• Nenhum resultado encontrado

O futebol de bairro e a questão espacial

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 120-124)

O futebol é uma manifestação cultural das mais significativas no Brasil desde as suas origens, no final o século XIX. Nesse início de século XXI, foi elevado a condição de espetáculo global, que tem potencializado suas práticas e estudos no país, especialmente às vésperas da Copa do Mundo de Futebol que se realizará em terras brasileiras no ano de 2014, como apontam Roberto DaMatta (2006) e José Magnani (1998). Oficialmente, o começo das atividades futebolísticas no Brasil deu-se com a criação dos primeiros clubes, por ingleses, que residiam em São Paulo e no Rio de Janeiro, a partir de 1880 (Guterman, 2009). Nesse contexto, Charles Miller – nascido em São Paulo em 1874, mas de nacionalidade inglesa por seus pais serem naturais desse país – é considerado o “pai” do futebol, quando trouxe da Inglaterra, vinte anos após o seu nascimento, as primeiras bolas e bombas para enchê-las.

No período compreendido entre as primeiras décadas do século XX, o futebol desenvolveu-se grandemente no Rio Grande do Sul, o que, em linhas gerais, ocorre de forma semelhante à dos outros Estados brasileiros. Nesse período efervescente para o esporte, vários clubes se formaram em cidades gaúchas, especialmente em Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre, ensejando uma multiplicação de equipes esportivas (Jesus, 2003).

Concomitantemente a essa influência platina na formação visualizada dos clubes de futebol na região da campanha sul-rio-grandense, como o 14 de Julho (1902), de Santana do Livramento, e o Sport Club Bagé (1906), na capital Porto Alegre e na região colonial, os imigrantes alemães muito contribuíram para o relativo surto industrial que o Estado teve na virada do século XIX para o XX, bem como para a disseminação do futebol entre as

94 Texto apresentado na ST 02

Respectivamente: Doutor em História Social pela USP, professor titular da Universidade Feevale

em Novo Hamburgo; Doutor em História pela PUCRS, professor da Universidade Feevale em Novo Hamburgo; Mestrando em processos e manifestações culturais, Universidade Feevale.

regiões coloniais do Rio Grande do Sul, em se tratando aqui, especificamente, da colônia alemã (Jesus, 2001).

Cabe salientar, nesse sentido, que a influência germânica nas sociabilidades, na arquitetura e no imaginário da capital foi de tal monta que, segundo os cronistas da época, tratava-se de uma cidade francamente germanizada. Essa presença decisiva dos teuto- brasileiros na introdução do futebol no estado traduziu-se, por exemplo, na fundação do S.C. Rio Grande, em 19 de julho de 1900 (Jesus, 2001).

O esporte que chegou ao Estado como uma manifestação esportiva ligada às elites transformou-se rapidamente em um elemento de cultura de massa, uma vez que esse público consumidor não formulava exigências particulares a esse produto cultural que chegava à região sul do Brasil (Prodanov e Moser, 2009).

Nesse contexto de expansão dos imigrantes e seus descendentes, também na capital, em 1903, foram fundados, no mesmo dia (15 de setembro), os dois primeiros clubes de futebol de Porto Alegre: o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e o Fussball Club Porto Alegre. Essa última agremiação resistiu enquanto clube durante décadas, mas nos anos 1940 encerrou suas atividades.

Com isso, os clubes de futebol surgidos nas diferentes regiões do Estado, e também no caso específico Novo Hamburgo, funcionaram como expressão das complexidades sociais e atuaram como catalisadores de opções identitárias dos grupos sociais envolvidos. O surgimento e o crescimento de novos clubes na cidade explicitam, à sua maneira, as divisões simbólicas daquela sociedade.

Dentro desse contexto de organização social e identitária a que as comunidades de origem germânica se propunham, os clubes sociais de tiro, de canto e música e de esportes eram muito fortes e foram instituídos já na origem e formação das vilas e cidades, juntamente com as igrejas e as escolas, como elementos reforçadores dessa identidade teuto-brasileira. Desde 1824, esse movimento foi intenso e, ao longo de todo o século XIX, dezenas de clubes foram surgindo e multiplicando-se entre os alemães e seus descendentes, na lógica da etnicidade germânica (Prodanov e Moser, 2010).

Além de muitos aspectos imbricados, o futebol é um esporte apaixonante e que fez uma rápida transposição para as massas, também foi um elemento que marcou alguns espaços e territoriedades, estilos de vida, expressão de grupos sociais, econômicos e mesmo étnicos. Como bem observou Michel de Certeau (1994), esses territórios urbanos ou

bairros e até mesmo ruas, foram pródigos em induzir um estilo de vida e comportamento, pois, para o autor existia “[…] uma arte de conviver com parceiros (vizinhos, comerciantes) que estão ligados a você pelo fato concreto, mas essencial, da proximidade e da repetição” (De Certeau, 1994: 39). O espaço e a territoriedade, ou seja, o bairro e a localidade são “o lugar praticado”, ou seja, implica em ação dos sujeitos históricos que circulam, moram, trabalham, vivem o bairro e a localidade na sua essência (De Certeau, 1994).

Nesse contexto espacial da cidade de Novo Hamburgo e seu bairro de Hamburgo Velho, o futebol mostrou-se como um elemento de reinvenção das práticas de lazer, como bem observou Francisco Ortega, esse valor que se forma da sociabilidade, da política e da convivência e nesse espaço “[…] a amizade constitui uma alternativa às velhas e rígidas formas de relação institucionalizadas, representado igualmente uma saída ao dilema entre a saturação da relação, surgidos da dinâmica da modernidade, e uma solidão ameaçadora” (Ortega, 2006: 56). Além disso, o futebol ajudou a criar e desenvolver muitos vínculos identitários em Hamburgo Velho, local tradicional e inicial do núcleo de ocupação e colonização alemã e na área central da cidade, a nova área de expansão formada por grupos mais recentes de colonização, sendo esses os dois grandes polos de desenvolvimento da cidade de Novo Hamburgo no início do século XX.

Esse tema identitário ainda é pouco explorado quando se fala de futebol no Rio Grande do Sul, especialmente em áreas do interior do Estado. Além disso, existem certos fenômenos locais que fizeram que o futebol tivesse algumas características específicas e que ele se formasse de forma muito distinta nas várias regiões do país. Entretanto, percebe-se que vários elementos apresentam uma certa singularidade e regularidade dos fenômenos, como muito bem apontou Leonardo Pereira (2000), que evidenciou em seu trabalho sobre o futebol no Rio de Janeiro nas décadas de 1920-1930, e que pode ser transposto para o caso de Novo Hamburgo, onde alguns vínculos identitários se formaram diferentemente, podendo estes ocorrer através da geografia da cidade, dos bairros, da fábrica, da classe social e, mesmo pela etnia.

Como observou Pereira (2000), poderiam também ocorrer vínculos duplos, por exemplo, bairro e etnia ou bairro e fábrica, ou ainda, bairro e classe social, mas o componente territorial esteve sempre presente na formação das singularidades e das identidades relacionadas aos clubes de futebol. Além disso, esse vínculo de identidade foi flexibilizado, na medida que mudavam os cenários, as necessidades e as oportunidades dos grupos e dos clubes de futebol. Esses vínculos identitários que são mencionados acima

também podem ser compreendidos como elementos de uma “tribalização” de uma determinada comunidade, segundo as palavras de Maffesoli e Neves (1998), no sentido de dirimir e fazer negociar certas individualidades em prol do grupo como um todo.

Como observou Michel de Certeau “[…] as práticas cotidianas estão na dependência de uma parte do conjunto”, e o futebol faz parte desse intrincado mosaico urbano, local da proximidade das pessoas, de seu bairro, até mesmo de sua rua (1994: 109). O futebol atua também como um grande mobilizador e transformador, aquilo que De Certeau (1994) chamou de “inventividade” do cotidiano.

Nesse contexto, os clubes de futebol surgidos nas diversas regiões da cidade funcionaram como motores das complexidades sociais e catalisadores de opções identitárias dos grupos sociais envolvidos com o surgimento e o crescimento de novos clubes, sua relação com a comunidade, além, é claro de sua constituição.

Dessa forma, ao observar-se a dinâmica que esse esporte tomou na interiorana e industrialmente próspera cidade colonial de Novo Hamburgo, percebem-se esses elementos articulando suas singularidades e fortalecendo a constituição de equipes de futebol marcadamente territoriais e conflitantes. Esse movimento permitiu que o surgimento dos clubes se seguisse as rivalidades advindas do desenvolvimento do futebol local, amplamente infundido além das quatro linhas, contagiando os atletas e dirigentes, as ruas, fábricas e as massas da cidade. Essa rivalidade que ocorria em Novo Hamburgo encaixa-se no conceito de festa popular que Bahktin diz, pois “As formas da festa popular têm os olhos voltados para o futuro e apresentam a sua vitória sobre o passado […] a vitória da profusão universal dos bens materiais, da liberdade, da igualdade, da fraternidade” (1987: 223). O futebol na cidade de Novo Hamburgo, justamente, configurou-se como essa vitória do futuro pelo passado, como o autor russo pondera, no sentido de que o futebol representava e aglutinava em torno de si todo um ideário de propugnação de uma modernidade.

Assim, esse texto se propõe a mostrar de que maneira ocorreu essa rivalidade entre clubes de futebol em diferentes bairros na cidade de Novo Hamburgo, nas cinco primeiras décadas do século XX, mais especificamente a rivalidade verificada entre o Esporte Clube Novo Hamburgo (ECNH) e o Foot-Ball Club Esperança (FBC Esperança), nesse período.

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 120-124)