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O ambiente baiano: cultura e história a flor da pele

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 149-153)

O carnaval de Salvador está intrinsecamente ligado às características das cidades históricas e culturais da cidade. Trata-se de uma das maiores festas carnavalescas do país, em uma cidade que possui elementos culturais e sociológicos significantes, desde a formação de sua população, até a sua marcante ebulição cultural, marcada pela estreita relação com a cultura africana98.

O carnaval de Salvador tem se destacado, ao longo dos anos, como uma das festas populares de maior destaque na movimentação de turistas e, consequentemente, de recursos econômicos para a cidade de Salvador e para o estado da Bahia.

Além da variedade de aspectos sociais e culturais envolvidos, há diversos atores sociais que fazem parte da festa, e dela se beneficiam, cada qual conforme suas possibilidades de alcance. Entre eles, poder público, artistas e produtores artísticos baianos, empresários locais, turistas de várias regiões do país e do exterior que em massa ocupam a cidade nesta época e, especialmente, os soteropolitanos, que ocupam vários e diferenciados lugares na organização e na vivência da folia. Essa diversidade de atores sociais é sinalizada por Armando Alexandre Castro, ao indicar a “necessidade de

98 Entende-se que as implicações sociais da relação com a cultura afrodescendente transcendem a realização da festa do carnaval soteropolitano, sendo inclusive elementar na formação da cultura baiana, mas, nos limites propostos para este trabalho apreende-se o momento carnavalesco como privilegiado para identificação e para a visualização da dinâmica social em Salvador.

compreensão da heterogeneidade das dinâmicas, atores e sonoridades presentes nesta folia momesca” (2009: 04)99.

As características que marcam o ambiente cultural baiano se desenham desde a sua composição populacional – oriunda de processo de chegada dos portugueses ao Brasil e da proporção de negros escravos das mais diversas origens, que transformaram a cidade de Salvador na “maior cidade negra fora da África” (Moura, 2002)100. A cultura baiana

construiu-se nas duas principais vertentes da população, dividida entre elite branca e negros escravos, de um lado, espelhando-se na cultura europeia e, por outro, na vertente africana, manifesta na população negra através da música, da dança, da gastronomia, dos rituais religiosos e do visual trazido da África com vestimentas, penteados e adereços.

Na via da produção cultural, desde os anos de 1930, surgem as obras de Jorge Amado, que vangloriava a imagem da Bahia, descrevendo suas belezas naturais e as características de sua população – especialmente feminina – de forma como só se poderia fazer um lugar absolutamente ímpar. Em outra linha artística, o trabalho de Pierre Verger, fotógrafo que foi para a Bahia por influência da obra de Jorge Amado, ali chegando em 1946.

A vanguarda da Bahia na cultura nacional continua nos anos 1950 e 1960 no movimento denominado contracultura, quando emergem inovações no campo das artes, da música, do cinema (Guerreiro, 2005; Rubim, 2003). Fundamental neste processo de efervescência cultural é a ação da Universidade da Bahia, com o reitor Edgar dos Santos, e do Museu de Arte Moderna da Bahia, pela arquiteta Lina Bo Bardi, ambos grandes impulsionadores do movimento cultural baiano. Além das ações para criação e para a propagação das artes, também se destacam ações voltadas para uma conscientização da negritude, como a criação do CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais, na Universidade. Esse é o ambiente de surgimento do Tropicalismo, do Cinema Novo, e berço de nomes de

99 Os distintos planos e as variadas dimensões da festa já foram tratados por vários estudiosos. Há análises que apontam para o uso e apropriação do espaço urbano pela festa (Dias, 2002, 2007), outras voltadas para os aspectos culturais e históricos de sua compleição atual (Moura, 2001; Rubim, 2003), os seus aspectos de turismo e economia mais gerais (Spinola; Guerreiro e Spinola, 2004, Oliveira, 2009).

100 Conforme Milton Moura (2002), a população escrava vinda para o Brasil era composta de negros bantos, jejês e iorubás, que possuíam troncos étnicos e práticas culturais distintas entre si. Assim, o ambiente de formação da população baiana juntava negros de diversas origens, portugueses, galegos, índios aqui já residentes, além de sírios e de libaneses, que começaram a chegar no início do século passado.

expressão como Glauber Rocha, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Dorival Caymmi, Tom Zé, e suas expressões e versos sobre a terra.

Junte-se nesse cenário a atuação de artistas como Dodô e Osmar e a criação do trio elétrico em 1950, novidade musical que propiciou uma completa modificação rítmica, chegando na década de 1990 a uma junção dos batuques afros com o som mecanizado e amplificado dos trios.

No espectro carnavalesco, que é o de maior interesse para os objetivos propostos para este artigo, a grande inovação se dá a partir da década de 1970, especialmente com o surgimento dos blocos afro e afoxés, chamados também de blocos de matriz africana, com destaque para o Bloco Ilê Aiyê, que faz seu primeiro desfile no carnaval de 1975, seguido por várias outras agremiações nos anos seguintes.

Para os blocos de matriz africana, o contexto pode ser assim entendido: “O alicerce desse quase invisível universo cultural de descendência africana deriva da persistência de um enorme continente de comunidades, socioculturais e religiosas, que tecem uma formidável teia de convivências e, por conseguinte, uma tentacular rede de comunicação e cultura, cuja capilaridade permeia toda a Cidade da Bahia e regiões fronteiriças. A permanência vigorosa dessa tessitura comunicacional e cultural, em um ambiente societário perpassado de modo cada vez mais intenso por redes de comunicação e cultura midiáticas, expõe uma das singularidades da Cidade da Bahia, ainda que essa persistência possa também ser atribuída à imensa exclusão social existente no estado e na cidade” (Rubim, 2003: 110-111).

A conformação cultural do carnaval atual de Salvador, que será descrita adiante, vem de transformações e de consequências musicais e de estilo dessa cultura dos blocos afro, que leva a toda a reconstrução inventiva musical da Bahia, que entre fusões de ritmo e recriações chega ao axé music, sucesso estrondoso de vendas nos anos 1990 – tanto do produto musical quanto da cidade de Salvador - a partir do seu sucesso e das novidades lançadas a cada carnaval101.

A movimentada cultura baiana, impulsionada pela crescente divulgação na mídia faz Antonio Rubim tecer interessantes comentários sobre como se articulam as noções de convivência (onde a cultura local se produz na tradição e no convívio das pessoas) e de

101 Goli Guerreiro (2000) traça o histórico da evolução musical baiana, deixando visível o vínculo entre a música de inspiração africana, a base de percussão, e o que se convencionou chamar de axé music.

televivência (onde a cultura se propaga através dos meios de comunicação de massa): “Novamente aqui temos uma exigência de elaborar análises mais complexas, pois aparece como íntima a relação entre agências de produção das televivências, como as mídias, e difusão de novas convivências, como se configuram os carnavais fora de época e de lugar, com seus dispositivos tecnológicos inventados na Bahia, como acontece com o ‘trio elétrico’”. Em vez de uma oposição simples e binária, do tipo televivência contra convivência, retida, por exemplo, na ideia de uma “multidão solitária”, ampliam-se as possibilidades de interação, ainda que não se desconheça a desigualdade das forças presentes no jogo. Assim, televivências e convivências, para além de um mero confronto, também ele presente, podem engendrar outras possibilidades hibridizadas, tais como: televivências difundindo e incentivando assimilações de modos de convivência (por exemplo, o carnaval baiano, essa gigantesca festa de convivência e comunhão) e convivências estimulando televivências, porque ávidas de dados simbólicos assemelhados para serem compartilhados à distância, constituindo potenciais “comunidades imaginadas” à distância — como aconteceu quando a Rede Bandeirantes cobriu o carnaval baiano 2000” (Rubim, 2003: 114).

A questão que se coloca é o processo de transformação ao longo dos anos 1990, de se usar essas características na divulgação estratégica de um novo produto turístico atrativo em um mercado global: a baianidade. Os vários sensos do termo são indicados por Guerreiro: “Não se pode, portanto, reduzir a ‘baianidade’ a uma única representação ou perspectiva. Talvez seja mais rico falar em ‘baianidades’. Há uma baianidade que é a experiência concreta das pessoas que interagem em Salvador e seu Recôncavo, ou seja, o ser e estar do baiano em sua vida cotidiana (assim como há mineirismo, gauchismo, carioquismo). Há ainda a construção política de uma diferença regional e local. Há a baianidade que se delineia no mundo das artes, na literatura, música, dança, artes plásticas, expressões culturais que estão ancoradas nesta mesma vida cotidiana. E há a imagem turística que se apoia na interface dessas várias perspectivas” (2005: 15).

Cabe aqui ponderar que o carnaval tem uma peculiaridade especial, funcionando como vitrine dessa cultura, por sintetizar no tempo e no espaço todos esses elementos diferenciais da Bahia, e, inclusive, o resultado das miscigenações entre as diversas iniciativas culturais.

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 149-153)