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O que a experiência do presente diz da grandeza do passado

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 115-120)

O percurso da minha experiência com o ciclo da Paixão de Cristo em São João del Rei, foi uma sucessão de serendipities. Estar diante daquele multiverso religioso que se utiliza do seu passado barroco para se fazer atual foi descobrir inesperadas surpresas ao longo do caminho. E é somente dando corpo [e alma] ao percurso com a memória desses pequenos instantes, que consigo compartilhar e, ao mesmo tempo, compreender o modo como os moldes da festa do passado são garantidos e dramatizados na festa do presente. Nesse caso, o fragmento de que me utilizo é a minha experiência na cerimônia do Ofício de Trevas em 2012, uma solenidade proclamada como aquela que resistiu ao tempo e à

90 A Festa de Passos, normalmente celebrada durante a semana santa, é celebrada no IV domingo do

tempo quaresmal no Centro Histórico de São João del Rei, devido ao estrito cumprimento do Primeiro Estatuto da Irmandade dos Passos [a promotora da festa], cuja data remete a 1733.

mudança, posto que realizada em sua integralidade, enquanto que no resto do mundo a tradição não mais existe91.

O Ofício de Trevas é um ritual que se inicia na noite de quarta-feira e se estende pelas manhãs da sexta e do sábado santos. O Ofício da noite é composto pelas chamadas Matinas e pelas Laudes, as duas primeiras Horas Canônicas. As Matinas são divididas em blocos denominados de “noturnos” que são compostos por nove salmos e de suas antífonas, três versículos e nove leituras. Após cada leitura, que podem ser retiradas das Sagradas Escrituras, de sermões ou de homilias, entram os responsórios, que também são nove92. Já

as Laudes, do latim laudare - que quer dizer louvor - são assim designadas porque os salmos que as compõem são consagrados aos louvores de Deus. As Laudes abrangem cinco salmos, um versículo e um hino. Nessa segunda parte do Ofício de Trevas, antes das orações finais, entoa-se o Cântico de Zacarias - o Benedictus - seguido de antífona93. O

ritual, muito complexo, é difícil entendê-lo quando se participa e, mais ainda de contar quando se tem a pretensão de explicá-lo, o que aqui passa longe de minhas intenções.

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Naquela noite, a Catedral do Pilar já se encontrava tomada de gente, me obrigando a ficar de pé em uma das suas laterais. Algumas pessoas, vislumbrando o que estava por vir, preferiram ficar sentadas nos bancos da ante sala que levava até as salas dos clérigos e das ordens, mesmo que dali não se enxergasse nada do que se passava no altar.

A Orquestra e o Coro bicentenários da cidade, com os seus integrantes vestidos de gala, estavam posicionados de frente para o altar-mor e não no balcão da parte superior da igreja onde normalmente ficam. Naquela cerimônia, a parte musical seria o elemento principal da celebração junto ao canto gregoriano, dando o tom carregado ao Ofício que é composto por salmos, por leituras bíblicas, por antífonas, por responsórios, por trechos de leituras papais, por lamentações e por lições entoadas em latim, que meditam sobre a Paixão e a morte de Cristo. No altar havia um tenebrário em destaque posicionado ao lado

91 Escolher falar da experiência no Ofício de Trevas dentre tantas outras vividas ao longo do ciclo de

2012, se deve principalmente ao fato de ter sido nessa cerimônia, ainda em 2009, que tive um arrebatamento com relação à festa e a tudo que a compõe.

92 A antífona é uma resposta, cantada em gregoriano, a um salmo ou a uma parte da liturgia. Já o

responsório é uma espécie de canto litúrgico em que um solista entoa versos que são respondidos pelo coro.

93 Fonte: <http://preciosodeposito.blogspot.com.br/2008/03/liturgia-anlise-do-ofcio-divino.html>

direito; uma espécie de candelabro triangular com quinze velas acesas. Ao final de cada salmo cantado uma das velas era apagada, sempre começando pelas bases do triângulo. Era tudo tão admiravelmente sistematizado - o canto, as músicas, as orações e o apagar das velas - que eu me sentia até certo ponto neutralizada diante da sofisticação e da riqueza tanto material quanto litúrgica e musical do acontecimento. Ao mesmo tempo, o peso e a dramaticidade do Ofício me fascinavam pela beleza com que tudo se passava.

Por ser uma solenidade que se arrastava entre um apagar e outro de velas, me distraía com curiosidade observando uma menina que, sentada em um dos bancos no meio da igreja, se comunicava por meio de gestos com uma outra sentada um pouco mais atrás, contando que lá no altar, apesar de todo aquele tempo transcorrido, apenas três velas haviam sido apagadas até o momento.

Aguentei ficar apenas por uma hora e meia assistindo ao Ofício e depois precisei sair da igreja para sentar um pouco e recuperar as forças. Quem diz que o trabalho de campo também não é uma espécie de sacrifício, de externalização do dar-se, mente. Tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo e a uma só vez… Consola-me Marcel Mauss com quem aprendemos o que, à la fois, quer dizer. Sentei-me em um canto para aliviar o cansaço das pernas e só pensava em como era penoso acompanhar aquela solenidade, sobretudo, com duração de três a quatro horas, se você não conseguiu um lugar para se sentar. Léa Perez disse, a propósito do seu cansaço corporal, após os intensos dias de atividade acompanhando as procissões lisboetas, que “fazer procissão implica em um exaustivo investimento corporal” (2010: 07). Assim era para mim, ao participar daquelas longas missas. A fadiga e a dor que me acompanhavam nesse Ofício ofereciam uma pequena dimensão do próprio sacrifício pelo qual os fiéis se submetiam ao longo de todo o ciclo festivo e ao qual o meu corpo e a minha mente também se submeteriam nos dias que estavam por vir, todos compostos por extensas celebrações, por procissões e por uma infinidade de eventos noturnos e diurnos.

Retornei para o interior da igreja e continuei a assistir ao Ofício que, denso e dramático pelo mitigar das velas, advertia que o momento da morte do deus se aproximava. Passado o tempo, somente a vela disposta no vértice do candelabro permanecera acesa e assim que o coro começou a cantar Christus factus est, o acólito a protegeu da visão de todos, contudo sem apagá-la. Aquele objeto consagrado que era o próprio deus, ou a luz do deus, suscitava sentimentos ambíguos de veneração e de temor, pois não se sabia ao certo com qual força se estava lidando naquele momento. Concordando com Roger Caillois,“a força que o homem ou a coisa consagrados encerram

está sempre pronta a derramar-se para o exterior, a escapar-se como um líquido, a descarregar-se como a eletricidade” (1988: 21). Por isso era tão necessário interditá-lo da visão dos presentes.

Enquanto o canto prosseguia, as luzes da igreja eram, uma a uma, apagadas, conferindo um aspecto soturno ao templo barroco. Com um mínimo de luz que incidia somente do altar o celebrante, ajoelhado, rezou em latim uma oração que quando chegou ao fim, fez com que a pouca luz que ainda restava fosse apagada, deixando a igreja na mais completa escuridão. Assim que as luzes se apagaram, imediatamente um ruído tomou conta do ambiente: eram os pés dos presentes batendo no assoalho de madeira e emitindo um barulho que era amplificado pela força do gesto. O deus havia morrido. Esse ato não durou mais do que poucos segundos. Em seguida, todas as luzes foram novamente acesas e o acólito apareceu diante de todos os presentes com a chama da vela ainda intensa, sinalizando que para o deus a morte seria apenas passageira. A cerimônia chegara ao fim.

Imediatamente, emergimos das trevas que há horas nos inebriava naquele complexo procedimento ritual e saímos da igreja, meio atordoados pela magnitude da potência com que sagrado agira ali. Na saída, percebi que algumas pessoas estavam extremamente emocionadas, com os olhos repletos de lágrimas e atônitas pelo que acabaram de presenciar; mesmo que para muitas delas aquilo ocorresse todos os anos. Caillois expôs, a respeito do sagrado, que a sua elaboração não se encontra nos limites das possibilidades da linguagem abstrata, assim como a sensação, no momento em que se tenta formulá-la. “O sagrado aparece assim como uma categoria da sensibilidade. Na verdade, é a categoria sobre a qual assenta a atitude religiosa, aquela que lhe dá o seu caráter específico, aquela que impõem ao fiel um sentimento de respeito particular, que presume a sua fé contra o espírito de exame, a subtrai à discussão, a coloca fora e para além da razão” (1988: 20).

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Esse pequeno fragmento de experiência conta muito do que vi, ouvi e vivi com relação ao ciclo da Paixão. Experiência de mim mesma que junta afeto e emoção. Experiência essa que, junto a todos que estavam ali presentes, cada um à sua maneira e intensidade, sentia aquela festa de passado e do presente.

Referências bibliográficas

Caillois, Roger. O homem e o sagrado. 1988. Lisboa,Perspectivas do homem.

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