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Unidades rituais do Congado

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 88-98)

“Guardas”, “ternos”, “bandas”, “batalhões” são como os congadeiros nomeiam a menor unidade ritual das suas cerimônias festivo-religiosas, sendo a união dessas unidades elementares a definição mais abrangente do congado. Numa tentativa de apresentar essa unidade primeira, elementar, sem a qual o congado não poderia existir ou acontecer, buscaremos identificar quais seriam os seus elementos básicos, levando-se em conta a maneira como se encontram organizados no interior da unidade, bem como as funções e os significados que os congadeiros atribuem a cada um desses elementos. Só depois poderemos compreender o “porque” desses elementos, cercados de funções e significados particulares, não serem capazes, em si mesmos, de aspirarem autonomia.

Mas isso ainda não é tudo, essas unidades rituais também dão lugar a diferentes tipos, estilos ou modalidades de guarda que, embora apresentando estrutura organizacional semelhante, possuem diferenças significativas. Segundo um dos principais estudiosos do congado mineiro, o folclorista Saul Martins (1986), o congado pode ser descrito como uma família coreográfica composta por sete irmãos de cor: congo, caboclo,

marujo, catopé, vilão, candombe e Moçambique. Embora gozando de relativa autonomia,

os diferentes tipos de guarda são vistos como que complementares. O que eu quero dizer é que para que haja congado basta à existência de uma modalidade. Porém, não é este o ideal a ser perseguido, sendo de conhecimento de todo congadeiro os preceitos tradicionais que fundamentam as características particulares de cada modalidade, bem com os papéis, funções e responsabilidades de cada uma quando agrupadas nos festejos do congado.

Dedicaremo-nos aqui à apresentação de duas modalidades: o congo e o moçambique. Tal escolha se deve ao fato de não dispormos de informação e material etnográfico satisfatório, o que demandaria uma grande força-tarefa, no qual o presente artigo seria apenas uma diminuta contribuição. Contudo, acreditamos ser importante registrar que nos cortejos do congado os congos têm a função de iniciar a procissão, sendo, portanto, os senhores das primícias que introduzem um elemento novo “que deve ser integrado na ordem do mundo com o mínimo de desordem possível”; e os moçambiqueiros os últimos da fila, desempenhando o papel de escolta de honra dos Reis de Congo e de Nossa Senhora do Rosário (Caillois, 1988: 29).

Figura 1: unidade guarda – representação esquemática60

60 Deixo aqui registrado meus agradecimentos a Pedro Junqueira Pessoa pelos comentários que auxiliaram na elaboração deste artigo e ajuda elaboração das representações gráficas, quando da escrita da minha dissertação de mestrado, as quais utilizo no presente texto (Garone, 2008).

Capitães, Secretários e Juízes (e “Fiscais”) são elementos de maior mobilidade, sendo aqueles classificados como 1º, 2o, etc., seus suplentes natos.

O Capitão Regente é quem comanda todos os movimentos da guarda, sendo também o responsável pelo grupo. Cabe ao Capitão Regente fazer contato com outras guardas, repassar conhecimentos secretos aos seus suplentes e sucessores, cuidar dos aspectos técnicos, espirituais e religiosos da guarda, aceitar ou não um novo componente no grupo, intermediar e solucionar conflitos, acumulando “as funções de administrador, de mestre e, sobretudo, de sacerdote” (Silva, 1999:04). Apresenta, em sua mão direita, um objeto identificador da sua posição de chefatura. Quando substituído, entrega esse objeto ao suplente que ficará momentaneamente em seu lugar.

Os Secretários auxiliam os Capitães a manter a ordem e a harmonia do grupo, supervisionando e auxiliando músicos e dançantes no que for preciso. Os Secretários também podem desempenhar a função de “Fiscal”, a pedido do Capitão Regente, ficando sob seu encargo zelar pela “boa conduta” dos componentes da guarda. Em geral, trata-se de uma função secreta para que ninguém fique de “sobreaviso”. Por isso, nem sempre é explicitado quem, de fato, pode assumir o encargo. Não costumam chamar atenção do companheiro em público. É preciso primeiro aconselhá-lo e, caso o problema não seja resolvido, levar o assunto ao conhecimento do Capitão Regente.

A Bandeira Guia, como o próprio nome já diz, é quem guia a guarda nos seus deslocamentos. Jamais pode ser ultrapassada pelos integrantes do grupo. O Capitão Regente é quem conduz a Porta Bandeira Guia, indicando-lhe o ritmo e o rumo dos seus passos, assim como os momentos de parada.

A Bandeira Estandarte acompanha a Bandeira Guia, sendo sua função nomear e representar a identidade particular do grupo, geralmente representada pela figura de uma santa ou de um santo protetor da guarda.

Músicos e dançantes se apresentam dispostos em fila dupla. Aqueles que manipulam os “Instrumentos-Guia” são, entre todos, os que ficam mais próximo do Regente. Assim, ao receber a ordem do comandante, iniciam o toque e o ritmo da música que será executada pelo grupo. O Capitão Regente também é o responsável por “puxar” o canto que será entoado pelos componentes da guarda. Os cantos são sempre responsoriais, ficando o Regente no lugar de solista e os demais de coro. O Capitão Regente também é quem

costuma “tirar” as embaixadas e os lamentos61. Seus saberes de músico, cantor e recitador

são considerados marcas registradas do cargo. Músicos e dançantes podem se revezar em suas posições, sendo a troca auxiliada pelos Secretários.

Toda a Corte Real apresenta-se vestida em trajes de gala, incluindo-se cetro, coroa e manto, símbolos de poder e status da sua destacada posição. Apenas os Reis Congos e Reis Perpétuos costumam usar coroa “de ouro”; os demais as têm “de prata”62. Tais

personagens não tomam parte nos cantos e nas danças, mas, às vezes, acabam se “empolgando”, o que nem sempre é bem-visto.

Os Reis Perpétuos costumam serem pessoas mais idosas que já foram Reis de Congo e que decidiram deixar a incumbência para um sucessor, geralmente alguém da família, sendo esses cargos, em grande medida, hereditários.

Apenas os Reis Congos possuem escolta especial, a chamada “Guarda Coroa”, que fica responsável por zelar pelo bem-estar da Corte Real, providenciando assentos, água, dentre outras deferências e cuidados necessários aos mais idosos. Os Reis Congos também costumam ter um suplente, para o caso de qualquer eventualidade, os chamados “Reis Coroados”.

Os Juízes são os responsáveis por objetos específicos da guarda (Juiz da Bandeira Guia, Juiz dos Bastões, etc…), além de auxiliar a Corte Real no que for preciso. Também podem ser designados para ajudar os Secretários a manter a ordem e a harmonia do grupo.

Há ainda os cargos relacionados à diretoria da guarda – Presidente, Tesoureiro, etc. –, destinados ao desempenho das funções de bastidores como responder ofícios, agendar apresentações, cuidar do patrimônio da guarda, etc. Esses nem sempre participam das atividades rituais da guarda, isto é, não costumam utilizar farda, mas também pode acontecer que utilizem. Algumas guardas costumam fazer camisas de malha silkada com símbolos da guarda, para a devida identificação destes nas festividades do congado. Outras os identificam por faixas ou crachás.

61 Em linhas bastante gerais, podemos dizer que as apresentações do congado se dividem em duas partes principais: o cortejo “caracterizado coreograficamente por peças que permitem a locomoção dos dançadores, em geral chamadas cantigas”; e os lamentos e as embaixadas “caracterizadas pela representação mais ou menos coreográfica dum entrecho, exigindo arena fixa, sala, tablado, pátio, frente de casa ou igreja” (Andrade, 1982: 57).

Em geral, os integrantes da guarda vão, aos poucos, “subindo” de cargo [de dançante para tocador, de tocador para instrumentista guia, de instrumentista guia para capitão…], à medida que vão sendo instruídos pelos mais velhos e pelos mais experientes nos aspectos técnicos e espirituais necessários ao desempenho da função para a qual está sendo preparado. Algumas pessoas passam à vida inteira como dançantes. Já outras, desde muito cedo, são preparadas para assumir cargos de liderança, em geral, por apresentarem “dom” desde a mais tenra infância, por promessa de algum familiar ou por serem filhos de mestres, sendo, neste caso, um “direito” dado pelo parentesco. Os cargos “mais altos” demandam ritual específico para que a pessoa possa exercê-lo.

Assim, após descrevermos os aspectos mais gerais da menor unidade ritual do congado – a chamada “guarda” –, apresentaremos, em seguida, as principais características do Congo e do Moçambique.

À frente dos cortejos encontramos dispostos os congos, trajando vestimentas navais devidamente ornamentadas com fitas coloridas, rosários entrecruzados ao peito, ostentando quepes, capacetes de flores ou equivalentes em suas cabeças. Com exceção da Corte Real e Porta-Bandeiras, todos os integrantes apresentam a mesma vestimenta, porém Capitães, Secretários e Fiscais costumam portar algum símbolo alusivo de sua posição superior na estrutura hierárquica do grupo como faixas, crachás, cores específicas, dentre outros símbolos de destaque.

Tanto no congo, quanto no moçambique, as vestimentas costumam ter o branco como cor predominante. Todavia, as guardas têm plena liberdade para escolher a cor dos seus uniformes, mas jamais o fazem aleatoriamente, sendo quase sempre representativa das inclinações religiosas do grupo. Além disso, como o calendário festivo-religioso do congado é bastante extenso, o mais comum é terem diferentes fardas que se alternam ao longo das apresentações.

Com relação aos instrumentos musicais do congo, possuem tanto instrumentos de corda quanto de percussão que “dialogam” entre si. As músicas sempre são iniciadas pelo Caixeiro-Guia, a pedido e escolha do Capitão Regente, ou por aquele que está momentaneamente no comando. O Caixeiro-Guia executa alguns toques iniciais, o Respondedor-Guia responde ao chamado com o violão. Após entrarem em “entendimento”, os demais acompanham tocando e cantando a mesma melodia que foi “puxada” a pedido do Regente. Dançantes e músicos apresentam-se dispostos em fila dupla, segundo a hierarquia do grupo.

Seus passos de dança, marcadamente ligeiros e belicosos, são embalados por ritmos característicos do congo, os chamados “dobrados de marcha”, “marcha lenta” e “marcha grave”, também executados pelos moçambiqueiros. Costumam contar com os seguintes instrumentos musicais: caixas, tambores, violas, cavaquinhos, maracás, marimbas, pratos, caxixis, agogôs, pandeiros e sanfonas, sendo essas últimas mais raras.

Apenas os Capitães apresentam espada em punho, símbolo da força de vanguarda guerreira do batalhão, sendo a do Capitão Regente a mais destacada e importante. A espada sempre deve ser empunhada pela mão direita, representando o “ceptro da autoridade, do juramento, da boa-fé”, sendo também a “mão destra, aquela que conduz a arma a direito até seu objectivo”, comprovando, assim, não apenas a “destreza, mas também o justo do guerreiro, a sua direitura, ela mostra que os deuses o protegem” (Caillois 1988:43).

Além da espada, o Regente costuma possuir um apito através do qual emite sinais de comando, facilitando a comunicação com os integrantes da guarda que ficam mais afastados, ao final das alas. Os dois componentes da Escolta Real também possuem espadas, mas, como já explicitado, a do Capitão Regente costuma ser a mais visivelmente “requintada”63.

Figura 3: moçambique – representação esquemática

63 Cumpre registrar que nem sempre há a presença da chamada Escolta Real, o que pode ser indicativo de que sua presença só se faz necessária em eventos mais “solenes”, especiais.

Ao final dos cortejos encontramos dispostos os moçambiqueiros com seus saiotes de renda, lenços à cabeça, rosários e guias ao pescoço, guizos e paiás amarrados à canela. Sua figura é a de um preto velho. Ou melhor, são os pretos velhos do rosário. Na verdade, apenas aqueles que são médiuns, mesmo que ainda não tenham desenvolvido sua mediunidade, apresentam-se fardados nesses trajes.

Em geral, ficam ao centro da guarda, onde executam passos de dança que lhe são característicos: requebros de ombros, batidas de pés, sapateados, pequenos pulos e alguns saltos que fazem ressoar seus guizos e paiás. Dentre esses, estão o Capitão Regente, demais Capitães, Secretários, Juízes e Fiscais. Aqui relação sagrado/profano, centro/periferia, tal qual nos observa Caillois (1988), parece ser uma noção bastante operativa. Ao centro, encontramos os integrantes que possuem força e intimidade com as energias que os moçambiqueiros se propõem a administrar. Nas laterais os dançantes que possuem menor familiaridade quanto ao assunto. O mesmo acontece nos cortejos. À frente encontraremos dispostos as guardas, as bandeiras e os andores. Atrás e nas adjacências fiéis e expectadores.

Assim como no congo, os bastões sempre devem ser empunhados com a mão direita, sendo o do Capitão Regente o mais importante e destacado. Na parte de cima dos bastões é comum encontrarmos formas esculpidas como cabeças de pretos velhos, cobras corais, fitas coloridas, em geral, alusivos à entidade protetora daquele que o maneja. Em determinadas ocasiões, o bastão é batido suavemente no chão e, em outras, elevado acima da cabeça, desenhando pequenos círculos no ar.

Músicos e dançantes apresentam-se dispostos em duas alas laterais, trajando calça, camisa e, às vezes, lenço ou chapéu. As cores dos seus trajes devem estar em sintonia com as utilizadas pela guarda como um todo. Ao início das alas estão os músicos, sendo os dois primeiros considerados os mais importantes, por manipularem as “Caixas-Guias” de grande valor simbólico e espiritual para os moçambiqueiros. Comandados pelo Regente, executam o “serra abaixo” e o “serra acima”, dentre outros ritmos característicos do moçambique.

Os moçambiqueiros são escolta de honra dos Santos e dos Reis de Congo, isto é, de tudo o que há de mais nobre e sagrado para a tradição congadeira, Tais privilégios são comumente atribuídos a sua “negritude” e “africanidade”, compreendidos não apenas em termos da sua “origem” ou “tom de pele”, mas pela sua maneira particular de vestir, cantar, dançar e portar. Na liturgia congadeira, os moçambiqueiros também são os responsáveis por abrir as portas das igrejas, o que nunca fazem antes de lembrar que no

tempo de cativeiro, e, num certo sentido, até os dias de hoje, eram impedidos de adentrar as Igrejas. Em tais ocasiões, costumam entoar o chamado “lamento do negro”.

Quanto aos instrumentos musicais dos moçambiqueiros, além das caixas, costumam contar com: maracás, marimbas, pratos, agogôs, pandeiros, dentre outros instrumentos, todos eles percussivos. Tanto no moçambique quanto no congo, os instrumentos musicais não estão ali apenas para “serem tocados”, mas também para serem “vistos”, sendo ornamentados de acordo com o “gosto” e inclinações religiosas do grupo.

Comentários Finais

As fardas, instrumentos musicais, ornamentos e objetos rituais do congado, além de fundamentais para demarcação das diferenças entre as modalidades de guarda e constituição identitária dos grupos particulares, são pensados não apenas nos termos da sua aparência exterior, mas bem antes como consubstanciação com o sagrado, é dizer, a sua encarnação.

Émile Durkheim, em sua célebre análise sobre o sistema totêmico australiano considera que “as máscaras que cobrem seu rosto [do australiano] figuram materialmente essa transformação interior, mais ainda do que contribuem para determiná-la” (2003:225). De maneira semelhante, as indumentárias e os objetos rituais dos congadeiros também são vistos como uma força de transformação, como a parte visível de alguém que está a serviço da sua fé e espiritualidade. E sendo o congadeiro “instrumento” de uma causa superior, imanta tudo aquilo que se liga aos aspectos visíveis dessa transformação interior. Tanto é que determinadas ações e atitudes interditadas aos congadeiros não se estendem à vida cotidiana, quando já despidos das suas vestes rituais.

Destaca-se ainda que as vestimentas e os objetos rituais dos congadeiros, mesmo quando não estão sendo utilizados, permanecem imantados pelo sagrado e cercados de interditos, sendo mandatórios cuidados especiais e uma série de procedimentos para se evitar o contágio. Não devem ser lavados junto às roupas do cotidiano, e é comum a utilização de determinadas ervas e fórmulas no processo de lavagem; devem ser guardadas em local específico, jamais misturados aos objetos de uso cotidiano. O mesmo acontece com os instrumentos musicais. Esses não podem ser utilizados em situações de divertimento e lazer, como bailes e pagodes, sob o risco de contágio, assim como se deve evitar seu uso em outras modalidades rituais como, por exemplo, utilizar um violão do congado na folia de reis.

No caso de falecimento de algum companheiro suas vestes e os objetos rituais também demandam uma série de procedimentos específicos. Se Rei ou Rainha terá que ser “descoroado”, se Capitão “descapitaneado”, e assim por diante. Pois sendo o corpo “morada do espírito”, entende-se que o espírito desprendeu-se apenas da “matéria corpo”, mas continua presente nos objetos rituais do congadeiro que os imantou com sua “intimidade” em vida. Se neste momento o espírito abandona a sua morada, o mesmo não se pode dizer dos objetos imantados pela intimidade do congadeiro que veio a falecer, sendo, neste caso prudente, e mesmo necessário, a destituição ritual dos seus objetos particulares para posterior entrega a algum herdeiro, sendo que determinados objetos, como terços e guias, podem ser oferecidos a Nossa Senhora do Rosário, passando a fazer parte dos objetos sagrados do seu altar ou andor.

Referências bibliográficas

Caillois, Roger. O homem e o sagrado. 1988. São Paulo, Editora Perspectiva

Da Silva, Rubens Alves. Negros católicos ou católicos negros?: um estudo sobre a construção da identidade negra no Rosário. 1999. Dissertação de mestrado em sociologia, UFMG.

Durkheim, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 1996. São Paulo, Editora Martins Fontes.

Garone, Taís. Uma poética da mediação: história mito e ritual no congado setelagoano. 2008. Dissertação de mestrado em antropologia, UNB.

Geertz, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. 1978. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zahar Editores.

Mário de Andrade. As danças dramáticas do Brasil. 1982(a). As danças dramáticas do Brasil, t. 1. Belo Horizonte, Editora Itatiaia Ltda.

Mário de Andrade. Os Congos. 1982(b). As danças dramáticas do Brasil, t. 2. Belo Horizonte, Editora Itatiaia Ltda.

No documento Anais III Colóquio Festas e Socialidades (páginas 88-98)