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Entre o Estado e o mercado: Novos modos de governação dos Estados e da

Capítulo I: A Globalização e Novos Modos de Governação da Educação

1.2 Entre o Estado e o mercado: Novos modos de governação dos Estados e da

Com o virar do século, a vertente neoliberal mais radical atenuou-se e procurou-se um equilíbrio entre o Estado e o mercado (Barroso, 2005a; Groppo & Martins, 2008). Cabendo ainda aos Estados-nação um papel relevante na definição das políticas, os desafios colocados pela globalização dos últimos 30 anos aceleraram as mudanças e criaram ambientes caracterizados pela incerteza e complexidade dos problemas, multiplicidade de atores e interesses envolvidos, conduzindo a novas formas de governar os Estados assente no conceito de governança4. A

governança surge como um novo paradigma de regulação constituído por três agentes-chave: o Estado, o Mercado e a Comunidade.

Segundo Guerra (2006, p. 16), a ideia de governança resultou quer de uma vontade de “questionar a inépcia das políticas tradicionais” quer da necessidade de apelar ao envolvimento e participação de atores indispensáveis ao processo de mudança social e, desse modo, “aproximar os mecanismos de gestão da rapidez e da flexibilidade exigível pelos processos de mudança”. Contudo, Guerra chama a atenção para os desafios que este conceito comporta. Identificando três deles, “gestão da complexidade”, “necessidade da eficácia” e “legitimidade das decisões”, refere que, dependendo “do tipo de governo ou do jogo de forças”, a sua valorização pode diferir de país para país e no interior de cada um destes (2006, p. 17).

Na opinião de Castells (2005, p. 25; 2008, p. 89), os Estados estão agora comprometidos num processo de “governação global mas sem um governo global”. Como tal, os Estados

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O termo “governança” ou “governação”, expressão também utilizado por alguns autores com o mesmo significado, é a tradução e adaptação do francês “gouvernance” ou do inglês “governance” e distingue-se de governo “government”.

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“aumentaram a partilha de soberania” e “comprometeram-se em instituições formais e informais, internacionais e supranacionais que, realmente, governam o mundo” (Castells, 2005, p. 25). Do ponto de vista de Dale (2009, p. 124) tal significa que “the state now governs through means other than ‘policy’ and in concert with a range of other institutions rather than alone”.

Segundo Boaventura de Sousa Santos (2001, p. 44), a governança tem subjacente um novo modelo de regulação social e económica “assente em parcerias governamentais e outras formas de associação entre organizações governamentais, para-governamentais e não-governamentais, nas quais o aparelho do Estado tem apenas tarefas de coordenação, enquanto primus inter pares”. Assim sendo, o Estado, no seu novo papel, articula, regula e coordena, ou seja, assume “a definição dos contextos, condições e parâmetros para a negociação e confronto de interesses sociais” (Antunes, 2006, p. 68). Noutros termos, o Estado desempenha o papel de “elaborador de agenda, reunindo à volta da mesma mesa os jogadores apropriados e os parceiros certos, facilitando, negociando, mediando soluções para os problemas públicos, muitas vezes através de parcerias entre o público, o privado e o chamado terceiro sector” (Bilhim, 2008, p. 120), mas transferindo o controlo direto para outras entidades e atores, como “agências de avaliação, certificação ou de acreditação”, como Antunes (2006, p. 88) sublinha.

Do ponto de vista de Barroso (2006, p. 65) o novo papel “de um Estado que deve equilibrar a acção das diversas forças em presença” e “continuar a garantir a orientação global e a transformação do próprio sistema [educativo]”, assente na ideia de “governance” e de “metagovernance”, traduz-se no desempenho do papel de “coordenador das coordenações” passando de “burocrata e garante da ordem universal a regulador das regulações e compositor da diversidade local e individual”.

De que modo este novo papel do Estado no processo de governança veio alterar a sua relação com a educação? Em que medida se faz sentir a influência da globalização na educação nos diferentes Estados? A pertinência destas questões tem preocupado a comunidade académica e tem incentivado o desenvolvimento da investigação no âmbito da educação comparada, existindo hoje uma diversidade de perspetivas que variam também consoante os enfoques5. Dale (2004) fornece uma abordagem comparada bastante pormenorizada de duas dessas perspetivas: a Agenda

Globalmente Estruturada para a Educação (AGEE), defendida por Dale, e a Cultura Educacional Mundial Comum (CEMC)6, de Meyer, que, de resto, têm em comum o facto de ambas enfatizarem a influência de fatores supranacionais no desenvolvimento dos sistemas educativos nacionais.

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Nóvoa (1995), no seu texto Modèles d’analyse en éducation comparée: Le champ et la carte apresenta o mapeamento do campo da educação comparada com sete configurações correspondentes aos principais modelos adotados pelos autores da segunda metade do século XX.

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A abordagem da relação entre globalização e educação pela teoria do grupo liderado por John Meyer, CEMC, assenta na existência de uma cultura mundial comum, ou seja, na existência de modelos que os

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19 A perspetiva da AGEE defende a existência de uma agenda supranacional que se traduz em alterações de padrão―combinação de escalas, supranacional ou transnacional, nacional e subnacional ou local―e de formas governança―padrão e forma de regulação compatíveis com a forma de coordenação de mercado―induzidos por efeitos indiretos na governança da educação (Dale, 2004; 2010). A ideia central da AGEE é a de que o que está em jogo é a existência de forças económicas que operam globalmente no sentido de “romper, ou ultrapassar, as fronteiras nacionais” (Dale, 2004, p. 426). Neste sentido, a globalização é conceptualizada como um projeto económico, cultural e político que se guia pela “necessidade de manter a reprodução do sistema capitalista” (Dale, 2004, p. 436) e a “posição hegemónica que nele detêm os estados mais poderosos” (Afonso, 20011, p.40). Assim sendo, a globalização é um “processo complexo frequentemente contraditório” que gira em torno de três grandes áreas político-económicas, ou três grandes capitalismos transnacionais, “Europa”, “América” e “Ásia”, que “partilham a preocupação com o controlo e concordam sobre certas regras do jogo” cujo motor é a “procura do lucro” (Dale, 2004, pp. 436, 437) . Ora, a AGEE discute os processos que levam os Estados a interpretarem e a responderem a uma agenda comum, imposta por alguns Estados sobre outros, e que tem efeitos, ainda que indiretos, na governança da educação (Dale, 2004). Este modelo admite que se discutam as especificidades nacionais que resultam dos processos de regulação que atuam no interior dos Estados e que necessariamente se articulam com os processos de regulação supranacionais (Afonso, 2001, p. 40).

Pese embora as orientações e decisões tomadas supranacionalmente priorizem os problemas e possa até admitir-se, em linha com outras perspetivas, que por vezes e em parte, definem um

mandato para a educação―aspetos mais evidentes em alguns países da União Europeia,

nomeadamente da periferia ou semiperiferia, incentivados pela proliferação de estudos e projetos comuns e partilhados―esse eventual mandato não é explícito, pois não funciona, pelo menos nos países centrais do sistema mundial, como uma imposição de uns Estados sobre outros7. A sua ação faz-se geralmente de forma indireta, lenta e difusa e por mediação dos Estados nacionais, pois trata-se de uma “globalização de baixa intensidade” (Santos, B. S., 2001, p. 91), conceito que Teodoro (2001) reivindica para caracterizar as políticas educativas, tomando como exemplo o caso português no contexto europeu.

Alguns estudos no âmbito da educação comparada têm vindo a centrar mais a sua atenção nos modos de regulação dos sistemas educativos nacionais, assinalando a existência de uma convergência nestes processos de regulação que aponta no sentido da presença de uma regulação Estados-nação tendem a reproduzir de modo isomórfica, sujeitando de forma determinante os seus sistemas educativos às orientações emanadas supranacionalmente.

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Por contraste com o que acontece, por exemplo em África, onde a relação entre a globalização e educação se faz por institucionalização da influência internacional e descontextualizados (Teodoro, 2001).

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transnacional. É o caso, por exemplo, das conclusões obtidas na investigação, coordenada por

Barroso (2005a), que foi realizada em cinco países europeus, Portugal, Inglaterra, França, Hungria e Bélgica, no âmbito do projeto Reguleducnetwork (Changes in regulation modes and social production of inequalities in educational systems: a European comparison). Neste estudo registou- se uma convergência em torno de dois referenciais de regulação distintos: o “Estado avaliador” e o “quase-mercado”. No entanto, as políticas educativas nesses estados não eram idênticas. Como os autores sublinham, “grande parte da influência externa se centra mais no processo de tomada de decisão política e controlo da sua execução, do que propriamente na imposição de modelos e soluções comuns para a organização e funcionamento dos sistemas educativos” (Barroso, 2006, p. 48). Nesta mesma linha, os trabalhos de M. Alves (2010a), Seixas (2001), Teodoro e Estrela (2010), mostram como as organizações internacionais, nomeadamente a OCDE e a UE, exercem uma função reguladora, de controlo e influência, sobre os sistemas educativos nacionais que, na perspetiva de Teodoro (2001, p. 151), deixam muitas vezes “um leque diminuto de opções aos Estados nacionais”. Nesta ordem de ideias, as organizações supranacionais criam constrangimentos e oportunidades para o desenvolvimento de políticas educativas, quer através de programas como o PISA (Programme of International Student Assessment), o TIMSS (Trends in International

Mathematics and Science Study), o PIRLS (Progress in International Reading Literacy Study), ou

de outras medidas específicas e respetivo financiamento8, quer mediante a construção de indicadores utilizados numa perspetiva normativa e de definição de metas, como sucede atualmente no âmbito do processo de construção de um Espaço Europeu de Educação. Partilhando este ponto de vista, Antunes (2001, p. 193) afirma que as opções e prioridades políticas ao nível da UE, têm um “efeito selectivo forte quer induzindo a, ou criando um contexto indutor da, orientação no sentido de determinadas intervenções quer reforçando e viabilizando algumas políticas e inibindo ou tendo um papel dissuasor no desenvolvimento de outras”. Por conseguinte, estes processos têm necessariamente implicações importantes na redução da centralidade e da responsabilidade dos Estados nacionais. Neste sentido, as orientações supranacionais e os resultados obtidos em testes internacionais são―como anteriormente eram as soluções técnicas propostas por peritos internacionais―uma fonte de legitimação para a implementação de determinadas políticas curriculares, de avaliação e administração educacional ou de formação, bem como para justificar o sucesso ou o insucesso de outras. Aliás, na opinião de Barroso (2005b, p. 68) o recurso sistemático a referências internacionais é visto, nomeadamente por alguns autores defensores da teoria dos

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Por exemplo, Antunes (2001) referindo ao caso português, afirma que “as escolas profissionais emergem em simultâneo com a possibilidade de acesso a financiamentos comunitários, para o ensino e formação profissional de jovens” (p. 193) mas, por outro lado, “a expansão da educação pré-escolar […] não foi objecto de apoio financeiro comunitário, já que se encontrava completamente fora do âmbito de acção e prioridades políticas definidas para a Comunidade Europeia, sofreu uma completa paralisação no período compreendido entre 1987 e 1994”. (p. 192)

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sistemas sociais auto-referenciais, como a fonte principal de legitimação de políticas nacionais,

suprimindo assim, na retórica do discurso político, “a insuficiência ou deficiência dos exemplos nacionais”.