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Manifestações Contemporâneas sobre Concepções Históricas de Saúde

CAPÍTULO 3 ASPECTOS HISTÓRICOS DO ENSINO DE PARASITOLOGIA E MICROBIOLOGIA

3.3. MUDANÇAS NAS CONCEPÇÕES DE SAÚDE E DOENÇA

3.4.1. Manifestações Contemporâneas sobre Concepções Históricas de Saúde

Será feito um parêntese, neste momento, para apresentar dados empíricos sobre as visões de saúde dos participantes da pesquisa, considerando que este tema não será retomado em outro momento desta tese. Sendo assim, ressalte-se que parte dos resultados obtidos a partir da pesquisa empírica está sendo adiantado, deslocado para este item.

Serão feitas referências a nomes fictícios atribuídos aos oito docentes que preencheram o instrumento desta pesquisa, no caso o questionário nº 2. Os perfis acadêmicos e de formação serão detalhados adiante, juntamente com outros dados empíricos.

Aos docentes foram apresentadas diferentes assertivas que expressavam distintas visões de saúde, contidas no referido instrumento, construído a partir da adaptação, ao contexto da Parasitologia e da Microbiologia, do esquema explicativo de Barata (1985). Os dados obtidos a partir de suas respostas indicam, em geral, uma compreensão restrita sobre o tema.

Inicialmente serão analisadas as concepções expressas por três docentes que, pelas posições expressas no instrumento, se distinguiram dos demais: Rodrigo, Péricles e Luana.

Rodrigo posicionou-se, coerentemente, assumindo uma postura conservadora, mas não dúbia. O referido docente, em suas respostas, parece não relacionar questões sociais com a ocorrência de doenças infecto-parasitárias, expressando uma visão unicausal, que tanto poderia ser relacionada à visão higienista, dado que atribui, individualmente, aos sujeitos a responsabilidade pela ocorrência de doenças, quanto à biologicista, ao perceber nos microrganismos o papel de causadores das doenças. Expressa, em sua fala, ao abordar, durante a entrevista, um projeto de extensão que desenvolve, o modo como procede para lidar com os problemas de saúde:

A gente fala um pouco sobre microbiologia para crianças, né? A importância da microbiologia, a importância dos microorganismos. A gente procura desmascarar um pouco aquele mito de que bactéria é sinônimo de doença. Vírus, fungo é sinônimo de doença, a gente procura mostrar o lado bom do microorganismo, aquilo que pode nos ajudar e também o mal que ele pode nos causar (Rodrigo).

Pode-se perceber a relação entre esta compreensão e o modelo de transmissão-recepção. Em sua visão, o docente não inclui, como lembra Goldman (1972), a influência de outras dimensões da realidade (econômicas, sociais, políticas,

etc.) na constituição da consciência dos indivíduos. Como se pode depreender das concepções de ciência de Rodrigo, este docente, ainda que pareça compreender aspectos da dinâmica interna da ciência, ao posicionar-se sobre as interações desta com a sociedade, no entanto, parece concebê-las como não dialéticas. Nestas interações, adota uma postura instrumentalista, a partir de práticas baseadas no modelo de transmissão-recepção. Deste modo, para ele, bastaria “transmitir”, de modo eficiente, as informações sobre a prevenção das doenças para solucionar os problemas de saúde da população.

Péricles, outro docente cujas concepções foram consideradas tradicionais, é o único que possui formação na área médica, indicando, com suas respostas, ter uma compreensão mais elaborada de tais questões, expressando uma concepção mista entre a Medicina Social e a Multicausalidade, aderindo às visões mais contemporâneas de saúde, como a visão de determinação social da doença e, sobretudo, à da Medicina Social. Coerentemente, ao responder as assertivas apresentadas no questionário, recusa as visões mais simplistas, como a higienista e a biologicista, mas tende a concordar parcialmente com a visão de multicausalidade primitiva. Esta última é apresentada, no referido instrumento, a partir da seguinte afirmação:

A saúde é o equilíbrio entre fatores diversos e múltiplos que envolvem o hospedeiro, os vetores, o agente etiológico e o meio-ambiente. Por desequilíbrios centrados no hospedeiro ou no agente, ou por modificações do meio ambiente em direção ao hospedeiro ou ao agente, surge a doença. (BARATA, 1985, p. 5).

Luana, a docente com formação mais sólida na área de ensino uma vez que atua como especialista no Ensino de Microbiologia, publicando artigos científicos, atuando como conferencista em eventos desta área, além de pesquisar e idealizar jogos educativos também voltados para o ensino desta disciplina entre estudantes da educação básica. A docente, dentre os participantes da pesquisa, mesmo não tendo realizado sua formação inicial na área médica, tal como Péricles, evidenciou uma compreensão mais elaborada de saúde, recusando igualmente as visões mais ingênuas, como as unicausais. Sua posição esteve entre visões sem um foco privilegiado para suas ações, como a Multicausalidade Primitiva e da Rede de Causalidade, por um lado, e visões mais centradas na determinação social da doença, como a da Medicina Social.

Ao abordar estes temas ainda, revela concepções de educação que compreendem os limites do modelo da transmissão-recepção:

Ainda que se fale: Pô! Mas é só lavar as mãos. Não é só lavar as mãos, né? A gente sabe disso, que entre você conhecer o fato e passar a mudar o seu comportamento

em relação aquilo tem uma distância enorme. E eu acho que na microbiologia nós temos exemplos claríssimos disso: a questão da AIDS. Todo mundo sabe que tem que usar preservativo. Não é novidade pra ninguém. Continua crescendo a contaminação pela AIDS. As doenças infecciosas de contaminação oral têm alguns dados importantes sobre quanto diminuiria essas doenças se as pessoas lavassem mais as mãos. E não se faz, né (Luana)?

Todos os demais docentes (Marcela, Ângelo, Suely e Lídia) apresentaram concepções indefinidas, reconhecendo a influência das questões sociais na causação das doenças infecto-parasitárias, mas aderindo ingenuamente, umas vezes, a modelos que recusam tal influência, como as visões biologicista e higienista e outras vezes a modelos multicausais menos elaborados e que dão menos ênfase aos aspectos sociais. Concepções de saúde não emergiram nas falas destes sujeitos ao longo das entrevistas, já que, como afirmado, ao descrever os procedimentos metodológicos, não se utilizou este instrumento para investigá-las, mas tão somente um questionário com questões fechadas.

No caso de Luana, além dos dados do questionário, em diversos momentos, ao responder questões relativas a outros temas, a docente abordou temas dos quais se podem extrair elementos de suas concepções de saúde. O mesmo aconteceu no caso do docente “X”. Num dos trechos de sua entrevista, ao falar sobre os determinantes das doenças parasitárias, o participante associa os processos saúde-doença a questões de ordem social:

Um pouco negligência das autoridades, mas isso tá ligado à vida econômica, a vida das pessoas, a desligamento. “Ah! Não tenho nada a ver com isso, deixa o guardinha não sei que” O cara não deixa o cara entrar pra ver se ele tem latinha, ele não presta atenção. Grande parte disso é falta de colaboração da população. E não adianta ficar... dizer “ai é falta de educação sanitária! Coitadinha da população” Esse negócio de coitadinha é relativo. A gente ta cansado de ver na televisão, em folhetinhos e não sei que. Não deixe lata, não deixe garrafa, não deixe não sei que. E continua fazendo. Continua relaxando. Se você não relaxa o seu vizinho relaxa. Então precisa colaboração da população. Talvez colaboração com educação e com repressão (professor “X”).

Mas ainda que identifique condicionantes sociais, o docente explicita uma visão que responsabiliza, principalmente, a negligência (o “desligamento”) da população, já que, segundo ele, explicitando uma compreensão ingênua do processo ensino-aprendizagem, o acesso à informação seria suficiente para tornar os indivíduos sujeitos a doenças parasitárias, conscientes sobre as medidas profiláticas. Situação similar pôde ser observada na fala anterior, de Luana, quando falou sobre a prevenção da AIDS.

Além disso, o docente refere-se a uma única medida, que seria eficiente para a erradicação da doença: a eliminação dos vetores. Esta percepção é explicitada em outros momentos da entrevista, ao referir-se a doenças como a malária, por exemplo. Importante, neste caso, lembrar que este sujeito é especialista em biologia de insetos vetores de doenças parasitárias.

Deste modo, esta visão que, embora, em tese, seja multicausal, ao focar numa única medida eficiente, se aproxima de concepções unicausais. Em certos aspectos, aproxima-se da visão higienista que caracterizou a saúde pública brasileira no início do século XX, pautada no combate aos parasitas e vetores e na qual, medidas repressivas, a exemplo do que sugere o docente e que, segundo Valla (2000) caracterizaram as políticas públicas em saúde na América Latina. Um exemplo brasileiro diz respeito às ações de Oswaldo Cruz e que culminaram na popular “Revolta da Vacina”, no início do século XX. Tal postura é reforçada em outro trecho de sua entrevista, ao referir-se ao controle da leishmaniose visceral:

Há quem diga que matar os cães na leishmaniose visceral não funciona, mas é aquele negócio, você tem que matar! Você não vai deixar uma fonte de leishmania dando sopa. Você quer um cachorro positivo no seu quintal? Não, não quero. Então porque você vai deixar o cachorro positivo no fundo da casa do pobre coitado. Ah! Porque não vai resolver, porque coitadinho do cachorro, porque não sei que. Se algum dia tiver leishmaniose visceral aqui na ilha vai ser uma encrenca. E essas sociedades protetoras dos animais fazem um inferno (professor “X”).

Neste trecho, tal postura repressiva é associada, pelo docente a uma vitimização da população, na qual o envolvimento e a participação popular a partir de processos educativos não são levados em conta. Este tipo de ação, vertical, baseado no tratamento em massa da população, cujo protagonismo é atribuído às “autoridades” e que é próprio da visão higienista, é sugerido também por outra docente:

Existem remédios, mas não existem programas. Deveria ter uma medicação em massa pra erradicar

algumas parasitoses. Não adianta um ou dois, se os restantes continuam no mesmo ambiente contaminado, né? Tomando água contaminada, então eu acho que faltam programas, eu acho que falta visão por parte das autoridades que são as que deveriam se encarregar do básico, de saneamento, água de boa qualidade (professora “Y”)...

Vale lembrar que a gênese da visão higienista assenta-se no período histórico do surgimento do Paradigma da Microbiologia, durante a discussão entre contagionistas e não-contagionistas, referida por Verdi (2002) e citada neste capítulo. Afirmou-se ainda, no referido trecho, que o citado autor situa o higienismo na tentativa de conciliação entre as duas correntes. Por um lado, nesta visão, não são mais os miasmas responsabilizados pela causação das doenças, mas, por outro, as medidas de higiene próprias da lógica miasmática, influenciaram políticas públicas, reformas urbanas e sanitárias.

Em outro estudo realizado com docentes universitários que trabalham com temas relativos à saúde, Briani (2000) investigou o caso específico dos docentes de cursos de Medicina. Na referida investigação, o autor percebe uma falta de abertura para a influência dos conhecimentos advindos de outras áreas, indicando como consequência, uma compreensão de saúde limitada, muitas vezes, preconceituosa e centrada na doença, ao invés do doente.

Sobre este modelo centrado na doença e, portanto, em sua repercussão no corpo, Queiróz (2000), por exemplo, atribui sua gênese ao esquema cartesiano, à divisão corpo e mente, sugerindo, alternativamente, o papel central (ainda que não exclusivo) dos aspectos mentais na determinação da doença.

A visão cartesiana, desintegrada, conduz ao fato, ao qual se chama a atenção, de que valores como a saúde, a justiça e a igualdade perderam sua transparência, poder de evidência e força de integração (TARDIF, 2000, p. 9). Como única alternativa possível para recuperar esta força de integração, o autor sugere a promoção de reflexões envolvendo os fins almejados na prática profissional, a serem desenvolvidos ao longo da formação dos estudantes. Tal sugestão, segundo ele, oporia o pensamento hegemônico tecnoprofissional, o qual para o autor, desconsidera os fins da educação, situando-se apenas no âmbito dos meios.

Na mesma linha, Cyrino e Toralles-Pereira (2004), indicam que há um reconhecimento internacional sobre a necessidade de mudanças educacionais na formação do profissional em saúde, rompendo com estruturas que, segundo as autoras, encontram-se cristalizadas no modelo de ensino tradicional. Apontam, alternativamente, para uma formação que possibilite o desenvolvimento de

competências que permitam recuperar a dimensão essencial do cuidado: a relação entre humanos.

Ceccim et al. (2008) apontam, como fundantes deste modelo tradicional na educação em saúde, a prática de consultório, pelo atendimento individual baseado em diagnóstico-prescrição e no curativismo biologicista, que seriam oriundos, segundo os autores, de um imaginário liberal-privatista, que percorre a educação em todos os níveis de ensino.

Illich (1975) retoma as origens deste imaginário, apontando o modo industrial de produção e sua repercussão na medicina moderna a partir do modelo hospitalar. Aponta como direção destas mudanças um sentido contrário à capacidade natural de promoção da própria saúde.

No campo da educação em saúde, Gazzinelli (2005) afirma ainda que neste modelo biologicista, hospitalar, centrado na doença, as ações projetam-se na perspectiva de reificar o público alvo e, portanto, nesta lógica, não seria a desigualdade que deveria mudar, mas os sujeitos, em “ações específicas para”, “educação para a saúde”. O autor, entretanto, reconhece o desenvolvimento surpreendente e uma reorientação crescente das reflexões teóricas e metodológicas neste campo de estudo (Gazzinelli, 2005, p. 200). Apesar disso, aponta um hiato entre as pesquisas e as intervenções educativas concretas.

Tais práticas estariam em sintonia com o modelo de transmissão- recepção, com a educação bancária, ineficazes, portanto para promover transformações na saúde da população. O autor, acima referido, aponta os estudos de Uchoa et al. (2000), desenvolvidos em zona rural de Minas Gerais, os quais mostram a pouca efetividade da informação “transmitida” sobre esquistossomose para a transformação dos saberes instituídos sobre a prevenção desta doença.

A prática referida pelo autor, de “transmissão” de informações sobre prevenção de doenças, é frequente em livros, tais como Leão (1997); Neves et al. (2005) e em manuais, p. ex. Brasil (2000) que abordam as doenças infecciosas e parasitárias. Nestes, medidas simples referidas a partir de abordagens, frequentemente, higienistas são indicadas como eficientes para debelar tais infecções.

Este modelo, antidialógico e instrumental, para Gazzinelli et al. (2005), poderia ser superado, caso o absolutismo e autonomia do saber científico fossem substituídos por um modelo dialógico que levasse em conta as representações e os saberes do senso comum. Apesar da importância destes elementos, ressalte-se que tal modelo deve considerar a importância de superá- los quando houver necessidade. Na visão do autor supracitado, no estudo a que se fez referência, a superação do modelo vigente não ocorreria pela constituição conservadora dos profissionais de saúde, advinda, sobretudo, dos atuais processos formais.

O modelo antidialógico, ainda que hegemônico, não é o único no campo da saúde. Queiróz (2000), investigando as concepções de saúde de docentes universitários da área de saúde, envolvidos em práticas alternativas, observou entre estes sujeitos uma compreensão distinta. Nesta visão percebe-se a complexidade dos fenômenos da doença e da cura, que incluem aspectos físicos, psicológicos, sociais, culturais, ambientais e espirituais. Para os participantes desta investigação, portanto, perceber tais fenômenos a partir de apenas uma destas dimensões constitui percepção parcial e incompleta, como é o caso da medicina científica ocidental moderna.

Importante destaque na visão de mundo destes docentes: a superação de uma visão parcial, como a mecanicista, não supõe a sua refutação, mas a sua transcendência. Por isso, compreendem que alternativas não passam pela negação, por exemplo, do uso dos medicamentos industrializados, da medicina alopática, mas da sua inclusão num modelo integrado com outros saberes médicos. Dividiram-se, entretanto, na adoção de modelos multicausais e de determinação social.

Deste modo, entre os participantes desta pesquisa, poderiam ser caracterizados, dois distintos perfis, sobressaindo enquanto constituintes da consciência real efetiva: a) um minoritário, expresso em alguns docentes, que, possuindo uma visão biologicista e medicocêntrica47, desprezam a influência do meio social; adotam, por isso, práticas docentes que buscam, a partir da transmissão-recepção, promover mudanças de atitude em relação à prevenção de doenças e um “esclarecimento” sobre os processos biológicos implicados nos processos saúde-doença, na lógica de que a doença inscreve-se no corpo e; b) outro mais difundido, no qual, o biologicismo também está presente, mas em que se consideram relevantes os aspectos sociais na determinação das doenças, numa compreensão limitada destes, recorrendo a esquemas simplistas e ineficazes de “educação para a saúde”.

Referimo-nos, entretanto, a concepções não-hegemônicas, como as expressas por Luana, que poderiam, como poderá ser observado nos capítulos seguintes, caracterizar elementos de uma consciência máxima possível na docência de parasitologia, microbiologia e micologia. Ações no sentido de promover práticas de educação em saúde, entre docentes destas áreas, baseadas nestes pressupostos, demandariam a inclusão destes elementos em programas de formação, sobre os quais se discorrerá também nos próximos capítulos.

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que associa a medicina à saúde enquanto disciplina e profissão exclusivas (AMENDOEIRA, 2009).

3.5. O ENSINO DE PARASITOLOGIA E MICROBIOLOGIA NO