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ESTABELECIMENTO DA PARASITOLOGIA E DA MICROBIOLOGIA COMO ÁREAS DO CONHECIMENTO

CAPÍTULO 3 ASPECTOS HISTÓRICOS DO ENSINO DE PARASITOLOGIA E MICROBIOLOGIA

3.1. ESTABELECIMENTO DA PARASITOLOGIA E DA MICROBIOLOGIA COMO ÁREAS DO CONHECIMENTO

A adoção dos termos Parasitologia e Microbiologia visa simplificar a nomenclatura utilizada, fazendo o uso dos nomes destas que são as áreas mais abrangentes e consagradas dentre as que estudam as relações entre parasitos e humanos. Vale ressaltar, entretanto, que existem muitas denominações de áreas e/ou subáreas envolvidas nos estudos dos organismos parasitas do homem, como, Micologia, Bacteriologia, Virologia, Artropodologia, Helmintologia, entre outros. Entretanto, os limites de cada uma destas subáreas, até os dias de hoje, são frágeis.

Em diversos cursos das áreas biológicas e da saúde oferecidos em instituições públicas de ensino superior brasileiras, estes conteúdos são ministrados, majoritariamente, a partir de duas disciplinas: a Microbiologia e a Parasitologia. Aquela, em geral, engloba os conteúdos relacionados a bactérias, fungos e vírus, enquanto esta última ocupa-se de protozoários e metazoários. O título Biologia de Microorganismos também foi utilizado com frequencia para designar esses temas (ODA; DELIZOICOV, 2011).

Tal distribuição de conteúdos não ocorre de maneira uniforme na Microbiologia, na qual há nítida predominância de temas relacionados a bactérias, em detrimento de fungos e vírus. Para Wainwright e Lederberg (1992), os fungos representam Cinderelas na Microbiologia, atribuindo tal constatação ao fato de que fungos (assim como protozoários) não constituem a causa de doenças relevantes nos países “desenvolvidos”. Além disso, como os fungos representam importantes causadores de doenças em plantas, criou-se uma íntima associação entre os fungos e a Botânica.

Os referidos autores não incluem os vírus entre suas Cinderelas, sendo possível inferir que a realidade observada no ensino destas disciplinas em universidades brasileiras por Oda e Delizoicov (2011), é distinta do quadro observado por Wainright e Lederberg (1992), ao tratar da investigação em Microbiologia nos países cientificamente “mais desenvolvidos”. No primeiro caso, os autores identificam uma predominância do conteúdo relativo a bactérias sobre os demais grupos, enquanto, para os autores americanos, os do segundo destes estudos, a Virologia, que possui evidente importância na Microbiologia, sendo este, por exemplo, um dos temas mais agraciados com o Prêmio Nobel, nesta área do saber.

Tal diferença de status nas universidades brasileiras investigadas por Oda e Delizoicov (2011), parece indicar que a Virologia está sendo menos representada entre os microbiologistas de universidades brasileiras se comparada à realidade dos países “desenvolvidos”. A julgar pelos docentes que constam nos sítios eletrônicos de cinco grandes instituições públicas de ensino superior

brasileiras, de fato, a Virologia possui uma representatividade menor nos departamentos de Microbiologia em quase todas estas universidades (com exceção de uma), quando comparado às áreas de Bacteriologia e Imunologia.

Os protozoários, outro grupo de Cinderelas apontado por Wainwright e Lederberg, no estudo referido anteriormente, também se apresentam, no Brasil, com status distinto, possuindo grande prestígio, provavelmente por ter sido o Trypanosoma cruzi, o carro-chefe das investigações que culminaram, no início do século XX, na constituição de um dos mais importantes grupos de pesquisadores no Brasil: os médicos-sanitaristas do Instituto de Manguinhos, atualmente Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), os quais contribuíram para o prestígio e reconhecimento internacional do Brasil no campo das pesquisas em Microbiologia e Parasitologia (MASCARINI, 2003).

Considere-se o período do Renascimento compreendido entre os séculos XIII e XV, como marco inicial desta investigação, e a formação em Parasitologia, de profissionais como os médicos, por exemplo, como tarefa que já ocorria há séculos. A escolha de tal período se dá em razão de ser exatamente nele que as universidades européias, ainda embrionárias, tornam-se efetivamente órgãos de elaboração do pensamento medieval, unificando o ensino superior em um só órgão (LUCKESI et al., 1989).

É importante destacar o recorte ocidental deste estudo, já que estas mudanças não dizem respeito a outras regiões geográficas. Para Charle e Verger (1996), por exemplo, as universidades sempre representaram apenas uma parte do que poderíamos denominar, de modo amplo, de ensino superior. Segundo estes autores, com o advento da escrita, muitas civilizações, antigas ou exteriores à Europa ocidental, criaram, sob uma forma e outra, um ensino superior. Segundo o autor, Índia, China, Egito e Pérsia são alguns exemplos de povos que possuíam, desde a Antiguidade, espaços para a formação superior. E, mesmo na Europa, as primeiras universidades surgiram em período anterior ao Renascimento.

Dado este quadro de recortes pouco precisos na definição de ensino superior, serão apresentados inicialmente, alguns fatos indicadores da construção e do registro de saberes sistematizados sobre as relações entre os organismos infecciosos e parasitários e o ser humano, constituintes, no futuro, do corpo dos conhecimentos da Parasitologia e da Microbiologia.

Os saberes relacionados a microrganismos e outros seres parasitas ou potencialmente parasitas do homem são anteriores ao Renascimento. Há 3.000 anos antes de Cristo, como aponta a revisão histórica realizada por Cox (2002), o ensino da temática sobre as relações entre seres humanos e organismos parasitas inicia com os textos clássicos de médicos gregos, indianos, árabes ou chineses que possuíam, além do cunho informativo, uma função formativa para os médicos.

Nestes documentos clássicos, que incluem o Papiro de Éber, o Corpus Hippocratorum, escritos chineses, árabes (de médicos como Rhazes e Avicena), indianos e romanos, existem referências a sinais e sintomas de manifestações atribuídas a espécies que frequentemente parasitam o ser humano. Uma das primeiras referências à lepra, por exemplo, é feita no Livro Sagrado da Índia, que data de mil e quinhentos anos antes de Cristo (BARRETO, 1993). O livro de Jó, do Antigo Testamento, cuja origem é estimada em 2.000 anos a.C., também menciona a lepra (SALAZAR, 2000).

Embora os organismos microscópicos ainda não pudessem ser visualizados, tais registros clássicos na literatura médica da antiguidade indicam que tanto os médicos quanto a população em geral já estavam conscientes da presença, no organismo humano, de grandes e conspícuos parasitas, como a lombriga, Ascaris lumbricoides. Ademais, também conheciam o quadro etiológico de doenças causadas por microorganismos, como a malária, a sífilis e a lepra, por exemplo. Além disso, conheciam outras manifestações macroscópicas dos microorganismos, como a fermentação, a formação do “lodo”, entre outras. Como desconheciam os microrganismos, os gregos, por exemplo, atribuíam a miasmas adquiridos em pântanos a causa das doenças infecciosas.

Durante este período predominava a helênica Teoria dos Miasmas, referida por Hipócrates em Ares, águas e lugares. Este defendia que doenças como a malária, entre outras, eram obtidas a partir do contato com partículas exaladas de lugares como pântanos.

Desde a Antiguidade, acreditava-se no papel do meio ambiente na produção de endemias, muito embora não se conhecessem ainda os agentes biológicos envolvidos na produção de doenças infecciosas, já que aparelhos para a visualização de organismos microscópicos até então não haviam sido produzidos. Esta tendência, de valorizar o papel do meio ambiente na produção de endemias, inverteu-se após o advento da microscopia, a partir do qual, a relação entre meio ambiente e doenças parasitárias parece ter sido esquecida, conforme apontam Arrizabalaga et al. (1997) e como será exposto mais adiante. O pensamento de um médico deste período ilustra o saber renascentista prevalecente nas primeiras universidades. Girolamo Fracastoro (1478-1553) é este médico e foi formado pela Universidade de Pádua, uma das melhores escolas médicas da Europa. Seu mais famoso trabalho foi um poema, publicado em três livros, denominado Syphilis sive morbus Gallicus, de 1530. Segundo Egerton (2004), foi mais famoso por suas qualidades literárias do que pelos méritos científicos. Já para Oliveira (2007b), foi neste famoso poema que o autor cunhou o termo sífilis.

Importante ressalva: Fracastoro foi um dos primeiros pensadores a sugerir que não eram os miasmas, mas “diminutos animais”, os verdadeiros

agentes causadores das doenças, divergindo assim, do pensamento corrente à época. Apesar desta posição avançada, ao tratar de aspectos como o tratamento das doenças, por exemplo, Fracastoro não diferia substancialmente dos pensadores de seu tempo.

Em relação ao tratamento da sífilis, sua especialidade, diz o autor: Uma mistura de tomilho, lúpulo, erva-doce, salsinha, e outras ervas pode ajudar (FRACASTORO 1984, II, p. 174), mas se não for efetiva, então tente uma mistura de estoraque, sulfeto de mercúrio, chumbo, antimônio, e grãos de incenso (FRACASTORO, 1984, II, p. 260). Entretanto, outro método de cura vem da terra, onde a doença se origina: guáiaco ou pau-santo (FRACASTORO, 1984, III, s.p.).

Dado que a atividade farmacêutica, na época, restringia-se, na Europa, às boticas ou apotecas, segundo informa o Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP, 2011a), já que as Ciências Farmacêuticas somente se desenvolveriam algum tempo mais tarde (DIAS, 2006), não seria de se esperar tal habilidade por parte de Fracastoro. Para Egerton (2004), nenhuma destas receitas é efetiva e, além disso, mercúrio pode levar algumas feridas a reduzir, mas à custa do envenenamento do corpo. O uso do mercúrio, no entanto, parece ter servido para que médicos empiristas, como Sudhoff, passassem a reconhecer, entre os doentes venéreos, um grupo que, tratado desta forma, reagia positivamente, contribuição importante, já que o mercúrio era um medicamento de amplo espectro, usado no tratamento de doenças dermatológicas, como a sarna e a lepra (FLECK, 2010).

Apesar disso, ao desconhecer a existência de microorganismos parasitas, Fracastoro, Sudhoff e grande parte dos pensadores renascentistas utilizava medicamentos de toxicidade elevada e pouca efetividade. Suas estratégias terapêuticas consistiam, grosso modo, na experimentação, por tentativa e erro, de diversos fitoterápicos e outras substâncias tóxicas.

Outra contribuição para a compreensão dos saberes renascentistas sobre a relação entre o ser humano e os organismos parasitas traz, novamente, o epistemólogo polonês Ludwik Fleck, em seu estudo sobre a história e a epistemologia do conceito de sífilis, ao revelar outra dimensão do conhecimento deste período, a crença na Astrologia. Em sua obra “Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico” (FLECK, 2010), buscando enfatizar a importância da astrologia para o que denomina de Estilo de Pensamento deste período, rememora aporte de outro autor sobre a temática:

A maioria dos autores supõe que a conjunção de Saturno e Júpiter em 25 de novembro de 1484,

sob o signo de Escorpião e na Casa de Marte, foi a causa do mal venéreo. O bom Júpiter sucumbiu ante os malignos planetas Saturno e Marte. O signo de Escorpião, ao qual estão submetidas às partes sexuais, explica porque foram os genitais o primeiro ponto afetado pelas novas enfermidades (BLOCH, 1901, p. 138).

Tamanha era a influência da Astrologia no pensamento médico deste período histórico que mesmo o Tratado sobre o morbus gallicus (De morbo Gallico, tractatus), sucumbe ante os astros:

Durante longo tempo vimos surgir novas enfermidades, tanto quanto desapareceram outras velhas (...) E além do fato de que a origem da enfermidade (sífilis) deriva-se da posição das estrelas, esta é fomentada, por vezes, especialmente pelo signo de Escorpião que rege as zonas pudendas (Rinius, s.d., p. 18).

Apoiado nestes conhecimentos, as doutrinas religiosas, que consideravam a sífilis um castigo pelo “prazer pecaminoso”, conferiram a estes conhecimentos astrológicos um significado ético especialmente marcado, atribuindo a doença a deus (FLECK, 2010). Neste período:

a doença pendia acima da cabeça do homem medieval. No período entre duas grandes epidemias que marcam o começo e o ocaso da idade média, a peste de Justiniano, em 543 (d.C.), e a Peste Negra, em 1348 (d.C.), doenças propagaram e arruinaram a Europa e o litoral mediterrâneo. Entre essas doenças estavam lepra, peste bubônica, varíola, difteria, sarampo, influenza, tuberculose, escabiose, ergotismo, erisipela, antraz, tracoma, malária e outras, e as pessoas, agindo segundo a mentalidade reinante, tentavam proteger-se, valendo-se da união de ideias médicas e religiosas (Rosen, 2006 apud OLIVEIRA, 2007b, p. 7).

Faz-se necessário aprofundar o conhecimento histórico sobre a sífilis, para compreensão dos saberes deste período. O que era esta doença para os médicos desta época? Como era identificada nosologicamente? Havia um quadro de sinais e sintomas bem descritos para diferenciar a doença de outros acometimentos venéreos? A resposta é não. O termo sífilis era, inclusive, segundo Fleck (2010) utilizado como mal venéreo por antonomásia e abarcava outras doenças como o cancro mole, a gonorréia e o linfogranuloma inguinal.

Além disso, segundo este mesmo autor, havia duas entidades nosológicas no caso da sífilis. Uma delas era de caráter ético-místico, e a outra empírico-terapêutico, as quais eram ora concordantes, ora discordantes, mas ambas presentes em um mesmo período histórico.

Nestes tempos, indica ainda o referido estudo, as dificuldades para o diagnóstico da sífilis apresentavam-se também em outras doenças infecciosas, como o lúpus, a paralisia, as febres palustres, o tifo, a escrofulose, a gonorréia e o cancro mole, por exemplo. Sem agentes etiológicos definidos, o diagnóstico destas doenças tornava-se confuso.

Apesar da influência de conhecimentos hoje considerados mera superstição na ciência moderna, alguns traços do pensamento deste período ainda permanecem. Lembra-se que a revolução científica vindoura, decorrente do uso de instrumentos óticos sofisticados, não introduziu os conceitos de infecção e doença infecciosa, já existentes na medicina antiga. A microscopia significou a introdução de uma tecnologia que permitiu produzir evidências irrefutáveis da etiologia infecciosa das doenças endêmicas e epidêmicas (SILVA, 2000, p. 142).

O referido autor usa o termo Paradigma da Microbiologia para designar esta nova ciência que despontava com o advento da microscopia. Neste período histórico, a existência dos microorganismos era questionada e a invenção do microscópio, atribuída a Leeuwenhoek, no final do século XVII (Tabela 3.1, item 3.2), contribuiu para a superação desta problemática. Esta transformação não foi imediata e a visualização destes microorganismos não foi suficiente para provar sua capacidade de infectar e causar doenças aos seres humanos, pois, para muitos cientistas à época, isto contrariava a Teoria da Geração Espontânea.

Além da visualização dos microrganismos, tal tecnologia contribuiu também para ampliar-se o conhecimento sobre os mecanismos de transmissão e ciclos biológicos de certos parasitos macroscópicos, como os grandes vermes, já que os ovos e larvas destes eram desconhecidos, por também possuírem dimensões microscópicas.