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Capítulo II: O Papel dos Média nos Processos de Microrregulação das Políticas

2.4 Seleção e construção das notícias

2.4.2 Os valores de notícia e as rotinas produtivas

A cultura profissional dos jornalistas e a organização do trabalho e os processos produtivos, no seu conjunto, definem os critérios de noticiabilidade, ou seja, os requisitos que os acontecimentos devem possuir para serem considerados notícia. A ligação entre estes elementos tem subentendido um conceito de notícia como resultado dos processos de seleção e transformação dos acontecimentos em produtos (Wolf, 1985/2009). Nesta ordem de ideias, noticiabilidade é todo o “conjunto de elementos através dos quais o órgão informativo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimentos, de entre os quais há que seleccionar as notícias” (Wolf, 1985/2009, p. 195). Os valores de notícia são, então, uma das componentes da noticiabilidade.

De entre as várias características que os valores de notícia possuem, Wolf (1985/2009) destaca as seguintes: (a) revestem um caráter dinâmico, isto é, “mudam no tempo e, embora revelem uma forte homogeneidade no interior da cultura profissional […] não permanecem sempre os mesmos” (p. 198) o que justifica, por exemplo, o surgimento de novas rubricas e novas áreas temáticas; (b) tendem a reflectir a estrutura do staff; ou seja, o número e a variedade de especialistas e correspondentes que garantem a cobertura de determinada área temática determinam a regularidade da cobertura de determinados temas. Deste modo, os valores de notícia podem

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traduzir-se num conjunto de critérios de relevância “espalhados ao longo de todo o processo de produção” (p. 196) os quais funcionam em ligação uns com os outros. Na prática, operam com o objetivo de que a seleção do material a publicar seja efetuada de modo quase automático, não demasiado reflexivo ou moroso, tecnicamente incorporado na rotinização do trabalho jornalístico, pese embora seja um processo complexo. Admitem alguma flexibilidade, mas são uma “linha orientadora daquilo que mais tarde será apresentado ao público” (Fernandes, 2011, p. 11).

Na opinião de Schoemaker e Vos (2011, pp. 79-80) o conceito de valor de notícia é considerado “algo multidimensional”, embora estes autores tenham verificado “uma variação na quantidade e no tipo de dimensões de notícia presentes nos estudos”. De entre os fatores indicativos do valor de notícia apresentados por Schoemaker e Vos, em resultado da pesquisa efetuada, encontram-se, por exemplo, a controvérsia, o conflito, o interesse humano, a relevância, a proeminência, a proximidade, a oportunidade, a disponibilidade visual e a audiência.

Wolf (1985/2009) apresenta um conjunto de cinco critérios de valores de notícia que compreendem critérios substantivos, critérios relativos ao produto, critérios respeitantes ao meio de comunicação, critérios relativos ao público, e critérios relativos à concorrência. É essencialmente com base na explicação fornecida por este autor que sintetizamos os fatores e as variáveis envolvidas nesta sua proposta de classificação.

Os critérios substantivos prendem-se com fatores como a importância e o interesse que a notícia pode ter; quanto maiores estes forem, maior é a probabilidade do acontecimento se tornar notícia. O primeiro fator, a importância, é relevante no processo de seleção do acontecimento a transformar em notícia; este é determinado pelas seguintes variáveis: (a) o grau e o nível hierárquico dos indivíduos ou instituições implicadas no acontecimento, ou seja, o volume de capital dos indivíduos, nomeadamente o económico e o social, ou o grau do poder institucional, são aspetos que facilitam o reconhecimento do evento como noticiável; (b) o impacto sobre a nação e capacidade de poder tocar o interesse nacional e fazer refletir; (c) a relevância e a significatividade do acontecimento face ao futuro desenvolvimento de determinada situação; e, por último, (d) a quantidade de pessoas envolvidas, embora esta variável mantenha, em certa medida, uma correlação negativa com a proximidade do acontecimento. O segundo fator, o qual se relaciona com o interesse da notícia, prende-se com a capacidade de entretenimento e do despertar a atenção do público que, além poder colidir com a relevância do evento, incita à apresentação do acontecimento por um ângulo que o torna mais susceptível de apelar aos interesses do público-alvo. Atualmente, com a influência dos novos média na delimitação da agenda pública, este processo pode em algumas situações inverter-se, pois “os jornalistas são forçados a reagir quando confrontados directamente ou sempre que alguma prática é objecto de publicação num blogue”,

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61 visto que “os leitores da blogosfera impõem feedback por parte dos média tradicionais”34 (Cardoso A., 2008, p. 31). De qualquer modo, o interesse da notícia não deixa de ser um fator que implica uma seleção mais subjetiva por parte do gatekeeper. Ainda que uns fatores possuam, em determinadas situações, mais peso do que outros, estes critérios, assim como os restantes, funcionam em ligação uns com os outros e não podem ser considerados isoladamente, tal como Wolf (1985/2009) sublinha.

Os critérios relativos ao produto e à disponibilidade do material são aspetos que são tanto mais tidos em consideração quanto menos importante se prevê que seja a notícia, pois neste critério estão em causa, para além dos custos, a acessibilidade ao acontecimento e a possibilidade do

medium efetuar o seu tratamento, quer em termos técnicos quer logísticos. Assim, inscrevem-se

neste âmbito fatores de relevância relativos ao produto que denunciam “uma ideologia de notícia” baseada no pressuposto que o que atrai o leitor é o que altera a rotina e as aparências normais e que condiciona a própria organização do trabalho jornalístico (Wolf, 1985/2009, p. 207).

Outros critérios de valor de notícia são: (a) a brevidade da notícia; (b) a atualidade da notícia a qual integra vários fatores de avaliação, entre eles a concorrência; (c) a qualidade da história, a qual se prende com a ação, com o ritmo, com o caráter exaustivo do assunto, e com a clareza da linguagem; e (d) o equilíbrio do conjunto da publicação―diário, semanário, noticiário, ou outro―ou o cumprimento de objetivos específicos quanto ao tipo de cobertura pretendida pela organização.

Os critérios relativos ao meio de comunicação são a formatação e a frequência do acontecimento que dizem respeito ao espaço ou tempo que permitem apresentar o produto com valor de notícia. Do ponto de vista de Wolf (1985/2009), este critério de relevância que privilegia os acontecimentos pontuais e únicos funciona, em termos de seleção dos acontecimentos noticiáveis, como uma espécie de pré-seleção.

Os critérios relativos à concorrência assentam nas expectativas de que o acontecimento seja considerado com valor de notícia por outro meio de comunicação social concorrente; este critério acentua o caráter fragmentário da cobertura informativa, gera reciprocidade de expectativas, contribui para o recurso a modelos considerados no campo jornalístico como de referência e, por conseguinte, propicia a homogeneidade. Neste sentido, Gustavo Cardoso (2009, p. 47) refere que “os eventos sociais, o espectáculo e os mexericos”, que nas últimas décadas se tornaram um assunto de “referência de informação” não apenas na imprensa “cor-de-rosa” como também na imprensa de referência, passaram a integrar os critérios de valor de notícia. Segundo este autor, esta alteração nos critérios de valor de notícia, que no seu entender se deve à competição com a

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Pacheco Pereira, em entrevista concedida a 29 de dezembro de 2007 ao semanário Expresso, deu um exemplo desta situação: “as denúncias [referindo-se ao caso da licenciatura do Eng.º José Sócrates] nos blogues demoraram um ano a chegar à imprensa escrita […] só semanas mais tarde o assunto começou a ser tratado nos outros meios de comunicação social” (p. 13).

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televisão pela audiência, tem contribuído para uma mudança nos valores sociais das sociedades atuais.

Os critérios respeitantes ao público prendem-se com a imagem que os jornalistas têm do público. Do ponto de vista de Shoemaker e Vos (2009/2011), o atendimento a critérios que têm em consideração os interesses do público dependem de vários fatores, nomeadamente do tamanho e da cultura da organização jornalística ou das metas que esta estabelece. Por exemplo, se a organização se orienta mais por valores do mercado económico do que para o serviço público tende a selecionar notícias que vão mais ao encontro dos interesses do seu público-alvo. “Em organizações com fins lucrativos, o processo de gatekeeping é parte do processo geral de maximização da receita. […] Se o mercado quer uma determinada interpretação dos eventos, então essa é a interpretação que ele terá” (Shoemaker & Vos, 2009/2011, p. 110). No entanto, esta adaptação à audiência não é um aspeto consensual na pesquisa sobre gatekeeping e newsmaking, e encerra tensões opostas, segundo referem Shoemaker e Vos (2009/2011), e Wolf (1985/2009). “Em última análise, essa adaptação à audiência depende mais das rotinas de gatekeeping que de forças objectivas de mercado” (Shoemaker & Vos, 2009/2011, p. 114). Por outro lado, os novos média vieram, em certa medida, intrometer-se na agenda dos mass media; a blogosfera, por exemplo, funciona como um “sintoma de que um determinado tema está a ter impacto”, mas também “como um discurso sobre os próprios media, sobre a nossa própria produção, à qual passámos a ter que estar atentos porque se tornou crítica diária”, como referiu o jornalista Miguel Gaspar em entrevista concedida a Ana Sofia Cardoso (2008).

Por outro lado, é necessário ter em conta que o mercado dos media não é apenas o seu público, mas também os seus anunciantes ou a bolsa de valores cujas ações podem ser influenciadas pelas decisões tomadas sobre o conteúdo, como sublinham Shoemaker e Vos (2009/2011). Além disso, estas decisões podem ainda “ser impulsionadas pela necessidade de acalmar os fornecedores, isto é, as fontes” (Shoemaker & Vos, 2009/2011, p. 111). Este aspeto destaca uma outra problemática, que se prende com uma parte importante do processo de

gatekeeping, que são os processos rotineiros utilizados pelos jornalistas na recolha do material de

onde são construídas as notícias, ou seja, com a identificação e seleção das fontes (Shoemaker & Vos, 2009/2011).