGIA