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Festa para além da festa

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 61-66)

Este texto se propõe a pensar a festa para além da festa, tomando como mote e como fonte de inspiração Duvignaud segundo a qual a festa é muito mais do que a festa.

Meu ponto de partida epistêmico - tendo, no entretanto, como ponto que o ponto é sempre fugidio, pois que, quando pensamos tê-lo alcançado, já está em outro lugar, sempre escapa – é o de que, assim como o princípio da reciprocidade, a festa é o ato mesmo de produção da vida e, não, simplesmente, sua mera reprodução. Assim, mais do que descrever a festa, como se faz habitualmente, ou, ainda, explicá-la, me parece a mim que a via heurística mais rentável é aquela de compreender a festa, mais ainda, apreendê- la, pois que entendo que descrever e explicar são operações de domesticação da alteridade, vãs tentativas de unificar pelo signo o diverso em estado bruto e puro que é o outro, em seu exotismo radical42.

41 Foi Roberto Motta quem me deu seu exemplar pessoal, em espanhol, do Don du rien, publicado sob o estranho título de El sacrificio inútil. Mais uma dívida minha para com Roberto. O original Don du rien, devo a Rafael Barros Gomes, que moveu mundos e fundos com seus amigos em Paris para encontrar um exemplar. Por mais estranho que possa parecer hoje, nesses tempos de internet generalizada, reconto aqui, propositadamente, um caso, passado no século passado, em uma época em que comprar livros, e mais ainda, livros em francês no Brasil era quase que uma aventura destinada ao mais completo fracasso. É, portanto, graças ao dom da amizade do Roberto e do Rafael que pude ler como se deve esses dois livros.

42 Apoio-me aqui em Francis Affergan para quem a descrição recorta o real pela sua dissecação, não

podendo assim dar conta da espessura cultural e simbólica de uma realidade temporal. Dito de outro modo: a fragmentação é condição de possibilidade da operação descritora, que é também, et

pour cause, uma operação classificadora. Em termos mais precisos: a descrição é “o duplo

necessário da classificação, fazendo coexistir elementos dispersos no puro diverso que é o real, por uma operação de sucessão e de associação por analogia” (1987: 124).

Trata-se, em meu argumento, inspirado em Duvignaud, antes do mais, de des- substantivar, des-funcionalizar, des-reificar a ideia de festa, considerando-a não como fato eminentemente social (coisa), dotada de um conteúdo específico, própria de um determinado tipo de sociedade e/ou grupo num determinado, ou seja, em perspectiva, mas como perspectiva, destacando o mecanismo festivo do fato festivo43. Na via que aqui proponho a festa deixa de ser um objeto a ser analisado para tornar-se um mecanismo, um operador de ligações que age por meio da “destruição concertada” (Duvignaud, 1977) do “real socializado” (Grisoni, 1976), abrindo à experimentação humana o campo do possível. A festa é isso: o campo do possível. E o campo do possível é o horizonte do imaginário. E imaginário é a instância das percepções e das imagens da vida coletiva que não se reduzem a vida coletiva ela mesma, pois que se reportam e remetem à instância do desejo, do imprevisível, do indecidível, do indeterminado, da interioridade, da embriaguez mística, do excesso, do gozo. Eis a festa.

Do modo como eu aqui a propor, a festa deixa de ser, e isso é um ponto fundamental em meu argumento, um fato sociológico para tornar-se uma virtualidade antropo-lógica. E é justamente isso que Duvignaud nos ensina quando diz que a festa é mais do que a festa, pois que ela faz parte desses “atos sem finalidade”, tais como o sagrado, o jogo, o sonho, o transe, a arte, a doença mental, já que o mecanismo/operador festivo pode agir/operar fora e para além daquilo que convencionalmente chamamos festa (1984: 48)44.

A festa, essa virtualidade antropo-lógica, como eu a vejo? Como “fusão da vida humana” (Bataille, 1973), como instante efêmero e fugidio que coloca “o homem, face A face com um mundo sem estrutura e sem código”, ou seja, com “as forças anônimas da natureza e do eu”, que é o mundo das “relações humanas não instituídas” - é por isso que falo de imaginário - “onde a fusão das consciências e das afetividades substituem todo código e toda estrutura” (Duvignaud, 1984: 57, 59).

43 Segundo Duvignaud: “Por falta de perceber essa disponibilidade ao nada ou ao inacessível que

implica a festa, se é condenado a reduzi-la à celebração regular, à explosão de espontaneidade” (1977: 281).

44 Para não alarmar os empiristas sempre em estado de alerta, lembro que, para Marshall Sahlins,

“toda estrutura ou sistema é eventual em termos fenomenológicos”, mais ainda “a ordem cultural, enquanto um conjunto de relações significativas entre categorias, é apenas virtual”, ou seja, existe meramente in potentia”(1994: 190).

Dito de outro modo, a festa não é o desaparecimento da realidade, não é a substituição da realidade por uma fantasia qualquer, “da realidade enquanto mundo”, mas dissolução das ligações que organizam o mundo segundo uma ordem determinada que se dá o nome de realidade (Grisoni, 1976: 235). Por isso, e aqui lanço meu ponto epistêmico, usando mais uma vez Duvignaud, “longe de ilustrar uma cultura, a festa contesta seus elementos e deles se afasta”, destruindo “os códigos e as regras não porque os viole reconhecendo-os, mas porque ela coloca o homem frente a um universo desculturado, um universo sem norma”, que lembra muito de perto da ideia do DaMatta de que mais do que um problema de substância, a festa nos coloca um problema, eu prefiro, uma questão, de contraste. Mas por que a festa se afasta da sociedade e da cultura, enquanto ilustração, como quer a perspectiva da festa em perspectiva? Porque ela nos coloca face a um mundo sem estrutura e sem código, que como venho enfatizando, é o mundo do imaginário. Deste modo, a festa não pode ser confundida com “o jogo de máscaras ou de símbolos, com as ilustrações do poder e do prestígio”, como usualmente se faz, uma vez que ela é ao mesmo tempo, e sobretudo, “a descoberta de um universo, não desregulado, mas sem regra” (Duvignaud, 1984: 55, 56, 57, 58). Redistribuindo a ordem estabelecida na ordem do desejo, a festa opera “a dissolução dos elos que organizam o real”, mostrando como o social “não é o todo da realidade”, senão que um limite – o da regra, que é também, et pour cause, o da cultura, leia-se do simbólico, do que designa uma realidade ausente (Grisoni, 1976: 235, 236).

Assim operando, a festa libera as individualidades para a experimentação e para o investimento na interioridade porque as confronta com o desejo, acionando essa parte de nossa vida aberta ao que ainda não é (a saber, o imaginário) e “sem a qual nossas sociedades não seriam senão colmeias ou formigueiros” (Duvignaud, 1984: 10). Dito de outro modo: somos/fazemos sociedade porque produzimos imaginário. Do meu ponto de vista, somos sociedade porque fazemos festa. Dito ainda de outro modo, o que a festa transgride, no sentido de ir além, é o próprio fato social ele mesmo, atingindo o societal, fazendo emergir o individual do coletivo, o afetual do contratual, a socialidade, da sociabilidade, fazendo aflorar as emoções, os sentimentos não domesticados, tal como mostrarei na sequência a propósito das procissões da semana santa em Lisboa45.

45 Existe um grande écart entre socialidade, sociabilidade, social e societal. A sociabilidade corresponderia à forma concreta do social, ou seja, o social moderno, tendo uma consistência própria, uma estratégia e uma finalidade. Formada pelo indivíduo e suas associações contratuais, apoia-se em ideias como vontade geral, progresso geral da humanidade (dever-ser), soberania e autodeterminação, articula-se numa lógica da troca e numa ética do trabalho e da poupança,

A destruição festiva integra, segundo Duvignaud, “o homem na circulação geral dos seres”, por isso eu a aproximo do princípio da reciprocidade, ela “arranca a sociedade da passividade das coisas [a ordem das necessidades imperiosas] e anima a existência coletiva”, colocando “em ação solicitações de sentidos que a vida cotidiana não utiliza jamais”, uma vez que é o “encontro dos homens fora de suas condições e do papel que desempenham em uma coletividade organizada” e no qual “a empatia ou a proximidade constituem as bases de uma experiência que acentua intensamente as relações emocionais e afetivas”, o que chamo de afetual e de socialidade, pois “que multiplica ao infinito as comunicações e realiza momentaneamente uma abertura recíproca das consciências [e dos afetos, suplemento eu] entre si” (Duvignaud, 1984: 48, 57).

Faço minhas as palavras de Duvignaud, permitindo-me uma longa, mas impositiva citação: festa é um “ato surpreendente, imprevisível”, uma virtualidade, que pode aparecer “tanto durante as cerimônias rituais com as quais não se confunde, quanto fora de toda manifestação pública”. Mais uma razão, digo eu, para se falar de festa além da festa. “Ela se reveste de aspectos diferentes e que escapam à qualquer lei: triste ou alegre, irritante ou calma, privada ou pública”, ela pode tanto concernir a um “casal amoroso que busca no ‘eros’ algo a mais que a trivial fecundação”, quanto pode explodir entre os índios Pueblo celebrando o culto do milho ou durante as jornadas da Revolução de 93”, postulando que os revolucionários tramaram a revolução, fazendo festa, jogando a péla. Vale dizer que “o exame deste ato sublime não se esgota em interpretações”, pois “a festa não nos leva lá onde nos conduz o estudo dos sistemas de classificações ou de símbolos”, pois seja como teatralização/representação dos códigos ou dos ritos de uma cultura, a festa supõe um questionamento que ultrapassa os quadros da sociedade uma vez que, ao colocar, “por algum tempo, o homem e os homens diante de uma realidade transobjetiva e transubjetiva, arranca o social do social e tira, na descoberta de instâncias

desenvolve a chamada solidariedade mecânica e formas de participação institucionalizadas e baseadas na ideia de representatividade, o voto, por exemplo. A socialidade diz respeito às relações de vizinhança, aos costumes, aos hábitos que tornam possível a convivência, sendo, assim, uma expressão do societal, isto é, do estar-junto, no qual é privilegiado o lúdico, a partilha de sentimento comum. O societal se cristaliza em agregações de toda ordem, que são tênues, efêmeras, de contornos indefinidos, marcadas por uma ética da simpatia e do instante, pelo dispêndio, pelo esteticismo, pela epifanização dos corpos e das relações, pelo presenteísmo, pelo nomadismo, pela participação direta, pela via da partilha de um sentimento comum, pela solidariedade orgânica. Enquanto que para a tríade sociedade/sociabilidade/social podemos associar uma centralidade, uma fixidez institucionalizada e um formato universal abstrato, para o par socialidade/societal, falamos em nebulosas afetuais policentradas e em concretude do particular. Em termos do religioso, o social diria respeito à ideia de Igreja, isto é, ao aspecto institucional e institucionalizador, enquanto a socialidade remeteria à ideia de seita, isto é, à comunidade local e ao aspecto instituinte (Maffesoli, 1987: 107, 198).

assim percebidas, uma capacidade infinita de criação e inovação”. Festa é isto: criação e inovação. A criatividade festiva “não é criadora senão das formas que ela reveste no curso de suas manifestações”, portanto efêmera, transitória, fugaz. Breve, brevíssima. A inovação festiva age “sobre a trama da existência coletiva, a transforma e modifica, sugerindo formas novas [prefiro eu, outras] que, por sua vez, porque não cristalizadas, pesarão sobre os membros da comunidade ou da civilização”. Seja valendo-se das formas já estabelecidas, seja realizando-se fora de toda configuração conhecida, a festa “eclode inopinadamente”, porque é “transocial”, porque provoca a sociedade a se questionar” (Duvignaud, 1984:13, 14, 55, 58, 258, 260). Esta é umas das ideias de Duvignaud que mais gosto: a criatividade e inovação festiva, que é efêmera, instantânea e que deixa restos, que podem ser, pelo imaginário, evocados em outro momento.

Retomando meu argumento e encaminhando-me para o final, quero pontuar que a festa para além da festa diz respeito, portanto, não a um evento delimitado no tempo e no espaço, mas a um tempo/espaço - efêmero e transitório - de exuberância e de explosão de vida, do fazer-se humano, que está fora e alheio ao devir, fora e alheio à duração, pois que é aquilo que está por-vir (não devir) e por fazer-se constantemente no ritmo incessante das passagens. Festa, como maravilhosamente propõe Duvignaud, é “uma ação coletiva no curso da qual, de uma maneira imprevisível e não regulamentada pela repetição dos aniversários, o homem, por um breve instante, descobre que tudo torna-se possível” (1984: 9). Campo do possível, do desafio, da aposta e do jogo com os sentimentos e as emoções, a festa inventa/cria/gesta/imagina outras relações do homem com o mundo, sobretudo, outras relações consigo próprio (tornado outro na/pela festa), outras formas de ligar, pois coloca em ação o excesso e a transgressão, seus operadores de distinção relativamente ao mundo das coisas, duração e dos determinismos.

Festa não demanda interpretação, ela solicita apreensão, de modo que o ponto para mim não é identificar a que tipo de sociedade e/ou grupo e a que tempo a festa é relativa, quais são as representações de mundo que ela expressa/dramatiza, mas qual é a relação que a festa estabelece, qual é o mundo da festa, de que mundo que festa é a perspectiva. Para mim festa é isto: a epifanização de um mundo, um mundo outro do real do imaginário, não instituído, não regrado, sem estrutura, como já disse, tornado possível pelo imaginário. A questão não é o quê a festa diz sobre a sociedade e/ou grupo, mas que mundo se epifaniza na festa. O que importa não é o evento periodicamente realizado, não é o fato da festa em si, mas o mecanismo, o operador de ligações que pode se instaurar no interior mesmo do fato-evento instituído que chamamos vulgarmente de festa. Portanto,

não é questão de sujeitar os fatos a qualquer determinismo – temporal ou espacial e de ordem puramente social -, pois que seria operar uma inversão e não é disso que se trata, pois que seria trocar seis por meia dúzia –, mas de dar margem à contingência e à invenção. E em se tratando de festa, e parafraseando meu querido amigo Carlos Rodrigues Brandão, “não preciso explicar o que compreendo, mas compreender o que sinto” (1992: 13).

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 61-66)