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CAPÍTULO 3 ASPECTOS HISTÓRICOS DO ENSINO DE PARASITOLOGIA E MICROBIOLOGIA

3.2. O PARADIGMA DA MICROBIOLOGIA

Viu-se que, no campo da Microbiologia, a superação da visão mística por outra de base empírica ocorreu a partir de inovações tecnológicas nos instrumentos óticos até então disponíveis. Neste período, perceberam-se tais mudanças ainda fora das instituições universitárias, não incorporadas aos saberes acadêmicos. Antes de iniciar a abordagem de fatores mais relacionados com o ensino universitário destes saberes, serão explorados a seguir, mais detidamente, outros aspectos desta mudança paradigmática, já que entre o

nascimento das primeiras universidades e a absorção destes saberes no meio acadêmico, houve uma longa estrada.

Como afirmado anteriormente, no caso das bactérias, a prova de sua existência não significou uma imediata vinculação destas com a produção de doenças. Apesar das investigações sobre certas ‘partículas infectantes’, realizadas por Semmelweiss e do bem sucedido uso de antissépticos por Lister, foi a descoberta de Robert Koch, sobre o papel do bacilo da tuberculose na produção desta etiologia, o primeiro dado incriminando um microorganismo patogênico, conforme será mostrado também na Tabela 3.1.

A construção desta tabela constituiu estratégia fundamental para uma melhor compreensão destes fatos científicos que, embora relativamente sistematizados por alguns autores, como Wainwright e Lederberg (1992) e Cox (2002), não se encontravam organizados de modo a possibilitar que o leitor tivesse uma visão panorâmica privilegiada destes eventos. A sistematização aqui realizada permitiu compreender com maior clareza de que modo se deu a extensão destes conhecimentos, de seus impactos sociais, dos processos históricos de organização das sociedades científicas, dos veículos de divulgação destes saberes e, sobretudo, do seu uso na formação profissional no ensino superior.

Além disso, no caso do Brasil, sequer foram encontrados estudos como os supra-referidos, que tratassem, de modo sistemático, destes acontecimentos. Na organização destes dados, entretanto, não foram dispostos os referentes à história destes eventos no Brasil, de modo isolado dos processos ocorridos no contexto mundial. Optou-se, metodologicamente, por agregá-los nesta mesma tabela. As fontes bibliográficas exploradas, neste processo, além das já referidas, foram os trabalhos de Allen (1966), Benchimol (2000), Barnett (2003), Mascarini (2003) e Suassuna (2006).

Tabela 3.1 – Alguns dos fatos científicos mais relevantes nos campos da Microbiologia e da Parasitologia

Data Acontecimento

Final do séc. XVI

Robert Hooke desenvolve instrumentos óticos com aumento de 3 x 500.

Séc.XVII Início da Helmintologia (coincidente com a reemergência da ciência e da escolarização durante o Renascimento). Final do séc.

XVII

Primeiras observações microscópicas de fungos, protozoários e vermes.

1676 Leeuwenhoek publica observações microscópicas no Society`s Philosophical Transactions.

Tabela 3.1 (cont.)

Data Acontecimento

1745 Needham e Buffon oferecem provas “científicas” da Geração Espontânea.

1746 Experimento de Spalanzani contesta a Teoria da Geração Espontânea.

1750’s Início da Microbiologia.

1789 Lavoisier descreve a fermentação alcoólica em leveduras. 1796 Jenner realiza os primeiros experimentos com imunização. Séc. XVIII A biologia dos helmintos é aprofundada graças à

microscopia. Primeiras pesquisas em Micologia.

1829 Fundação da Sociedade de Medicina e Cirurgia, no Brasil. 1837 Kützing sugere que diferentes tipos de fermentação, como a

produção do vinagre, são realizadas por diferentes tipos de seres vivos.

1837 Schwann mostra que pedaço de carne em garrafa fechada não sofre ação de bactérias (usa também fermento e garapa para testar ação de fungos).

1839 Schwann desenvolve sua “Teoria Celular”.

1840 Semmelweiss adota primeiras medidas antissépticas. 1849 Cohn introduz primeiros corantes na microscopia.

1800-50 Consolidação da Micologia. Novos achados na Helmintologia. A Protozoologia eclode.

1850 Início da Parasitologia nos EUA.

1857 Pasteur publica seu primeiro artigo sobre a fermentação alcoólica, rebatendo argumentos de Von Liebig e Berzelius. 1858 Pouchet rebate Schwann; diz que O2 é necessário à geração

espontânea. Cerca de

1860

Estabelecem-se os fundamentos da parasitologia enquanto ciência.

1860 Pasteur confirma o papel das leveduras na fermentação alcoólica.

1861 Pasteur realiza importante experimento para rebater a geração espontânea com seus frascos de pescoço de cisne. 1865 Pasteur conclui que doenças infecciosas são transmitidas

pelo ar.

1866 Fundação da Gazeta Médica da Bahia, publicação da Escola Tropicalista Baiana.

Tabela 3.1 (cont.)

Data Acontecimento

1877 Koch, com azul de metileno, prepara lâminas permanentes de bactérias.

1880 Pasteur trabalha para produzir vacina para cólera.

1882 Metchnikoff faz primeiras observações sobre imunidade celular.

1882 Koch descobre bacilo da tuberculose. Tal descoberta vincula, definitivamente, as bactérias às infecções por elas causadas.

1880’s Escola Tropicalista Baiana ganha projeção. 1884 Gram introduz sua famosa coloração Gram.

1897 Kraus realiza reações de precipitação para detecção de imunidade.

1890’s Fundadas diversas instituições de pesquisa em Microbiologia.

1850-00 Protozoologia e Helmintologia produzem inúmeras pesquisas. Vetores são descobertos. Bacteriologia ganha destaque. Início da Virologia.

1900-10 Fundadas diversas instituições de pesquisa em Parasitologia, Microbiologia e Medicina Tropical, além dos primeiros periódicos, inclusive no Brasil. Primeiros quimioterápicos. 1905 Bastian, o último defensor da Teoria da Geração Espontânea

publica seu livro The Evolution of Life.

1907 Cruz recebe a medalha de ouro pela sua atuação em Manguinhos, durante o 14º. Congresso Internacional de Higiene e Demografia, em Berlim.

1907-12 Chagas descobre o T. cruzi, a doença e os vetores triatomíneos.

1908 Instituto de Manguinhos recebe o nome de Instituto Oswaldo Cruz.

1910 Carlos Chagas obtém o prêmio Shaudinn, conferido pelo Instituto Naval de Medicina de Hamburgo.

1910 Ruffer encontra vermes em múmias. Início da Paleoparasitologia.

1910’s Diversas espécies de protozoários e helmintos são descritas em países da África, América do Sul e Ásia.

Tabela 3.1 (cont.)

Data Acontecimento

1916 Rocha Lima descreve o agente do tifo epidêmico, Rickettsia provazekii.

1919 Invenção do microscópio ultravioleta, que pela primeira vez possibilitou a visualização dos vírus (aumentos de até 2.500x).

1920’s Pesquisas envolvendo parasitos em países pobres elucidam aspectos da biologia destas espécies e da patogenia das doenças humanas.

1921 Calmette administra BCG (bacilo de Calmette-Guérin, a vacina para tuberculose) pela primeira vez.

1921 Registrados primeiros casos autóctones da esquistossomose no Brasil.

1928 Fleming descobre a penicilina.

1928 Jordan e Falk publicam a obra seminal System of Microbiology.

Anos 30 Descoberta de várias bactérias patogênicas. Década dos quimioterápicos.

1934 Invenção do microscópio eletrônico, que permite aumentos de 600.000x.

1937 Início do Bacteriological Review. 1947 Início do Annual Review of Microbiology. 1948 Fundação da Society for General Microbiology. 1952 Fundação da American Society of Parasitology. 1954 Isolamento do vírus do sarampo.

1957 Burnet publica sua Teoria da Seleção clonal.

1960`s Koberle descobre ligação entre T. cruzi e principais sintomas em humanos.

1963 Fundação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 1965 Fundação da Sociedade Brasileira de Parasitologia (SBP). 1972 Criação da Revista de Patologia Tropical, publicação da

SBP.

1979 Ashford encontra coccídeos em pacientes com HIV.

Feito o parêntese, cabe retomar os processos cruciais para o estabelecimento da Microbiologia como ciência. Além dos achados de Koch, aos quais se fez referência, adicionalmente, foram necessários os experimentos de Louis Pasteur e o desenvolvimento de sua Teoria do Germe, no final do

século XIX, para que a dinâmica de transmissão de doenças infecciosas fosse elucidada.

Para Pagliosa (2006), a referida Teoria do Germe vem sacramentar uma visão de causação biológica da doença gestada desde há muito.

Este novo paradigma estruturou ao menos dois grandes modelos explicativos, duas tendências: os contagionistas e os não contagionistas. Para o referido autor:

a primeira defendia a tese de que eram germes específicos que causavam as infecções e doenças epidêmicas. Os segundos acreditavam na geração espontânea e que o ar, elemento central na veiculação da doença, tornava-se nocivo por influência tanto do meio natural como meio social (PAGLIOSA, p. 39).

E da junção destas duas tendências teóricas aparentemente antagônicas, nasce o higienismo, pensamento social hegemônico em muitos períodos históricos, que influenciou políticas públicas, reformas urbanas e sanitárias (VERDI, 2002).

Outra iniciativa fundada a partir dos achados pós-microscopia foram os experimentos visando à produção de vacinas. Deste modo, todo este já avolumado corpo de conhecimentos construído com o auxílio dos microscópios inaugura uma nova ciência: a Microbiologia (WAINWRIGHT; LEDERBERG, 1992).

Assim, com a invenção do microscópio e dos experimentos de Pasteur, com o novo Paradigma da Microbiologia; foi possível a ampliação do conhecimento acerca da fisiologia, ecologia e sistemática de importantes parasitos humanos (incluindo-se os trajetos no organismo do hospedeiro e, além disso, a descoberta da participação de espécies vetoras destes parasitos), dos mecanismos imunológicos de defesa e de novos modos de tratamento para muitas das doenças causadas por eles (COX, 2002; WAINWRIGHT; LEDERBERG, 1992).

Em breve período de tempo, esta nova ciência começa a congregar microbiologistas em torno de instituições, como sociedades, associações e institutos. Na França é inaugurado, em 1888 o Instituto Pasteur, em 1899, nos Estados Unidos, é criada a Sociedade Americana para a Microbiologia, além de uma série de outras instituições nacionais em países da Europa e da África. Em 1927 é fundada a União Internacional de Sociedades Microbiológicas, congregando as entidades nacionais de todo o mundo e, apesar do pioneirismo de diversos pesquisadores brasileiros, como os do Instituto de Manguinhos, a Sociedade Brasileira de Microbiologia iniciou suas atividades somente em 1956.

A produção destes conhecimentos e sua veiculação na formação de profissionais de saúde, como se viu, não ocorre ainda na esfera das instituições de ensino superior, mas em instituições de pesquisa e sociedades científicas. No Brasil, a Sociedade de Medicina e Cirurgia, fundada em 1829, representou experiência vanguardista, já que precede a organização de outras importantes sociedades científicas, nos campos da Microbiologia e da Parasitologia, em outras partes do mundo (Tab. 3.1). A Escola Tropicalista Baiana, que possui, entre seus membros, iminentes parasitologistas, como Otto Wucherer (BENCHIMOL, 2000), é vanguarda também, em território nacional, na divulgação dos conhecimentos produzidos neste círculo, ao fundar, em 1866, a “Gazeta Médica da Bahia”, publicação da Escola Tropicalista Baiana.

Apesar de ocorrer fora de instituições de ensino, estes novos conhecimentos e práticas, que em curto período de tempo, seriam aplicados massivamente em todo o mundo, demandaram processos de circulação destes saberes, tanto internamente ao círculo dos cientistas, quanto em outras esferas da sociedade. Dentre os mecanismos implicados na sua Circulação Intercoletiva e, como será visto adiante, na extensão deste Estilo de Pensamento, estão as discussões ocorridas no interior das sociedades científicas e a criação de revistas especializadas, ao longo do século XIX (Tab. 3.1).

Uma das consequências do boom de acontecimentos no campo da Microbiologia, para o ensino desta temática, uma complicação, utilizando a expressão fleckiana, foi o fato desta ciência emergente ter supervalorizado a participação dos microrganismos na produção das doenças e se desenvolvido edemaciada pelos conteúdos acima descritos, que passaram a compor quase a totalidade do corpo de conhecimentos deste campo.

O advento da microscopia parece, gradativamente, pôr fim ao conceito de miasma e ao higienismo ou, ao menos, à ideia sobre a influência do ambiente na etiologia das doenças, vigente até cerca de 1.700 (DA ROS, 2000). Como diz Barata (1985): a bacteriologia veio liberar a medicina dos complexos determinantes econômicos, sociais e políticos que a impediam de desenvolver- se cientificamente (p. 5). Ou, como acredita Behring (1893 apud ROSEN, 1980), agora a medicina não precisaria mais perder tempo com problemas sociais. Deste modo, ao invés da Microbiologia tornar-se um importante instrumento para apoiar as explicações dadas pela Medicina Social, ela passa a significar uma ruptura com todo o conhecimento anterior (DA ROS, 2000).

Os saberes das Ciências da Saúde estruturaram-se objetivando identificação e combate de doenças, em detrimento da subjetividade do doente (LUZ, 1988).

O surgimento da Microbiologia produziu transformações nos campos das Ciências da Saúde e da História Natural, constituindo fato científico sem precedentes neste campo do conhecimento. Apesar disso, conforme afirmado

anteriormente, o surgimento desta ciência não precedeu o estudo dos vermes ou helmintos, que, por seu porte macroscópico, parcialmente, independiam dos instrumentos óticos. Estes animais eram estudados por zoólogos, desde o século XVII (ver Tab. 3.1).

Fungos filamentosos e protozoários também eram estudados antes da invenção dos microscópios, embora tais estudos tenham permanecido desconhecidos até o desenvolvimento da Microbiologia (WAINWRIGHT; LEDERBERGH, 1992).

Organismos microscópicos, por sua vez, tiveram seu status taxonômico definido algum tempo depois das primeiras observações e do surgimento da Microbiologia. Deste modo, qualquer microorganismo - protozoário, bactéria ou fungo - era estudado indistintamente pelos pesquisadores microscopistas.

De acordo com os autores referidos anteriormente, o primeiro registro do uso do termo protozoário, por exemplo, é atribuído a Goldfuss, só em 1817. Já os fungos microscópicos, como mencionado, chamaram pouca atenção de microbiologistas, pois eram considerados somente causadores de doenças em plantas, o que os levou a serem estudados principalmente pelos botânicos. A Micologia Médica tem como importante marco de seu surgimento o registro da primeira doença humana causada por fungos, a Tinia, feita somente em 1839 (SILVA, 2008).

Atualmente, protozoários e fungos são estudados também por microbiologistas, mas os primeiros são estudados, majoritariamente, por parasitologistas, enquanto os segundos compreendem o objeto de estudos da Micologia.

O surgimento da Parasitologia é posterior a estes primeiros estudos e, em fins do século XVII, coincidente com a reemergência da ciência e da escolarização durante o Renascimento, surge uma de suas precursoras: a Helmintologia (COX, 2002).

As primeiras sociedades de parasitologistas iniciaram seu funcionamento em período posterior às sociedades de microbiologia. A Sociedade Helmintológica de Washington foi fundada somente em 1910, a Sociedade Americana de Parasitologistas data de 1924, a Sociedade Alemã de Parasitologia é fundada em 1960, a Britânica e a Francesa surgem em 1962 e a Federação Mundial de Parasitologistas iniciou suas atividades somente em 1960, na Polônia. A SBP foi fundada em 1965.

Apesar disso, muitos estudiosos desta área já atuavam previamente na área da medicina tropical, cujas origens se confundem com a própria Parasitologia (MASCARINI, 2003). Deste modo, pode-se, sob risco, dizer que as impopulares medidas adotadas pelos médicos-sanitaristas de Manguinhos no início do século XX, que culminaram na Revolta da Vacina, bem como a tradicional quimioterapia

massiva, características da Parasitologia, constituem consequência desta aproximação com a medicina tropical.

Galvão (1989), ao tecer uma analogia entre a geografia médica e a medicina tropical, afirma terem sido os geógrafos mais sinceros do que os praticantes de saúde pública, pois inicialmente chamaram a geografia dos dominadores de colonial e somente mais tarde passaram a denominá-la geografia tropical. No entanto na saúde pública a chamada medicina tropical, apesar de feita por médicos militares, nunca se assumiu como medicina colonial.

A Medicina Tropical fundou suas primeiras sociedades científicas na primeira década do século XX. A Sociedade Americana de Medicina Tropical e Higiene data de 1903 e a Sociedade Internacional de Medicina Tropical foi fundada em 1907, sendo que no Brasil esta área somente passou a contar com representação oficial na década de 1960, com a Fundação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.

A história da Parasitologia é singular e, apesar de não ser marcada por grandes eventos (FOSTER, 1965), desenrolando-se nos laboratórios das universidades, na grande maioria das vezes em condições precárias (MASCARINI, 2003, p. 810), nos dias atuais é possível dizer que - ao menos no que tange ao espaço conquistado no meio acadêmico - parece ter se igualado em importância à Microbiologia; esta sim, uma ciência cuja história é marcada por grandes eventos, grandes revoluções e cientistas consagrados, como Pasteur e Koch, por exemplo.

A Parasitologia desenvolveu-se entrelaçada com a Medicina Tropical (COX, 2002), e assim, grande parte da influência dos zoólogos naturalistas que, em seus primórdios, estudavam os vermes, acabou sendo substituída pela tradição médica; enquanto a Microbiologia, além do importante viés médico, desdobrou-se em outras áreas de interesse econômico, como a Microbiologia Industrial, a Microbiologia Agrícola e a Microbiologia de Alimentos (WAINWRIGHT; LEDERBERGH, 1992).

Na área da Micologia, as Sociedades Micológicas Britânica e Francesa instituíram-se em tempo histórico concomitante com a pioneira área da Microbiologia, respectivamente, em 1884 e 1896. Já a Sociedade Americana de Micologia iniciou suas atividades em 1932 e a Associação Micológica Internacional data de 1971. A Sociedade Brasileira de Micologia foi fundada em 1990. As sociedades de virologia são recentes, datando a americana de 1981, a Sociedade Internacional para pesquisa antiviral foi fundada em 1987 e a Sociedade Brasileira de Virologia iniciou suas atividades em 1986.

Apesar deste surgimento precoce, a Micologia nunca se configurou uma ciência de grande expressão, ocupando papel secundário na Microbiologia e, raras vezes, tornando-se disciplina acadêmica.

Apresentam-se agora questões indicativas de uma crise paradigmática, como diria Thomas Kuhn (2007) ou complicação para Ludwik Fleck (2010) na Microbiologia. Convém, previamente, entretanto, ressaltar que se trata de elementos da história da constituição da Microbiologia enquanto campo do saber e de suas articulações com o ensino destes nas universidades, apenas em uma de suas subáreas, considerando que nosso interesse, em particular, envolve as relações entre os organismos parasitas e o organismo humano. Portanto, dar- se-á enfoque na história da Microbiologia Humana, cujos limites se confundem com os da Microbiologia Médica. Será adotado, prioritariamente o primeiro termo, pois se entende que o adjetivo “médica” carrega consigo alguns problemas merecedores de maiores reflexões, as quais serão feitas mais adiante. Ressalte-se também que, a referência ao Paradigma da Microbiologia, não se restringe à área de Microbiologia, mas, como mencionado anteriormente, refere-se, fundamentalmente, ao advento da microscopia ótica.

Após o desenvolvimento da microscopia, da pasteurização, da imunização e de tantas outras tecnologias no campo da Microbiologia, no final do século XIX, o século XX experimenta uma influência crescente dos saberes deste campo, até que, por volta de seu final, estabelece-se sua hegemonia no pensamento epidemiológico (SILVA, 2000).

Esta fase seria caracterizada por Fleck (2010) como a extensão deste Estilo de Pensamento. No caso particular do estudo aqui conduzido, é importante abarcar, dada a necessidade de formação de profissionais para implementarem medidas relacionadas às inovações técnicas referidas acima (medidas antissépticas em hospitais, vacinação em massa, pasteurização industrial de alimentos, produção industrial de quimioterápicos, exames de diagnóstico destas doenças), ao longo do século XIX (Tab. 3.1); estratégias de ensino e divulgação destes novos saberes, mesmo que ainda fora das instituições universitárias.

Adiante, serão referidos outros elementos que caracterizam estas estratégias, embora a visão fleckiana sobre a dinâmica da produção e transformação do conhecimento, sobretudo nesta fase de extensão, contribua para oferecer algumas pistas sobre elas. Na obra acima referida, o epistemólogo polonês afirma, por exemplo, que a introdução dos indivíduos, em determinada área de trabalho, possui um caráter mais propriamente doutrinário do que uma postura de incentivo ao pensamento crítico-científico. Diz o autor:

A aprendizagem – na ciência, como nas profissões, artes e religiões – é marcada por uma “sugestão de pensamentos puramente autoritária”. “Qualquer introdução didática, portanto, é literalmente uma ‘condução-para-dentro’, uma suave coação (FLECK, 2010, p. 155).

Tal avaliação está ligada a uma das características que o referido autor atribui ao EP: a tendência à persistência e à estabilização. Evidentemente, tal característica não poderia ser onipresente e onipotente, afinal, deste modo, a ciência não seria, como é, tão dinâmica. Na epistemologia fleckiana, a Circulação Intercoletiva de Ideias seria um fator decisivo nos processos de transformação dos EPs. Afinal, um microbiologista, como membro de qualquer coletivo de pensamento, integra também o coletivo universal exotérico do mundo cotidiano da vida (FLECK, 2010, p. 27). Este fator é fundamental para tencionar o EP no sentido oposto ao referido acima: a tendência à mudança.

As influências trazidas destes outros coletivos para dentro do EP carregariam, segundo a visão deste autor, deslocamentos ou alterações dos valores do pensamento, próprias da dinâmica da linguagem e seus significados. Tal variabilidade de significados, que, para os positivistas constituiria um problema, neste esquema explicativo, pelo contrário, ao exigir um esforço constante de comunicação eficiente entre coletivos, se constituiria em elemento que introduziria transformações.

Nesta dinâmica do EP, após uma fase inicial, de instauração, relativamente livre de críticas e problematização, começam a surgir, ainda durante a fase de extensão do EP, as primeiras complicações. No caso da Microbiologia, se poderia afirmar que, apesar de suas inegáveis contribuições, este paradigma traz consigo dois “defeitos de origem”: 1) incrimina peremptoriamente o parasito e conduz à ideia equivocada de que a sua eliminação do organismo do hospedeiro levará à cura das doenças infecciosas; ou seja, dá um sobrepeso a presença dos microorganismos que acaba por reduzir a importância relativa de fatores como o meio ambiente e o contexto