• Nenhum resultado encontrado

O Natal e o consumismo

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 34-37)

Claude Lévi-Strauss (2008) fala de um renascimento do Natal em nossos dias, devido a crescente popularização da festa. E também comenta, embora não aceite o argumento, que, na visão de muitos, inclusive eclesiásticos franceses, tal fenômeno seria consequência da influência do capitalismo americano. Graças aos interesses capitalistas, e sua maior arma, a publicidade, as pessoas são influenciadas a comprar não só os presentes para amigos e familiares, como uma série de outros artigos natalinos. A febre consumista toma conta das massas, e as lojas batem recordes de vendas. É sobre essa relação entre o Natal e o consumismo que pretendo discutir agora.

O Natal, na atualidade, passaria por uma popularização, inflamada pelo mercado consumidor, mas, ao mesmo tempo, sua degradação. Os princípios puros da tradição seriam deteriorados. Essa, aliás, é uma argumentação sempre levantada por críticos, e não só contra o natal. Como observa Léa Freitas Perez, “confrontamo-nos com esse tipo de argumento todo o ano, durante o carnaval, no natal, na páscoa, quando inevitavelmente aparece a pergunta, que é também uma constatação e um lamento: as festas de hoje não são mais as mesmas, as tradicionais e boas celebrações do passado, pois foram tomadas pela lógica do mercado, que as desvirtuou” (2012: 31).

Gostaria aqui de discutir essa “lógica do mercado” capitalista. Para tanto, recorro aos estudos de Marshall Sahlins, que construiu uma crítica sólida a visão materialista e pragmática que a sociedade burguesa construiu de si mesma, encontrando um novo sentido do que representa a esfera da produção e consumo. Segundo ele, “a produção é um momento funcional de uma estrutura cultural. Isso entendido, a racionalidade do mercado e da sociedade burguesa é vista sobre outra luz. A famosa lógica da maximização é somente a aparência manifesta de uma outra razão, frequentemente não notada e de um tipo inteiramente diferente” (Sahlins, 2003: 170). Há um código simbólico que orienta

19 O famoso capítulo 13 da epístola de Paulo aos Coríntios é um exemplo disso. Paulo se queixa das

discussões entre os crentes de Corinto e fala sobre a excelência do amor. Pelo relato do livro Atos dos Apóstolos, o período de comunhão entre cristãos só durou por um período pequeno, geralmente chamado de cristianismo primitivo.

tanto a produção como o consumo. O tipo de alimento comido, os tecidos, as cores dos objetos, tudo isso atribui um significado ao objeto e a troca de mercadorias deve ser entendida como uma troca de símbolos, que servirão para separar categorias de pessoas, e não simplesmente satisfazer necessidades naturais, como prega a economia política burguesa e marxista. Com a venda de mercadorias, a sociedade está construindo uma espécie de totemismo, onde características como status, gênero, etnia, faixa etária, são diferenciadas. O uso de mercadoria transforma-se no indicador importante para definir as categorias sociais, numa sociedade feita de indivíduos que são estranhos uns aos outros.

Com o trabalho de Marshall Sahlins temos vários exemplos que, no capitalismo, “a produção é a realização de um sistema simbólico”, sendo assim um instrumento importante para vencer a ideologia utilitarista e o pragmatismo (2003: 108). Mesmo que as compras de Natal sejam incentivadas pelos interesses de uma elite, os consumidores estão comprando, em geral, presentes e artigos para a comemoração natalina. Aqui pode-se ver a encontro de duas formas diferentes de objetos de troca, cada uma ligada a uma ética diferenciada: a mercadoria e seu fetichismo e a dádiva20.

Se no Natal há uma espécie de conciliação entre as duas éticas, durante o ano existiria um conflito. Marcel Mauss (1974), após fazer a avaliação da importância da troca de dádivas nas sociedades pré-capitalistas e de classificá-la como “célula social”, observa que a moral que fundamenta a troca de dádiva continua presente nas sociedades capitalistas, apesar dos interesses burgueses: “Uma parte considerável de nossa moral e mesmo de nossa vida continua estacionada nesta mesma atmosfera de dádiva, de obrigação e de liberdade misturadas21. Felizmente, nem tudo está classificado em termos

de compra e venda. As coisas têm ainda um valor sentimental além de seu valor venal, tanto é que há valores que pertencem somente a este gênero. Não temos apenas uma moral de comerciantes. Restam-nos pessoas e classes que guardam ainda costumes de outrora, e quase todos dobramo-nos a eles, pelo menos em certas épocas do ano ou em determinadas ocasiões” (Mauss, 1974, p. 163).

20 O fetichismo da mercadoria foi descrito por Karl Marx, no primeiro capítulo de O Capital. Sua

principal característica é a negação do caráter social da produção. A troca de mercadorias aparece como uma troca de coisas.

Se uma parte do Direito garante os interesses dos burgueses, há uma reação da população, representadas por sindicatos e partidos, que lutam para que os trabalhadores tenham direitos, e isso ocorreu durante as décadas do século vinte. Mesmo com o neoliberalismo domine a cúpula do capitalismo nas últimas décadas, é inegável que as classes trabalhadoras conquistaram vitórias significativas no século vinte. Para Mauss, isso significa algo mais significativo, resultado de uma luta de classes: “a sociedade quer reencontrar a célula social. Ela investiga, ela cerca o indivíduo de um curioso estado de espírito em se mesclam os sentimentos dos direitos que ele tem e outros sentimentos mais puros: caridade, ‘serviço social’, solidariedade. Os temas da dádiva, da liberalidade e do interesse que existem em dar, voltam a nós, assim como reaparece um motivo dominante de há muito esquecido” (Mauss, 1974: 167).

É interessante que Mauss tenha escrito, em meados do século passado, da volta de “uma moral de grupos”. Essa afirmação ganha veracidade no final do século vinte quando, além de sindicatos e partidos, presenciamos a multiplicação de organizações não governamentais, geralmente centradas no recolhimento de recursos que são destinados ao auxílio de pessoas doentes, minorias étnicas, socorro a vítimas de guerra, habitantes miseráveis das cidades do mundo em desenvolvimento, etc. Estudioso das favelas, Mike Davis, descreve a importância que as “ONGs” possuem hoje no mundo usando o termo “revolução”, uma revolução que impôs uma nova ordem econômica política: a do “imperialismo brando” (2006: 86)22. E a iniciativa dos próprios indivíduos que está

geralmente na formação das organizações não governamentais. Vemos também atos individuais de generosidade que vão contra a ambição capitalista e causam admiração pública. O bilionário Bill Gates, por exemplo, abandonou a direção da Microsoft para se dedicar a obras de assistência social23. São atos individuais que indicam a presença

crescente de uma ética bem distinta do neoliberalismo burguês.

A ética da caridade e fraternidade fica mais forte na época do natal. Multiplicam-se então campanhas, nos meios de comunicação eletrônica e nas igrejas, para que as pessoas

22 Que fique claro que Davis não é um simpatizante das ONGs, pelos problemas muitas vezes

existentes entre elas e as formas de administração dos recursos e relação com as comunidades locais. Mas reconhece que elas transformaram a questão do combate á pobreza e outros problemas sociais.

23 Entre as qualidades exaltadas pela imprensa da seleção campeã da Copa da Fifa de 2014, a

Alemanha, está a generosidade: o time doou 10 mil euros para a tribo Pataxó e 30 mil para a cidade de Cabrália construir uma escola.

contribuam para alguma causa nobre. A figura do menino Jesus, carente, deitado numa manjedoura, é colocada ao lado de fotos de crianças pobres, doentes, perdidas num mundo cruel, junto com apelos para que as pessoas possam ajudá-las, como se estivessem ajudando o próprio Cristo. Aqui no Brasil, os Correios distribuem entre as pessoas cartas direcionadas a Papai Noel, incentivando aos indivíduos que se transformem em verdadeiros Noéis, comprando os bens almejados pelos meninos.

Para Marcel Mauss, isto tudo significaria a sociedade buscando a sua célula. Mas essa tendência não acontece sem contradições: de um lado, o individualismo e o discurso neoliberal que dominam o capitalismo; por outro, o crescimento de uma ética da caridade, do voluntariado e da fraternidade. Para entendermos melhor como convivem concepções tão antagônicas, precisamos refletir sobre os fundamentos da estrutura cultural do capitalismo.

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 34-37)