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O discurso no espaço público e o espaço de opinião da imprensa escrita

Capítulo II: O Papel dos Média nos Processos de Microrregulação das Políticas

2.2 Processos de construção dos problemas públicos

2.2.1 O discurso no espaço público e o espaço de opinião da imprensa escrita

A possibilidade dada atualmente aos cidadãos de publicarem a sua opinião num espaço de referência como um jornal, nomeadamente sob a forma de cartas ao diretor, ou comentar uma notícia ou outra opinião anteriormente emitida nesse ou noutro espaço público é um indicador da vontade dos média promoverem a reflexividade social e darem voz não apenas a uma pequena elite mas, também, à opinião do cidadão anónimo. Esta estratégia, que M. Melo (2005, p. 604) caracteriza como um “acto político”, tem um “alcance considerável” do seu ponto de vista, pois funciona, à partida, como um espaço de discussão racional e de exercício da democracia. Todavia, para autores como Wahl-Jorgensen e outros, que M. Silva (2007) refere, a secção das cartas ao diretor é também um instrumento de relações públicas, pois desempenha uma função catártica e uma função de responsabilização do próprio jornal; neste sentido, estes autores consideram que trata de uma estratégia que visa promover o aumento da credibilidade do jornal. Sendo assim, a

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35 secção das Cartas ao Diretor assume também uma dimensão ética—que vende—, pois permite o exercício de crítica ao seu conteúdo e aos pontos de vista que veicula.

Na investigação sobre o processo de gatekeeping das cartas dirigidas ao diretor do jornal Público, M. Silva (2007, p. 116) constatou que a secção do cidadão comum ou do leitor, no papel de escritor e, até certo ponto, de fazedor de opinião, abrangia não só uma parcela ínfima de cidadãos, como privilegiava a publicação de “cartas que se relacionem[avam] com um acontecimento de destaque nos media”, dando preferência aos “leitores ‘com autoridade’ sobre um assunto conferida pelo seu estatuto”; além disso, em comparação com a dimensão do jornal, esta secção estava condicionada a um espaço exíguo.

Por último, a publicação de uma carta, a qual depende de estar escrita com correcção ortográfica e gramatical, necessita de possuir uma argumentação consistente (Silva, M., 2007). Esta condição implica, na opinião desta autora, que o seu autor possua, no mínimo, um certo volume de capital escolar, que, de um modo geral, conheça as regras do discurso jornalístico e seja reconhecido como um agente com competência legítima, ou seja, uma espécie de autoridade sobre o assunto. Assim, segundo esta autora, “as lógicas de funcionamento, as limitações de tempo e de espaço ou os códigos de linguagem dominantes impedem que os média atuais sejam um cenário utópico [referindo-se criticamente à esfera pública preconizada por Habermas], no qual todos os indivíduos, sem excepção, intervêm livremente” (Silva, M., 2007, p. 116). Posição, alias, em consonância como o ponto de vista crítico de Sanli (2011) ou com o de Bourdieu (2012, p. 69) quando este último afirma que “the more formal the market is, the more practically congruent with the norms of the legitimate language, the more it is dominated by the dominant, i.e. by the holders of the legitimate competence, authorized to speak with authority”.

Não admira, pois, que a grande maioria das cartas ao diretor analisadas na investigação no jornal Público realizada por M. Melo (2005), sobre assuntos respeitantes à educação, tenha sido da autoria de professores; são atores familiarizados com o sistema de ensino e possuem capital escolar e cultural. Estes fatores conferem um estatuto de autoridade sobre o assunto e legitimam os agentes perante a opinião pública, estimulando-os a debaterem esses temas. Porém, como esta autora confirmou, o género jornalístico Opinião22 foi o que “mais condicion[ou] o circuito da reflexividade [discursiva] mediatizada” (Melo, M., 2005, p. 609). Noutros termos, os artigos de opinião foram aqueles cuja prática discursiva mais induziu práticas discursivas noutros atores, no interior do mesmo jornal.

Os artigos de opinião são produzidos, de um modo geral por atores designados opinion

makers, comentadores, colunistas, analistas políticos, ou fazedores de opinião23―M. Melo (2005,

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Distinguindo-se neste contexto o espaço de opinião do espaço das cartas.

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Utilizaremos o termo opinion makers, para nos referirmos quer a autores que assinam periodicamente colunas de opinião na imprensa escrita—designados também por colunistas—, quer àqueles que emitem

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p. 603) denomina-os “reflexivos profissionais” ou “novos intermediários culturais”―, que dominam as regras do discurso mediático, possuem elevada eloquência, competência social e autoridade reconhecida quer pelo próprio público quer pelo próprio jornal, tanto que este lhes confere um espaço nobre no seu interior24.

A propósito do funcionamento do Espaço de Opinião da imprensa portuguesa, dadas as características altamente seletivas e criteriosas no recrutamento dos seus membros, Figueiras (2005, p. 124) utiliza o termo “clubismo”. Com efeito, na sua generalidade os opinion makers são atores originários de diversos campos sociais—políticos e antigos ministros, antigos secretários de Estado, cientistas sociais, economistas, representantes de sindicatos, jornalistas que ocupam uma posição hierárquica de relevo no meio jornalístico, académicos, etc.—possuidores de elevado volume de capital, social, cultural, político, simbólico ou outro; em alguns casos, senão na maioria, tratam-se de personalidades de reconhecido mérito que emitem opinião nos variados meios de comunicação social—jornais, revistas, rádio, televisão, blogues, etc.—, e que convertem esse capital em ganhos, designadamente em acréscimo de capital social e simbólico, com consequentes vantagens, também, no seu próprio campo social (Figueiras, 2005; Natal, 2011). Deste ponto de vista, “as tomadas de posição” destes atores “não se situam no ‘universo do puro desinteresse’” (Melo, M., 2005, p. 598).

Não obstante tratar-se de um debate “ainda pouco plural e ineludível ou inevitavelmente elitista”, como Barriga (2007, p. 360) mostrou na investigação realizada sobre o papel dos artigos de opinião na construção das representações sobre a política nacional, do seu ponto de vista, “As colunas de opinião e os editoriais acrescentam ‘racionalidade’ ao sistema dos média (mesmo que alguns não disfarcem a emotividade e demonstrem com clareza o posicionamento político- partidário de quem escreve) e contribuem para o debate no espaço público” (Barriga, 2007, p. 360).

Em suma, o espaço público que teve a sua origem na polis grega—a ágora ou a praça pública era o espaço onde os assuntos da vida pública e a governação eram discutidos—aparece hoje como um espaço de luta pelo poder social e pelo acesso ao discurso onde determinados agentes, designadamente porque estão familiarizados com os códigos e práticas mais legítimas da cultura dominante, parecem ter um acesso privilegiado.

opinião noutro espaço privilegiado dos mass media, como jornais, rádio, televisão, mas de modo não regular—designados com frequência por comentadores ou analistas políticos—, e que não comprometem o media ao seu ponto de vista; exceção feita aos editoriais não assinados, os quais refletem o ponto de vista da direção do jornal.

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Perelman e Olbrechts-Tyteca (2008, p. 427) sublinham o facto de a imagem do orador ter um papel fundamental na forma como o recetor interpreta a mensagem:

En fait, l’énoncé n’est pas le même, quand il émane de tel auteur ou de tel autre, il change de signification; il n’y a pas simple transfert de valeurs, mais réinterprétation dans un nouveau contexte, fournit par ce que l’on sait de l’auter présumé.

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