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O êxtase, a festa e a dança como propulsores da liberdade existencial

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 81-86)

A este momento de pura graça, Faustino Teixeira em seu artigo A religião e a busca

de significado aponta que no momento do culto o ser humano experimenta o sentimento e

toma consciência de “poder mais”, diferente da experiência cotidiana. E, sobre os sentimentos provocados Faustino diz: “Como sinaliza Durkheim, a impressão ali suscitada é de alegria, paz interior, serenidade, entusiasmo de viver: sentimentos que acionam energias inusitadas para a ação histórica”. E, que assim também “nos cultos afro- brasileiros, onde os participantes cedem seu corpo para a dança dos deuses”. (Teixeira, 2011: 13). Ali naquele momento acontece a “experiência da energia renovadora” mesmo defronte às enormes resistências e condicionamentos sociais. Em seguida cita Bastide, quando ele diz que “Os gestos, porém adquirem maior beleza, os passos de dança alcançam estranha poesia. Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos metamorfosearam-se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria; Ogum guerreiro brilha no fogo da cólera, Oxum é toda feita de volúpia carnal. Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão” (Bastide, 2001: 39).

O momento da festa e do êxtase, é o momento de possibilidades virtuais novas, escapa agora a lógica da racionalidade para abarcar sentidos e virtualidades que a cognição humana não dá conta de conceituar ou qualificar com a linguagem dos conceitos de uma linguagem científica. No entanto, para o ser humano que vive tal experiência a traduz como o ápice da realização de felicidade a qual almeja a alma humana. Esta propriedade e a profusão provocada no culto permanecem sempre no âmbito do mistério –

Mysterium tremendum et Fascinans. Durkheim argumentou que a força dinamogênica da

religião desconcerta a lógica científica, diferente da demonstrabilidade científica, nem por isso deixa de ser constatada sua existência como experiência religiosa de forma real, experienciada e vivenciada, que não é um sentimento simplesmente ilusório. E, Durkheim sublinhou que: “De fato, quem quer que tenha praticado realmente uma religião sabe bem que o culto é que suscita essas impressões de alegria, de paz interior, de serenidade, de

entusiasmo, que são para o fiel, como a prova experimental de suas crenças. O culto não é simplesmente um sistema de signos pelos quais a fé se traduz exteriormente, é o conjunto dos meios pelos quais ela se cria e recria periodicamente. Quer consista em manobras materiais ou em operações mentais, é sempre ele que é eficaz” (Durkheim, 2000: 460).

Essa transformação do estado de espírito humano verificada no culto é a veri- ficação teológica de Deus e do espírito que emana deste. Sem que o ser humano consiga apontar uma causa, ou explicar em palavras essa efusão de sentimentos que brotam do fundo d’alma. “Ali”, naquele momento da festa algo se transforma na interioridade do sujeito, onde habita a liberdade plena e nenhuma forma de opressão ou vicissitudes dos existenciais do cotidiano conseguem penetrar. O momento da unidade, ou do ligame como o sagrado é o momento da liberdade espiritual: “A festa é o que há de mais importante na vida. Resume todas as buscas humanas e simboliza a vitória sobre as penúrias e dificuldades do dia-a-dia. Sintetiza as sensibilidades, trajetórias históricas, vivências e visões de fé. A festa significa viver a liberdade.” (Irarrázaval, Apud Barros; 1998: 11 in Passos, 2002: 59).

O êxtase e o transe no Candomblé possibilitam ao ser humano co-habitar dois mundos num mesmo instante: o sagrado e o profano. Da união mística entre o fiel e a entidade há a recuperação da unidade primordial, a harmonia originária é efetivada não havendo mais uma laceração entre os dois níveis, a comunicação e o ligame entre ser humano e Deus é restabelecida. Do sentimento de unidade com o sagrado, nasce o sentimento de comparticipação cósmica, onde a totalidade do real abarca a todos, sem exceção, daí uma religiosidade metacósmica.

Além disso, o sagrado opera a Liberdade no condicionado histórico, porque é a transcendência ou a ultrapassagem do ordinário, da existência profana a existência sacralizada. Pode-se dizer que o homem liberta-se da sua condição meramente humana. Todavia podemos também dizer que o sagrado é uma limitação à liberdade humana, diante do fato de sermos dependentes dos arquétipos ou mitos cosmogônicos do “eterno retorno”, não dando ao homem a liberdade de escolha no desenvolvimento da sua própria consciência – como pensa o homem moderno.

Pensando a partir da história da escravidão no Brasil e o que representou a religião como forma de libertação tem aqui a “veri-ficação teológica” transposta a uma “veri- ficação teológica social”, no sentido que, o sagrado se manifesta hierofanicamente no âmbito individual, mas gera outra ordem na coletividade.

Para os escravos a liberdade aqui exercida era a sua religião, ainda que o sistema social vigente tentasse escravizá-los corporalmente e manipular suas tradições culturais, a religião promovia a libertação. O candomblé representava para os escravos africanos a religião da liberdade. Se durante o dia o corpo era castigado pelos trabalhos braçais desumanos, a noite era recompensado com momentos de êxtase através da música, da dança e da Festa. Ali se recompunha e se resgatava os males sofridos na alma e no corpo. A harmonia era recuperada pelo Axé.

A festa é o momento da libertação. O ser humano transcende e ascende a um patamar superior, a esfera do espírito, e o espírito é livre, ninguém pode enquadrá-lo ou aprisioná-lo. E foi assim que as religiões afro-brasileiras promoveram o exercício da liberdade de milhares de negros que aqui no Brasil sentiam-se oprimidos no seu direito primordial humano: a liberdade. A festa é o momento de efetiva liberdade, onde o ser encontra-se com sua própria essência, e aí não cabe e não é possível nenhuma forma de escravidão.

Conclusão

A vida torna-se toda transfestação onde se comemora um “já-aí” (ser-no-mundo), não precisando esperar um por um futuro escatológico para o encontro com as divindades. A experiência dos orixás é uma ousia, os Deuses tornam-se presentes vindos ao encontro do ser humano.

O momento do ritual no candomblé transborda o terreiro e libera o Axé como força propulsora da harmonia cósmica, daí a “trans-festação da existência” como um todo. Há consequentemente um efeito trans-histórico derivado da força que expande da festa, com a dança e o êxtase o ser humano experiência como entreviu Durkheim a força dinamogênica da religião. Esta força também relatada por Rudolf Otto como orgé, que no candomblé é chamada Axé. Tal força propiciou a transcendência histórica de muitos homens e mulheres escravizadas na época do Brasil colônia, pois através das suas experiências religiosas experienciavam a liberdade da alma e do corpo. Ainda que por um instante o momento do êxtase recobrava as energias volitivas daqueles seres humanos para darem continuidade as suas dolorosas vidas expostas ao massacre da liberdade tolhida e aos atos de violência contra os seus corpos. Os cultos afro-brasileiros proporcionavam com momento da festa a transgressão do dado cultural num feito meta-histórico, aliviando as dores da vida cotidiana e dando o sentimento de poder mais. Este efeito da força do culto

que move os seres a ação com alegria de viver e entusiasmo que promoviam a força para a lida na dureza da vida cotidiana.

O momento da festa é o momento do ócio e do encontro com a esfera espiritual do ser humano, aqui neste espaço somente cabe vivenciá-la como liberdade do espírito sem buscar uma finalidade. Entretanto, analisado sob a luz da fenomenologia, mostra uma efetiva força de modificação das estruturas ontológicas e sociais dos seres humanos possibilitando transcender a limitação contingencial do cerceamento da liberdade.

Referências bibliográficas

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No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 81-86)