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Capítulo I: A Globalização e Novos Modos de Governação da Educação

1.4 A regulação nacional e a regulação local

No atual quadro de governança dos sistemas educativos, os governos lidam em território nacional com dois tipos de regulação: uma regulação nacional que se refere ao modo como coordenam, controlam e exercem a sua influência “orientando através de normas, injunções e constrangimentos o contexto da acção dos diferentes atores sociais e seus resultados” (Barroso, 2005b, p. 69; Barroso, 2006, p. 50) e uma regulação local ou microrregulação local, que se prende com o processo de coordenação da ação dos atores e grupos de interesse, num quadro de uma crescente intervenção da sociedade civil na organização social.

Por força dos processos de mudança decorrentes da globalização e de diferentes lógicas, ideologias, discursos e práticas na definição e na ação política, o Estado tem-se visto confrontado com modos de regulação nacional que Barroso (2005a; 2006) classifica como “híbridos” e que, no seu entender, resultam de dois fatores: (a) por um lado, do facto dos países não serem simples recetores e aplicadores de orientações e processos de regulação concebidos supranacionalmente e, (b) por outro, do facto de coexistirem formas de regulação pelo mercado e pelo Estado que dependem de uma multiplicidade de fatores, nomeadamente ideologias políticas, questões em análise, enquadramento dos problemas, forças de poder envolvidas, jogos de estratégia dos atores e posição de cada país no contexto regional e global. Como exemplo, Barroso (2006) assinala dois momentos de política da educação portuguesa aparentemente contraditórios, afirma, mas complementares pois o primeiro serve como fonte de legitimação para o segundo:

Por um lado, emergência de um discurso político (apoiado em alguns órgãos de comunicação social e grupos de interesse religiosos ou empresarias) que privilegia uma regulação pelo mercado (livre escolha da escola, profissionalização da gestão, controlo pelos resultados, autonomia e concorrência entre escolas, etc.). Por outro lado, manutenção de práticas

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Giddens (1999/2012, p. 77) também já havia sublinhado a necessidade da UE trabalhar no sentido de uma maior democratização na relação entre os Estados-membros. Afirma este autor que “a própria União Europeia não é nenhum modelo de democracia”, pois “não satisfaz os critérios democráticos que exige dos países membros”. Ainda assim, a sua perspetiva era na altura bastante otimista pois afirma que “não há nada a que obste a que ela se torne mais democrática […] É que o sistema transnacional pode contribuir ativamente para a democracia interna dos países membros, bem como para a democracia das relações entre eles”.

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centralizadoras e burocráticas por parte da administração, reforço do poder das estruturas desconcentradas do Ministério, limitação da autonomia das escolas na gestão de recursos. (p. 56)

Do ponto de vista da microrregulação, os governos partilham funções e responsabilidades com uma multiplicidade e diversidade de atores (institucionais, grupos de interesse políticos, sociais, económicos, religiosos, associações formais ou informais, média, alunos, pais, professores, diretores e gestores de escolas, etc.), num contexto complexo, de certa forma imprevisível e por vezes ambíguo ou contraditório, onde as estratégias diferem consoante os interesses e as posições de cada um no sistema.

Em resultado desta diversidade de pólos de interesse, negociações e recomposição de objetivos e poderes (a) as orientações e diretivas supranacionais são reinterpretadas; (b) diminuem os efeitos de regulamentações e normas provenientes do poder político, pois tornam “imprevisível o efeito das regulações institucionais desencadeadas pelo Estado e a sua administração” (Barroso, 2005a, p. 734); (c) enfatiza-se a importância do papel do governo na regulação das múltiplas instâncias de regulação e mediação pois é “aí que se faz a síntese ou se superam os conflitos entre as várias regulações existentes” (Barroso, 2005a, p. 734), tendo como consequência o efeito “mosaico” (que outros autores designam “bricolage”15

) no interior do sistema educativo de cada Estado contribuindo, assim, para a sua diversidade e desigualdade (Barroso, 2005b).

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diversidade de fontes e modos de regulação faz com que a coordenação, equilíbrio ou transformação do funcionamento do sistema educativo resultem mais da interacção dos vários dispositivos reguladores do que da aplicação linear de normas, regras e orientações oriundas do poder político. Por isso, mais do que falar de regulação seria melhor falar de “multi-regulação”, já que as acções que garantem o funcionamento do sistema educativo são determinadas por um feixe de dispositivos reguladores que muitas vezes se anulam entre si, ou pelo menos, relativizam a relação causal entre princípios, objectivos, processos e resultados. (Barroso, 2005a, p. 734)

Na verdade, esta situação que ocorre no âmbito das políticas educativas não é um caso isolado. O processo de construção das políticas públicas envolve uma extraordinária complexidade de elementos: (a) programas e iniciativas que decorrem em simultâneo; (b) diversidade de atores e grupos de interesse envolvidos―nacionais e supranacionais, atores nos diferentes níveis de

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27 governação, agências, investigadores, jornalistas, opinion makers―que interagem ao longo do tempo em debates e disputas técnicas, onde são construídas subjetividades, (re)conceptualizados os problemas e definida a sua gravidade; e (c) questões de financiamento público e, até certo ponto, coerção autoritária. Assim sendo, na impossibilidade de observar o todo, os analistas procuram simplificar a situação com vista à sua compreensão (Sabatier, 2007).

Nesta ordem de ideias, a complexidade dos processos educativos implica a necessidade de utilizar diferentes níveis de análise, mega, macro, meso e micro, como Licínio Lima (2008, p. 84) defende quando refere que a escola enquanto objeto de estudo “complexo e polifacetado exige, congruentemente, uma abordagem teórica de tipo plural e multifocalizada, seja em termos de abordagem analítica e de escala de observação, seja ainda em termos de interpretação teoricamente sustentada”; para além disso, obriga a um olhar multifacetado que permita observar as políticas educativas de diferentes ângulos, como Barroso, Carvalho, L., Fontoura, e Afonso, N. (2007) sublinham na seguinte passagem:

As políticas da educação não se circunscrevem às medidas políticas ou às decisões dos governantes e da administração. Devem ser entendidas como espaços comunicacionais e sociais nos quais se exprimem e interagem diferentes concepções e modos de relação com o mundo educacional. Consequentemente, têm de ser observados a partir de múltiplos pontos de sua produção e ancoragem: nos documentos oficiais e oficiosos, (…) nos textos de comissões, nos estudos ou relatórios prévios ou posteriores ao estabelecimento formal de uma política, nos lugares de mediatização, nomeadamente na imprensa periódica não especializada, etc. (p. 8)

Atualmente existe uma multiplicidade de teorias que visam uma compreensão quer do

processo das políticas quer do processo político, enfatizando aspetos diferentes. Por exemplo, as teorias da escolha racional colocam a tónica nos líderes e no papel das instituições que têm uma função relevante no processo de decisão. Em contraste, o enquadramento da “coligação de defesa” advoga que os sistemas de crenças são mais importantes que as afiliações institucionais, que os atores prosseguem, por vezes, uma ampla variedade de objetivos e, ainda, que se devem acrescentar os investigadores e os jornalistas ao conjunto de atores potencialmente importantes (Sabatier, 2007; Sabatier & Weible, 2007). Sendo assim, será necessária uma abordagem que coloque a ênfase, por exemplo, nos jogos de estratégia dos atores ou nas dinâmicas de construção de matrizes cognitivas de interpretação dos problemas e que considere os produtos da ação política como o resultado de um processo complexo que relativiza o papel do Estado e reforça as lógicas que se desenvolvem em diversos campos, académico, jornalístico, político, social, etc. e as relações de poder que se

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estabelecem no seu interior e entre eles; que coloque a tónica na (re)construção de referenciais, na interpretação dos problemas, no processo de mobilização de aliados, de construção de arenas favoráveis ao enquadramento desejado com vista à colocação em agenda decisional ou à tomada de decisão. Mas, também, que saliente a importância dos mecanismos de inserção/adaptação das questões/problemas aos dispositivos intelectuais, às práticas já existentes de promoção, legitimação e renovação do quadro cognitivo de receção e adaptação das medidas e dos efeitos que poderão gerar.

Pode-se assim afirmar, pois é desta forma que o entendemos, as políticas públicas são, do ponto de vista da ação pública, o resultado de um processo complexo que envolve interações a vários níveis e uma multiplicidade de atores e grupos de interesse, lutas discursivas e outras formas de mobilização que, por sua vez, implicam a utilização de diversas formas de capital por parte dos intervenientes no processo político e, por conseguinte, é um processo que está sujeito às influências e aos constrangimentos que guiam a ação dos agentes e do Estado. Mutatis mutandis, o que é

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